A insónia e a vigília
A dúvida o consome como o verme aos ossos e a ferrugem ao ferro. Não saber é o que o deixa mais triste e angustiado. Suas noites em desvãos macabros e insones transtornam seu dia, as vigílias prolongadas enquanto deveria haver descanso é o que termina por tornar insuportável aquilo que se poderia facilmente manter sob as rédeas da sanidade e do controle típico do homem ocidental. Mas ele não, perdeu-se no abismo da psicopatia, da enfermidade da consciência, das neuroses freudianas e jungianas. Abelardo é um desses que tratam-se em busca de uma cura para algo imaterial, para algo que não deveria nem existir. Mas está lá, a cada passo das cores, a cada sentido dos sons. Sua latência fica entre a silenciosa companhia da cidade à noite e o barulhento calor das luzes que absorvem sua mente em divagações absurdas. Não sabe exatamente quando começou tal desregulo do sono, acordou já no meio do desatino, do insalubre tempero do despertar em horas inconvenientes.
Sente-se pressionado pelas forças alheias da natureza, desde que suas noites tornaram-se dias e seus dias madrugadas insones os sons vieram ganhando mais e mais força entre os espaços ocos de seu corpo. Mal sai a rua para que qualquer vibração o atinja com a força de um tiro, como um rito, como um semblante ironicamente sorridente que aparece a cada piscar de olhos, entre o claro das ruas e o escuro da mente. Cambaleia entre um lugar e outro, entre uma rua movimentada e todos os nauseantes sons dos transeuntes e qualquer beco deserto competindo com o vácuo de pessoas. Entre as horas gastas em frente ao computador em seu emprego e as horas gastas em lugares silenciosos fica a tortura diária de suportar todo tipo de cliente, idéia disparatada e ordens impróprias para um ser humano comum. Certos gerentes e supervisores tem o péssimo hábito de pedir o que não pode ser cumprido, ou de exceder as atribuições de um funcionário, obrigando-o a buscar apoio de terceiros que cobrarão o favor em alguma hora também imprópria.
Nesses instantes que se doa ao trabalho, por um salário miserável e uma desonra digna de um mendigo, vê-se rodeado de figuras fantásticas e fantasias que apenas alcançam sua mente insone, seu divagar ébrio por não dormir, enquanto sua sobriedade é arrancada. Digitar teclas incertas e errar diversas vezes as mesmas palavras o faz piscar, passar a mão suada pelo rosto saliente e com pelos ralos espalhados por onde deveria ser a barba o faz acordar momentaneamente, enquanto deveria dormir o sono dos injustos, dos lacunais. Olha para os lados, percebe que nem um ser humano que possa condená-lo transita perto de sua mesa. Ao prazer de um impulso sádico dispara todos os impropérios conhecidos por sua perturbada inconsistência, deixa vazar na tela de um .doc qualquer impulso violento que logo tomaria forma de agressão se fosse vomitado sobre um corpo humano.
Ele é um exemplo daquilo que bem poderíamos ser caso fôssemos aquilo que somos. Mas ele só atinge esse estado por não dormir. Por varar horas ermas dentro de seu mundo particular, entre os livros de Schopenhauer e os de Sartre. Somente ódio e falsos, porém verídicos e fortes, moralismos o tomam. Mas quando será que irá acordar e sair desse mundo? Talvez demore eras antes que a velhice venha e o torne tão consumível quanto um sanduíche dessas que faz e te fodem, ou talvez ele simplesmente acorde agora, enquanto ainda é jovem e pode gozar os corpos de mulheres vulgares que ocupam o sonho dos mais intelectuais dos idealistas. Por enquanto segue sua rotina engravatada sentado num alcochoado e preguiçoso lugar entre os olhares hipócritas de seus colegas de trabalho que tanto insistem em tê-lo entre os convivas de uma confraternização de cobras e lagartos.
Quando seus olhos alcançam os olhos de outrem percebe-se que algo anda errado, que o mundo não gira, mas as pessoas giram em todos os sentidos dentro dele. Todos giram e os devaneios fazem o dia e a noite alternarem musas e demônios, fazem a divagação não ter sentido, não ser conexo. Os dedos percorrem os teclados salientando diversas vezes que as linhas são de palha e os cabelos de grama. Ele vira-se e encontra um clone, uma cópia fiel e perfeita daquilo que não é. Lava a cara no espelho, olha bem fundo em seus olhos e lembra: “Ainda estou no trabalho”.