Packa Kun e o Tempo

Packa Kun escalou mais uma vez, naquele mesmo dia, a falésia onde ficava sua cabana de bambus . Suas articulações doentes faziam -lhe tremer as pernas ossudas ; nos braços encanecidos, de mãos arruinadas, não havia mais força, nem o mais leve sopro do vigor dos àureos tempos, quando era o guerreiro mais valente da ilha , o pescador mais habilidoso, a voz mais potente e harmoniosa, o homem mais disputado pelas belas dançarinas .

Por tantas habilidades nele concentradas , tanta inspiração de alma, os habitantes da ilha chamavam-no de Ojilato Mahan __ o desafiador dos deuses ! E assim fora por muitos, muitos doces anos. Só o mar era mais bravio e sedutor, só as estrelas faziam as mulheres suspirarem mais alto do que o inigualável Packa kun.

Mas, nos descuidados anos da juventude o jovem guerreiro neglicenciou suas obrigações para com os deuses. Os sacrificios que todos os habitantes prestavam regularmente diante da lua ,ou no raiar do dia ,desprezava-os Packa kun. O ultraje maior era para com Jamethi, O Tempo, pois o jovem ignorava todos os conselhos dos mais velhos para que se prevenisse dos anos da velhice ,que viriam até para quem não acreditava em sua chegada. Chamavam-lhe atenção para os excessos que cometia e para a leviandade que lhe afastavam sempre da união duradoura com uma jovem. Em vão, o velho pai implorava, entre lágrimas, para que não desperdiçasse a melhor semente de seu vigor em aventuras amorosas irresponsáveis; sem sucesso sua mãe pedia o neto que perpetuaria a boa linhagem da família, e olhava para as constelações apreensiva. Sabia que para cada pessoa havia um ciclo determinado desde o dia de seu nascimento. Ele dizia quando alguém seria iniciado nos segredos da vida , do amor, do conhecimmento e da geração de filhos. Quando esse ciclo se fechava, não havia volta, era colher uma fruta que já apodrecia no pé.

Para todas essas queixas e cuidados o jovem respondia sempre com um sorriso exuberante e balançava a cabeça ,abençoada com os cabelos mais negros e brilhantes que já se viu. " Medrosos!" dizia em seu coração destemido, e teimava em sua inconsequência ,sem um sinal hesitação.

E assim ,de uma só vez bebeu Packa kun da seiva que vibrava em suas veias. Atirou-se de cabeça no precipício de todos os prazeres, de todos os gozos, sem descanso, nem cuidados . Não queria desperdiçar nada do que recebera com tanta liberalidade dos Deuses, parecia-lhe mesmo um crime não experimentar a vida plenamente, amá-la mais e com mais vigor do que se amaria a mais linda das mulheres ou o mais corajoso dos homens. Acreditou cegamente que Jamethi o pouparia de sua dolorosa e degradante passagem, que não aviltaria seu corpo e sua alma ,pois era-lhe claro , a ele Packa Kun , que seria uma espécie de ídolo vivo, uma amostra bem acabada do que os deuses reservavam para as gerações futuras daquela ilha . Essa idéia ,ele a engedrarara lentamente em seu espírito . No começo era a penas uma semente , uma tímida indagação . Mas em sonho, num grandioso sonho que teve certa noite, ele via a si próprio, rompendo incólume a barreira dos séculos. Aos seus pés uma ilha transformada, um paraíso elevado a mais alta potência e uma multidão de jovens que o veneravam ,que lhe atiravam flores ,como se ele próprio fosse a fonte de toda aquela ventura.

Sua vaidade não precisava de mais afagos, sua inteligência rendeu-se à armadilha que Jamethi tão ardilosamente planejava, enquanto os anos passavam por Packa Kun.

Dias, noites, estações, anos de sua vida foram lançados num redemoinho angustiante onde todas as sensações foram se tornando cinza, exaustivas, repetidas. Quando percebeu o engano de sua pretensão ,já não havia mais como arrepender-se.

Despertou enfim de seu longo sonho e viu-se velho, muito mais velho e entristecido do que todos aqueles a quem havia enterrado. Packa Kun era o único sobrevivente de suas geração. Por 120 anos o impiedoso Jamethi o arrastara, fazendo-o relembrar todas as imprudências da radiosa juventude e cada lembrança era uma marca a mais em seu rosto, uma chaga acrescentada ao corpo consumido. Era triste ver a sombra do que ele fora arrastar-se pela areia ,fitando com inveja o mar invencível. Por quantas vezes pensou em atirar-se a ele para nele afundar como uma pedra, e pelo menos assim não precisar confrontar-se com a imagem que ele via refletida nas águas ,aquela imagem disforme ,que nada mais era que a cruel gargalhada de Jamethi.

