11:59 na Estação da Morte

UM DIA QUALQUER DE AGOSTO

O homem de terno carregava um pequeno livro de capa dourada. Na outra mão estavam filipetas negras com caracteres vermelhos, dispostas em um bloco de folhas não muito amassadas. Parecia enfadado, cansado de transmitir uma mensagem para um povo que, apesar de se autodenominar estritamente apegado a crenças e tradições, não davam a mínima ao que o mesmo dizia. O homem já estava sem voz, sem energia... sem fé.

Dos portões da antiga estação de trem saíam praticamente as mesmas pessoas de sempre. O mesmo sujeito que vendia café e chocolate em frente à banca de jornal. O mesmo garoto vestindo um casaco de um time de hockey norte-americano. A mesma mulher tresloucada que dançava no meio da rua embalada por som algum. E o homem – o pastor de almas com a bíblia dourada nas mãos – não estava conseguindo cumprir sua missão de instalar a semente da Palavra nos corações destas mesmas pessoas.

Não sei se por modorra ou extrema decepção, mas o homem, que subira a plataforma da estação intentando viajar de trem com destino a seu lar estava paralisado, tal como estátua, observando a composição enferrujada e encanecida que se aproximava, fazendo um barulho infernal. Curioso, somente observei o homem caminhar, capenga, em direção às portas da locomotiva que estacionara ao lado da plataforma, exatamente às 11h59min de um dia qualquer de Agosto. Dentro, nada se podia ver além de uma luz lúgubre que sempre me causava arrepios.

Sim, eu sempre vejo o trem estacionar. Entenda... ou melhor, não tente entender.

Começou há alguns dias. Eu havia optado pelo suicídio após perceber que minha existência não fazia a menor diferença para ninguém. Minha família não se importava com minhas opiniões, não aceitava minhas idéias e não dava a mínima para minha existência. Meus amigos, outrora meus amigos, haviam me trocado por outros amigos com outras metas e objetivos. Para as pessoas, meu espírito visionário e até um pouco infantil tornou-se obsoleto.

Decidi então dar cabo de minha própria vida lançando-me na linha do trem. A covardia poupou minha existência. Desde então estou aqui, na antiga estação, vendo alma após alma entregar-se ao desespero do suicídio, embarcando nesta locomotiva que, até então, mostra-se como solução definitiva para o horror que o destino pode prover.

ALGUMAS VEZES ALGUÉM SAI

Algumas vezes alguém sai. Não é comum, e, é claro, a pessoa já não é mais a mesma. Um homem bem vestido, gordo e de bochechas rosadas, entrara na composição há algumas semanas. Havia perdido mulher e filha em um grave acidente em uma rodovia federal qualquer. Metediço, talvez vítima do terrível fastio que ampliava-se hora após hora, fui conversar com o moço que, ao deixar o veículo férreo, parecia atônito.

Não sei como sei o passado de todas essas pessoas. Não tente entender.

- Não me pergunte o que vi – disse-me o senhor roliço – Pelo amor que tens por sua própria vida, não me pergunte...

- O que viu no interior do trem? – perguntei, ignorando seu apelo. Ao me encarar atônito, completei: - Eu não tenho amor pela minha própria vida. Por isso estou aqui, não?

- Não! Não me pergunte. Não responderei que vi as hordas do inferno pela janela, e a desgraça do ser humano em sua forma mais palpável.

- Recomenda que eu entre? Acha que as coisas tornar-se-ão mais esclarecedoras?

O viajante riu. Pousou sua mão esquerda em meu ombro direito, dizendo: - Se ainda tens sanidade, não entre aí. Pior que a visão de uma criatura demoníaca ou a mutilação de entes queridos é a obtenção do esclarecimento. Esta é a locomotiva do esclarecimento. Não entre lá, se quiseres dormir o sono dos tolos. Entre lá, e a paz nunca será possível.

O MAQUINISTA...

...é um tanto invisível. Esfumaçado, etéreo em sua cabina abafada contra um vidro embaçado em uma noite sem luar. Ao longe, por seus olhos percebi que me chamava para dentro, enquanto escarnece de minha indecisão. Acho que o Príncipe Hamlet entendeu este relativismo, esta questão do bem e do mal, do certo e do errado, quando disse aquela famosa frase que todos conhecem, mas não compreendem. E talvez, infelizmente para ele, esta locomotiva não passe na Dinamarca.

Agora, quando o trem faz mais uma parada, ainda neste longo mês de agosto, eu estou lá na plataforma – lutando contra minha mente (ou a favor dela). E sei, ao contemplar os olhos do condutor, que na realidade jamais poderia aceitar o demônio da ignorância, jamais poderia dar as costas a tudo o que acredito, jamais poderia ser igual aos outros. E posso dizer que tenho coragem, pois se este não for um sonho, um sonho muito real, estarei fadado a entender o que não pode ser entendido. Não poderei mais ter comigo as pessoas que tinha, os amores que preservei, as ilusões que construí.

11h59min. Olho para o maquinista, e digo que entrarei em instantes. Fito o mundo lá fora: homens e mulheres se divertem bebendo cerveja em um bar obscuro; garotos discutem por uma partida amadora de futebol noturno; um casal se beija com lascívia no banco da praça.

Nada demais, mas estou feliz em poder entrar no trem. Eu escolho a verdade.