A Razão do Medo
NÃO ENTENDO OS HUMANOS. REALMENTE não sei o que há de errado com eles. Criaturas simplórias e complexas – pelo menos até onde me fizeram acreditar – que têm medo. Escondem-se em máscaras e dizem que não, que não temem nada, mas eu sei que eles têm medo. Medo do escuro – o mais primitivo e irracional dos medos –, medo da morte, medo deles mesmos, medo de demônios. Afinal, qual o problema?
Resolvi tirar minhas próprias conclusões sobre esses medos infundados. Parti para dentro da mente de um garotinho. Ele não tinha nem cinco anos, e já tinha medo. Pedia para a mãe dormir com ele até o dia seguinte, e, quando ela se negava, ele pedia para deixar a luz do quarto acesa. A mãe tinha que dizer todos os dias que o armário estava devidamente trancado – não sairia nenhum monstro dali –, que embaixo da cama só havia caixas de brinquedos e o próprio chão – e que este não se abriria para das profundezas aparecer um monstro –, que nada ali poderia feri-lo. Estava errada, é claro, com essas promessas de segurança eterna – só nesses poucos segundos uma quantidade relativamente alta de fatalidades passa por meus pensamentos –, mas as mães adoram iludir seus filhos com um mundo colorido e sem problemas. Deixe-as, e deixe as crianças acreditarem nisso. Quem sabe podem ser mais felizes assim.
Enfim.
Povoei os sonhos dele por uma noite, e não posso dizer que não me senti surpreendido. Sempre ouvi falar que a mente dos seres humanos era a mais complexa de todos os seres vivos desse planeta, mas nunca dei muito crédito aos boatos. Agora, ao contrário, percebi que tudo era verdade. Uma mistura de cores, sensações, sentimentos, cheiros, barulhos e sabores, tudo ao mesmo tempo, pingando em doses moderadas para a parte consciente. Do azul do mar para o amarelo do sol, da carne assada para o xarope amargo, tudo ao mesmo tempo. Vi homens com cabeças de cavalo e ternos felpudos conversando entre si, vi paladinos lutando contra monstros de carne e remédios ambulantes, a escuridão sorrindo para a luz, travando uma guerra homérica para descobrir quem seria o soberano naquela noite de sonhos.
Tentei me embrenhar por algum caminho de coerência. Vi uma ponte de chocolate que atravessava um mar de refrigerante, e decidi correr até ela. Não me preocupei com a gordura hidrogenada grudando-se na sola dos meus pés, e nem com o fato de que a ponte se dissolvia à medida em que passava. Sabia que o caminho que tomava era perigoso, mas, mesmo assim, continuei. Até porque, agora não tinha mais volta.
Vi um portal enorme que girava em cores psicodélicas, como a porta de um grande e divertido circo. A azul e o verde giravam como numa roda gigante, brilhando em neon ofuscante. Um gordo de cartola e bigodes recurvados dava boas-vindas, enquanto um coelho marrom berrava a plenos pulmões “venham! Sonhos, sonhos, entrem nos sonhos! Entrem nos sonhos!”
Parti, entrando naquele portal. Do outro lado, percebi que estava em outra área da imaginação do menino. Os olhos dele observavam tudo, como duas luas gigantescas, brilhando no céu. Eram dois globos esverdeados e completamente redondos, que piscavam pouco e pareciam sempre arregalados.
- Quem é você, quem é você, o que faz aqui?
A voz vinha de todos os cantos e de canto nenhum. Nunca achei que isso fosse possível, até o momento em que a ouvi.
- Sou pesquisador, quero saber o que essa criança teme! – gritei.
- Criança, mas que besteira! – respondeu. – Ele tem cinco anos na cara, já é maduro! Pelo menos é o que ele diz sempre! A gente tem que tratar ele como adulto, moço, senão ele fica com raiva!
- Como adulto, devo presumir que ele não tem medo?