Mas faltava-lhe também a coragem dos velhos tempos, temia agora a morte. Temia encontrar os amigos e parentes do outro lado, rejuvenescidos e descobrir ,horrorizado, que seu inferno seria observá-los assim, risonhos e belos enquanto ele, distante, permaneceria só ,no escuro de sua pretensiosa alma, ainda alquebrado por uma velhice perpétua.

Esses e outros temores aterrorizavam sua existência. Uma existência cada vez mais solitária ,pois os novos habitantes da ilha hostilizavam-no severamente. Aproveitou-se então das últimas forças para construir no alto da falésia uma tosca cabana de bambus. Uma das paredes ficara pendente ,mas ele não tinha mais forças para aprumá-la. Toda a noite, quando o vento frio invadia por todas as frestas a velha cabana, ele sentia-se morrer de frio e solidão.

A aversão da ilha em relação a Packa Kun vinha de uma série de coincidências desastrosas. Quando packa kun era avistado descendo de sua cabana, sua chegada sempre era precedida de uma catástrofe qualquer; ou um vulcão tremia ameaçando cuspir sobre os nativos sua saliva incandescente ou o vento que, em rajadas repentinas sobre a aldeia, zombava da gravidade; outras vezes era o mar que bramia insandecidamente,debatia-se desvairado, parecia querer estender seus limites para muito além do que os deuses determinaram.

Então, os sobreviventes entenderam cedo que atirar pedras naquele ancião de 120 anos , de aspecto triste e cadavérico,que insistia em se dizer inocente daquelas violências naturais, era uma obrigação de todo habitante da ilha que desejava ver os filhos crescerem; na verdade, alguns achavam que o sacrifício daquele ser que parecia irritar tanto os deuses era a única coisa correta a fazer. Com o tempo, persistindo o que Packa Kun chamava de "lamentáveis coincidencias " o número de adeptos de seu sacrifício para acalmar os deuses atingiu toda a ilha, sem exceção.

Se o nada venerável Ancião estava ainda vivo era porque as coincidências que o condenaram também o mantiveram a salvo do levante que ,num dia nublado, o arrastou, conformado de sua sina, ao ponto mais alto da ilha. De lá várias mão bronzeadas prepararam-se sem remorso, para atirá-lo do alto do penhasco até os braços eternos do grande mar. E de fato de lá foi atirado, com uma pedra amarrada nos pés, em meio a uma ovação estrepitosa __ e dos corações de seus algozes a antiga alegria dos holocaustos humanos foi ressuscitada. Mas, quando o velho corpo de Packa Kun foi acolhido pelas frias águas oceânicas , lá permaneceu, sobre a superfície, recusando-se a afundar, com a enorme pedra flutuando a seu lado impávida, como se não tivesse consistência real. Packa Kun foi jogado por alguns segundos de um lado para o outro até que o mar cansou-se do brinquedo e lançou-o mansamente nas areias da praia.

Os nativos acompanharam a breve jornada com assombro. Consultavam-se mutuamente com olhos vidrados e interjeições abafadas, embriagados com sua própria incredulidade. Viram Packa Kun com dificuldade livrar-se do nó que o prendia à pedra e depois arrastar-se por alguns metros sobre a areia e lá permanecer, ofegante.

Desde aquele dia ,desistiram do sacrifício,acreditando que algum deus havia sido tão ofendido por Packa kun , que o queria vivo por séculos para impirgir-lhe indefinidamente toda sua ira, por isso não seria correto tirar das mãos da divindade seu legítimo direito,e assim mantiveram-no apenas afastado do centro povoado da ilha para que ele não arrastasse até o restante dos moradores o ódio que o perseguia.

Packa Kun, esse não sabia se devia agradecer ou maldizer o milagre que o livrara da morte naquele dia . A única coisa de que tinha certeza era de que a sua tristeza, a sua derrota permanecia lá onde tinha estado desde muito, muito tempo, dentro do peito seco, preenchendo ocoração que não sentia bater.

Desde aquele dia havia permanecido confinado aquele ponto da ilha onde fizera a cabana. Alimentava-se de raizes e, raramente, peixes quando conseguia pescar.

Assim viveu por mais muitos anos ,sem contá-los . Então uma noite sonhou com uma grande baleia branca que o chamava para o mar, e então packa kun viu-se novamente pleno de juventude e lançava-se ao mar com a certeira lança que tão cedo aprendera a usar.Fitava a besta frente a frente ,sem que as escuras águas oceânicas lhe impedissem a respiração,novamente potente. Os olhos ameaçadores do animal mítico convidavam-no para a batalha, instigavam-lhe a fúria das caçadas. Nesse momento ,desenrolava-se uma luta heróica: Packa -Kun investia sobre a baleia, e ela , num balé mortal, tentava atingi-lo em cheio com a cauda.

