Delírios em ciclos

Andava distraído entre as árvores enquanto percebia a luz do sol surgir entre as folhas. O mesmo frio que incomodava era aquele que causava satisfação pelo contraste com a adrenalina que me aquecia. A mochila pesava cada vez mais, fazendo os passos se fundirem a gravidade, acompanhando um acesso de resmungos agonizados. Enfim o penhasco logo à frente. O barulho da garrafa vazia caindo sobre o chão de madeira me acordava: Foi apenas um sonho.

Após levantar da cama, coberto pelo breu, caminhei até a porta tateando o interruptor para acender a luz, sucedendo assim por cada cômodo até a cozinha, para que lá bebesse um copo de água. Algo me chamou a atenção na luz que entrava pela janela empoeirada. Parecia que a lua estava com uma cor avermelhada e bem distinta, digna de apreciação, seduzindo-me a porta de entrada de meu humilde lar. Apenas no abrir da porta eu já sentia o frio invadir a fresta, manifestando uma sensação cortante, semelhante a milhares de agulhas esburacando os poros. A cor rubra da lua não passou apenas por impressão quando eu realmente estava com a porta escancarada, de pé para o exterior, tendo nada mais que a visão da lua. A neblina espessa não me permitia notar uma forma sequer no solo. O frio estava familiar. Como que num impulso, caminhei. Alguns passos adiante e a visão tornava-se mais nítida, desvencilhando-me da cegueira causada pela neblina, enquanto eu me aproximava da surpresa que estava sendo não reconhecer o terreno onde vivi durante tantos anos. Os passos revelavam o quão bizarra estava sendo aquela situação, vendo cenários nunca antes vistos num local que tão bem conheço. Pensava ser fruto de sonolência. Não me recordava daquelas árvores imponentes, de aparência secular, todas dispostas aleatoriamente com seus galhos retorcidos, quase negros e imóveis além da conta de uma árvore comum. Atravessando meu novo quintal, vi-me jogado num vendaval de novidades, desbravando uma floresta de aparência macabra, notando tantas novidades que o tempo já não mais importava, pelo menos até olhar para trás e não conseguir enxergar minha velha casa de madeira através da neblina.

Após tomar consciência da bizarrice que estava sendo minha caminhada quase matinal, dei meia volta e caminhei em retorno por entre a neblina, agora tão espessa quanto seria a teia da aranha mais dedicada num raio de milhares de milhas. A cada passo o meu afastamento se tornava mais evidente, até um ponto em que as árvores já estavam com suas formas mais nítidas e já não eram tão imóveis. A vida enfim se revelava por entre os galhos. Milhares de vultos, ora enormes, ora ínfimos, emitindo ruídos estalados como o som de uma fogueira em meio ao silêncio, agitavam-se sem revelar ao certo o que eram, enquanto o tempo da caminhada de retorno já parecia ultrapassar de longe o da ida.

Havia uma determinada angústia tomando conta de meu ser. Com passos cada vez mais rápidos, tentava ao menos começar a visualizar algo além da neblina, mas nada via. As raízes das árvores emanavam odores hipnotizadores, os quais geravam uma sensação de distorção da realidade, algo semelhante à embriaguez, o que fazia a angústia se converter numa espécie acomodação, seduzindo-me a ficar estático e me entregar a situação.

Raios de luz com cores exóticas brotavam no céu, revelando ainda mais a imponência da floresta, num momento em que, por um motivo qualquer, eu já não me importava com o fato de não achar a minha casa. Já não mais andava e sim corria, descalço entre sombras que se revelavam na forma de musgo no chão, até que tropecei em algo e caí, notando que se tratava de uma mochila em meu caminho. Um calafrio me despertou da embriaguez repentina, fazendo com que eu manifestasse um reflexo instintivo no que tange a pegar a bolsa, coloca-la nas costas e prosseguir na tentativa de voltar a minha casa. O sol já se mostrava mais intenso, para que só então eu percebesse o tempo que havia passado. O intervalo transcorrido tornava-me confuso quanto à direção que estava seguindo para voltar, a qual sempre me pareceu muito óbvia. As árvores tornavam-se mais espaçadas e não havia mais tanta densidade na floresta, fazendo parecer que eu estava a ponto de chegar a algum lugar. Já não havia mais neblina e eu podia ter a certeza de que não estava indo para casa. Nego estar vendo o que via nesse momento, mas acabei me entregando a realidade: eu estava frente a um penhasco. Novamente o barulho da garrafa a me acordar. Era um sonho, mas após acordar em minha cama eu percebia que a lua ainda estava avermelhada.

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Publicado novamente por falta de novidade. Acho que até amanhã tem mais. haha...

Rafael S P Valle
Enviado por Rafael S P Valle em 02/03/2009
Código do texto: T1464926
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