- Você fala difícil! Presumir, que palavra engraçada! Mas é claro que ele tem medo, como não poderia ter?
- E quem é você? – perguntei, olhando para os olhos do céu, que piscavam, curiosos.
- Eu sou todos os desenhos que ele vê, todos os choros que ele chora, todos os risos que ele ri. Eu sou a areia do deserto e a água do mar. Eu sou tudo, eu sou nada! Eu sou um monstro assustador e uma garotinha indefesa! Sou a morte e sou a vida, sou a alegria e a tristeza, a saúde e a doença! Hahaha! Sou o que você quer ser e o que você mais despreza! Sou uma quantidade infinitesimal de sensações, sabores e gostos. Sou tudo! Sou ele!
- É a mente dele?
- A mente, a consciência, a realidade, a fantasia, fale como bem entender, serzinho desprezível. E você, é o quê?
- Já disse antes, sou pesquisador. Pesquiso os medos. Quero saber porque os humanos têm medo!
- Ora, mas você já respondeu sua pergunta, criatura burra! Hahaha! São humanos! Sou humano!
- E por que você não tem medo agora?
- Hoje é dia de alegria, moço! Hahaha! O circo chegou, hoje é alegria alegria, e felicidade! Não tenho motivo para ser triste ainda, não quando ganhei um videogame novinho! Estou dormindo feliz e alegre, moço! Volte outro dia, volte outra hora! Hoje você só conhecerá a alegria e a felicidade de uma criança!
- E como posso conhecer o medo?
- Em duas oportunidades: espere uma tragédia ou procure outra pessoa! Hahaha! Hoje é só alegria, alegria!
- Não! Eu tenho que saber o que é medo! – mudei minha forma (desde sempre isso foi possível, mas só uso em casos de necessidade). Virei uma massa disforme de escuridão, com a pretensão de acabar com toda a alegria e povoar os pensamentos com formas soturnas e vozes diabólicas.
- Hoje não, não senhor! – um enorme pote de maionese me capturou em pleno ar, fechando-se com força. Não havia por onde a fumaça sair. – Hoje é alegria, as coisas têm que ser equilibradas! Depois, depois vem os sofrimentos, depois vem a dor, depois vem o medo! Mas não agora! Agora é época de felicidades e despreocupações, de boas lembranças e de choros desnecessários. Agora meu poder é forte! Volte quando ele crescer um pouco mais e esquecer o que é imaginar, aí então você poderá vir povoar os pensamentos dele. Espere uns anos, meu senhor, sei que para você não é muito, e então volte! Então eu já terei ido embora, e outra irá substituí-lo. Pode ser uma coisa boa, ou uma coisa ruim, como você. E então ele pode ter medo! Hahaha, mas não hoje!
- Então essa é a razão do medo?
- Claro que sim, e porque não? São vocês os criadores do medo, curiosos desgraçados! Vocês vêm e querem descobrir o que é medo, e se tornam o próprio medo, e então ficam aqui aprisionados para sempre. Vocês são a paranoia e o sofrimento, o medo infundado e o pânico. Hahaha, mas não aqui, não hoje. Hoje é dia de alegria, com certeza, sim senhor! Amanhã, senhor. Amanhã ele pode ter medo de escuro. Amanhã ele pode pensar em monstros no armário. Mas não hoje! Hoje ele só quer o videogame! Agora chega! Ponha-se daqui para fora! FORA! FORA! HAHAHA! FOOOOOORA!
Então os homens com cabeça de cavalo apareceram como um exército bem organizado, e carregaram o grande pote de maionese para fora. Jogaram-me dentro do mar de refrigerante, onde o pote dissolveu-se e virou gás.
Parti dali atordoado. Aquela noite seria de sonhos bons. Quem sabe em outro dia eu pudesse ser o protagonista dos sonhos e dar um pé na bunda da felicidade?
Quem sabe amanhã, talvez.