Em sua cabana, o velho Packa Kun debatia-se sobre o pobre leito de varas ,asfixiado, e sentindo no corpo as violentas investidas da baleia . Em meio a terrível agonia de uma luta desigual , ele acordava sobressaltado, arquejante, tentando compreender o significado daquele sonho, mas o cansaço levavá-o novamente à inconsciência.

O sonho repetia-se todas as noites, sem que nenhum detalhe fosse esquecido. E sempre o ancião despertava atormentado , meditava longamente o motivo de Jamethi persegui-lo até mesmo em sonhos e, por fim, voltava a dormir ,sem esperança.

Um dia em especial , sentido-se acuado além dos limites suportáveis, ele desesperou-se sem salvação: O que mais o odioso deus poderia querer tirar-lhe? A sanidade? Pois nada mais lhe restava. Mas até essa última humilhação não permitiria que Jamethi o arrastasse. Naquele dia, decidira Packa Kun, ele finalmente se libertaria do capricho do Tempo e do ódio dos nativos. E com esse pensamento ,atirou-se ao mar. Se os deuses negassem-lhe o bálsamo da morte ,que não era negado mesmo a um animal, ele lá ficaria eternamente sobre as águas, sendo desfeito pelas ondas como um tronco podre ou servindo-lhes de brinquedo como uma jangada sem rumo. Seria menos desagradável do que a rudeza de seu leito ou o desprezo do povo da ilha. Mas tão longo o alquebrado corpo foi acolhido pelas ondas, foi sendo lentamente levado para o fundo , e o ancião notou isso com um imenso alívio . Não bracejou quando viu-se cobrir por uma onda gigantesca, antes fechou os olhos e inflou as narinas para entregar-se sem resistência à imensidão azul.

Esperou com alegria a agonia que se seguiria, mas embora estivesse já imerso no ventre salgado do mar ,nenhum incômodo ,nenhuma dor comprimia-lhe os pulmões. Abriu então os olhos: não mais afundava . Estava cercado pela exuberante vida marinha ,respirando como se estivesse em terra firme. Então,ao longe, viu uma movimentação que produziu um borbulhar estrondoso nas águas e reconheceu, com pavor renovado, que a mesma baleia que lhe aterrorizava os sonhos vinha em sua direção , com os olhos em fúria presos nele. O hálito da titânica criatura já lhe afogueavas o rosto quando ele viu a si mesmo pleno de juventude e com a lança palpitando em suas mãos . Não soube ou não quis pensar se ainda sonhava ou tratava-se realmente do derradeiro combate em sua vida. Não teve tempo de pensar a respeito , ergueu a lança, aprumou-a. O caçador que nele estivera dormindo despertou e de um único impulso, acertou o coração do animal ,antes que o golpe que este armara o atingisse . O urro que se seguiu cantou sua vitória enquanto a criatura volteava selvagemente o corpo ,tingindo o mar de vermelho. Foi quase asfixiado de alegria que nadou novamente até a superfície ,com o corpo vigoroso vencendo velozmente a resistência das águas. Alcançou a praia e finalmente olhou o céu agradecido. Então às suas costas, ouviu cânticos que não ouvia desde o tempo de sua infância ,entoado por vozes amigas. Olhou enlevado para a direção de onde vinham e reconheceu a ilha de seus sonhos ,o paraíso que os deuses outrora lhe prometeram .As vozes estavam cada vez mais próximas, cada vez mais nitidamente as reconhecia . Aos poucos pode ver-lhes os rostos, unidos numa procissão em exaltada alegria, coroados por guirlandas . A frente do grupo vinham seus pais, como se lembrava deles na infância. As jovens que enterrara já em avançada idade, via-as todas ali, juntamente com os amigos , desabrochando na mais esplêndida beleza. Atrás deles toda uma multidão de bem aventurados, seguia-os ,agitando ramos e flores,os rostos iluminados por algo que antes de sua expiação reconhecia como felicidade.

Packa kun correu até eles sabendo que nada mais havia a temer de deus algun. o ciclo da vida cumpria-se finalmente para ele também , soube disso ao sentir todos os queridos braços em torno dele.

Na velha cabana de bambu, os primeiros raios de sol surgiam entre as frestas e caíram calidamente sobre o corpo do velho homem que em vida desafiara os deuses. Era o mesmo corpo alquebrado, só que mais rijo e para sempre imune ao frio ou à dor. Ninguém da ilha veio velar-lhe o corpo ou dar-lhe as honras funerárias que costumavam se seguir à morte dos anciãos . O corpo ali permaneceu como havia sido em vida, esquecido. Ali, os vermes o consumiram até que nada mais restasse.

Seu espírito, no entanto, não tomou jamais disso consciência , longe, muito longe que estava agora.

Áurea Barbosa
Enviado por Áurea Barbosa em 05/01/2009
Reeditado em 17/01/2013
Código do texto: T1368180
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.