CAMINHOS
O pensamento vai longe, apesar de as mãos estarem no volante e os olhos aparentemente controlarem os acontecimentos à frente. A paisagem é múltipla e rica em detalhes. Fauna e flora abundantes, escondidas, camufladas, enganam o incauto, o distraído. O pé afunda, parecendo querer pisar além do assoalho, fazendo o ponteiro vermelho dar uma volta inteira. É neste momento, sem aviso prévio, que o carro decola. Ganha altura com uma golfada de vento que vem na direção contrária, fazendo com que ultrapasse dois caminhões e guinando para a direita, em curva suave e discreta, sobrevoa o vulcão. Estarrecido, mas muito mais maravilhado do que com medo, aproveita a paisagem e o início do por do sol. Ainda não se deu conta, mas já sente uma náusea, um enjôo, uma leve dor de cabeça e uma incrível sensação de estarem a lhe falar. Na verdade, não é bem isso, mas como se estivesse em uma reunião, obrigado, sem no entanto ter interesse algum no assunto e seu desenrolar. E era isso mesmo que fazia, distraindo-se com pequenos rabiscos, de malhas urbanas vistas de um avião em vôo noturno. Solitária ave, perspectiva lenta e distorcida. Ilusão desmedida. Chamam-lhe ao telefone, desperta. Desliga o reloginho e vira-se para a loira deitada ao seu lado. Nua e feliz, dorme sorrindo. Toma um gole de água e e seus remédios mais uma vez esperam na gaveta. Sentado, rememora e uma imagem insiste em ser. Forte, comparece em diversas versões, tanto em cores como não, até com trilha sonora e múltiplos pontos de vista, como se em diversos ângulos tivesse sido filmada. Que material fabuloso, rico. Pensa em vender a idéia, vender as imagens, vai ao banheiro. Não consegue cruzar a soleira. Retorna imediatamente ao ponto da estrada em que decolou. Gira em espiral e se reconhece estirado no asfalto. Seus colegas chamam sua atenção, discretamente o cutucam e avisam que a reunião terminou. Agradecido da gentileza, convida a todos para uma rodada de cerveja. “Desce dois, desce mais...” Despede-se e vai, pensativo, encontrar a esposa e a família dela. Tão logo passa o primeiro pedágio da rodovia, decola. Não suporta os ferimentos e a demora do socorro médico. Em espiral ascende, vendo-se cada vez mais ao longe. Um ponto, uma insignificância. O gato mia e, não contente, lambe-lhe o nariz. Ronrona e pede para sair em seu ritual domingueiro. O jornal, o pão e o leite. Hoje é seu dia de por o café. Globo Esporte... Clássico... Golfe com os amigos, lasanha em família e conferir a Mega Sena na internet. Quem sabe quebrar a rotina, não acordar o filho, não lhe cobrar a lição de casa, o trabalho escolar. Fazer amor no porão ou na garagem. Simplesmente esquecer de ajustar o despertador para o dia seguinte e embebedar a mulher antes de uma farra prolongada noite adentro. Deixar de ler as páginas de esportes e política. Não cortar a grama, nem limpar a piscina. Tirar toda a roupa que tiver no armário e levar em um caixote para a feira de trocas, voltando de lá com uma coleção de cinzeiros de ágata, tendo deixado de fumar. Amor? Quê? Onde você está com a cabeça? Não viu o leite derramar? Desfibrilador! Rápido! Carga... já! Outra vez! Carga... Já! Não mais respira... escreva ai, quinze e trinta e dois... Parada cardio-respiratória e múltiplos traumas... Homem, caucasiano, aparentes 45 anos, sem sinais particulares. Requisite os exames de praxe, alcoolemia, toxicologia, etc. Depois verei se tem algum telefone... deixa que eu ligo... avise para mandarem vir buscar o corpo, nós aqui não temos mais nada a fazer. Você vai ver o jogo? Que nada, meu plantão vai até amanhã cedo. Que faço com estas flores?