Contos do Vento - Apresentação

Definitivamente algumas cenas ou imagens deveriam ficar marcadas para sempre em nossa mente. Infelizmente só fui me dar conta disso tarde demais.

Hoje em dia, passo um olho por toda a casa já meio vazia e sem cor. Venho voando e remexendo meus olhos. Para cima, para baixo e para os lados. As infiltrações na parede branca já não me entristecem mais. Aquela velha porta de madeira, já não se fecha mais também. Esse tipo de coisa não tem importância desde que aprendi que minha vida nunca terá um fim. Por um desses passeios, visitei minha antiga casa.

Um velho amigo deitado no chão da sala, sem camisa e resmungando enquanto dormia. Eu costumava ver muito isso. Ver as bebidas jogadas pelos cantos e as drogas ainda não usadas deixadas em cima de nossa mesa.

Foi numa dessas viagens que descobri que mesmo eu tendo minha forte personalidade, eu não sou Deus. Encontrei um rapaz, ele era estranho. Tinha cabelos arrepiados, muitos anéis nas mãos e sempre, sempre com um cigarro entre os dedos. Quando o vi, ele estava se balançando em cima de um muro. Era o muro da prisão, mas ele não era um prisioneiro. Na ponta de um só pé ele se arriscava, pois o muro era alto demais. Chorava silenciosamente. Esfregava os olhos lacrimejantes irritados com a fumaça do cigarro. Aquela cena estava me fazendo sentir uma certa tristeza, pois me identifiquei muito. Comecei a entender seus gestos e resmungos. O rapaz tinha perdido de uma só vez todos seus amigos num acidente de carro numa estrada perigosa. A mãe de um deles avisou que não era pra usar álcool enquanto dirigia. Os meninos não deram a mínima, e deu no que deu. Mas esse rapaz teve grande sorte, pois o ônibus que iria pegar pra se encontrar com os amigos no centro da cidade quebrou.

Num descuido meu, o rapaz se deixou levar pelo desespero. A lua minguante estava no momento coberta por nuvens negras de chuva. Alguns gatos miavam pela prisão à dentro. Estávamos iluminados somente pelo holofote que vinha de dentro da prisão. E o desequilibrio representado de várias formas, levou o rapaz para baixo. Senti que não era aquilo que ele queria. A queda não demorou mais que quatro segundos, mas para o pobre rapaz se passou vinte anos, a sua idade e toda sua vida. Felizmente eu estava por perto no momento, e um segundo antes dele encostar naquele chão sujo, eu o levantei e coloquei-o novamente em cima do muro. Fiz o ar entrar pelos pulmões, e chegar até o cérebro novamente com intensidade. Os soluços do choro foram ouvidos a quilometros de distância.

Mostrei quão grandioso era o mundo a sua volta. Mas ele reclamava que estava sozinho, mesmo já sabendo que está junto de seis bilhões de semelhantes. A metade da laranja está jogada pelo universo a fora, e um dia ele vai encontrar. O rapaz não me deu ouvidos. Realmente, eu confesso que fui terrível, só disse bobagens. Esse tipo de coisa não se diz a quem já não tem mais vontade de viver. Eu deveria ter-lhe apresentado uma realidade pior do que a que ele vivia. Eu fui terrível, digo novamente. Tão terrível que eu quis me jogar de cima daquele muro, mas infelizmente eu não pude.

A verdade é que ele amava viver, mas tinha perdido essa vontade porque já não estava mais junto de seus amigos. Depois desse nosso primeiro encontro, nós nos reconciliamos e esse rapaz se apegou tanto a mim que por vezes me sinto sobrecarregado. Mas é muito bom sentir no fim da tarde toda aquela gratidão fluindo dele e vindo pra mim.

"Eu sou o seu relógio, sou todo o seu tempo. Te preencho por dentro e te deixo mais tempo por aqui. Eu sou sua beleza e sua feiúra, o seu bem e o seu mal. Não tente me dublar, você não vai conseguir. Quando você se fechar, eu serei a sua personificação e você sentirá isso na pele. Pois por agora, vou-me indo. Irá me querer por perto, e quando isso acontecer, olhe pra cima, inspire fundo, mas me solte e deixe-me ir."