Chuva maldita, pare de cair!
Deixo a xícara de café pousar no balcão da cozinha americana mais uma vez. Ela já está vazia, o que antes trazia aquele líquido quente, mas mesmo assim ele não me aquecia mais por dentro. A sala já estava escura e, naquela minha tola esperança, olhei para a janela procurando algo novo, o sol. O sol que não vejo há muitos dias. É estranho dizer, mas desde que me mudei para cá, não vejo o sol. A chuva não pára de cair e quando cessa um pouco, o céu fica nublado, aquele cinza triste, as nuvens e a neblina tapando qualquer chance de sair uma faixa de luz quente até mim. Ah, chuva maldita, pare de cair!
Os dias ficaram monótonos desde então. São os dias que ela me deixou, formados de lembranças e sonhos. Sonho sempre com aquele sorriso velho, alegre e convidativo. Aquela cozinha onde o sol entrava pela janela e se sentava ao lado dela meu irmão. Meu irmão? Ele era meio estranho. Tinha o corpo de adulto, mas a mente de bebê. Não falava direito, não conseguia andar e suas mãos nunca faziam o que ele queria, mesmo que seu desejo apenas fosse pegar um copo de água. E chorava, chorava como um bebê, mas é mais velho que eu. E a senhora ali, a nossa, não deixava transparecer nada de esquisito, sempre sorria, brincava com ele como se ainda fosse criança, levava aquilo no lado positivo.
“Você vai crescer, mas eu sempre vou ter uma criança para mimar.”. É, ela sempre teve a criança para mimar.
Os sonhos que tenho desde que me mudei para esta cidade chuvosa são mais estranhos ainda. São do sorriso dela e da risada, depois do sangue... o sangue... sempre aparece um sangue na pia. Comprei um livro de significado dos sonhos e ele me diz que sangue sempre significa dor. Que dor?
Dor eu sinto aqui, nesta cidade onde não pára de chover. Na igreja, quando eu vou, ninguém mais entra. Parece perseguição ou uma aula de isolamento. Em meu trabalho, dentro do escritório, meu colega ao lado nunca vem e minha única companhia é o retrato dela encima da mesa... e a chuva... Ah, chuva maldita, pare de cair!
Não sei se me acostumei com o clima, mas meu corpo e minha alma estavam começando a ficarem frios como a chuva, como os sonhos. Até quando aconteceu este ocorrido belo em minha vida. Sentado ali, em frente à xícara de café, olhando a janela de longe, ouvi um barulho. Levantei para ver o que era e vi lá embaixo que um sapato meu, que secava na janela do quarto, tinha caído na calçada. Que jeito? Fui pegar. Me molhei daquela chuva, já que minha sombrinha tinha quebrado e peguei o sapato. Mas, percebi antes que ele tinha caído bem na frente de um barquinho de papel. O barquinho, por sua vez, estava ali montado por algum menino levado, navegando pela correnteza de água no canto entre a calçada e a sua, passando por cima de bueiros sem parar até que... meu sapato cai e impede sua trajetória. Isso foi frustrante, ou eu não tenho mais o que fazer, a não ser olhar aquele barco ir embora, quando retirei o sapato do lugar.
Acha que acabou aí? Não. No outro dia quando acordei e fui pegar o ônibus, olhei pela janela a rua embaçada. Estava nublado, mas não chovendo. E adivinha quem passou pelo ônibus, sempre seguindo em frente? O barquinho. Aquele barquinho!
O barquinho, pensei, parecia comigo... solitário, sempre vagando no meio da chuva para algum lugar sem saber para onde. O barquinho percorria a cidade inteira assim e nem meu sapato conseguiu o parar. Pouco depois, ao sair do meu trabalho, também lá estava ele, passando por mim, navegando na correnteza da rua. Sacudi a cabeça e achei que estava começando a ficar paranóico. Era a solidão que me fazia imaginar coisas, como uma tolice daquelas: Um barquinho de papel me perseguindo! E sabe da pior? No domingo, quando fui à igreja, lá estava o barquinho, passando pelos degraus e desviando das folhas caídas.
Nesse momento me irritei. Fui até o barco no meio da chuva e peguei ele para o ver. Meu companheiro estranho. Era feito de folha de caderno e havia algo escrito nele. Incrivelmente a chuva não tinha borrado as letras. Então, sentei-me no degrau da igreja, com ele nas mãos e abri o papel, com algumas partes molhadas e moles, outras ainda secas por estarem dobradas. Aquelas palavras bateram em mim como um tapa. Estava encabulado. Quem foi que escreveu isso? Parecia até filme, uma mensagem ali, uma coisa que combinava comigo e incrivelmente eu poderia dizer: “Não, é por que é um barquinho.”.
“Pingos de chuva, gotas de sangue. A sala vazia e o coração frio.
Pingos de chuva, gotas de sangue, me leve para onde houver sol.”
Era brincadeira. E bem bolada. Um barquinho solitário, sempre navegando na chuva, sem saber aonde ir, mas, sempre indo onde eu estou e pior, a procura de sol. Era realmente brincadeira. Lembrei-me desde então da cozinha ensolarada e do cheiro de bolo de milho. O café quente, ah, quente e aquecedor. O sorriso, o café feito à mão, o bolo de milho e o sol. O sol. Era isso. Dobrei o papel de novo em um barquinho e observei ele voltar a passear, a se afastar e passar por mim... ir embora... para onde houvesse sol.
Naquele dia resolvi mudar. Ao chegar em casa, tomei um banho quente (que não me aquecia) e arrumei as malas. Pus o livro dos sonhos dentro do bolso interno do palitó e me meti dentro de um ônibus de viajem. Por incrível que pareça, choveu o caminho quase todo. Mas, era a última vez que teria visto aquele barquinho, aquele escritório, aquela igreja, aquele sorriso e o sangue da pia nos sonhos. E o café amargo e gelado na bancada da cozinha. Adormeci o resto da trajetória.
Para minha surpresa, fui acordado por uma faixa de luz no ônibus. Luz! Uma faixa de Luz! Meu olho ardeu, mas, aquilo era maravilhoso, era o sol! Sentia o calor tocar em mim de novo e percebi que o ônibus estava vazio. Não, não estava viajando para qualquer lugar, sabia onde iria e sabia que ali era o último ponto, era onde eu queria chegar. Saltei, com as malas na mão e cobri o rosto pela rua até me acostumar com a luz intensa, com as cores vivas de uma cidade ensolarada. Ensolarada! Depois de meses, suei. Cansando, com o calor, chegando até aquela velha casa de tom amarelo pastel, grades azuis marinhos e telhado de barro vermelho.
A visão que tive foi a mesma dos sonhos. Quando entrei na sala, fui direto para a cozinha e vi ali, meu irmão dormindo numa cadeira, com os ombros encolhidos e a cabeça caindo para um lado. Um bebê dormindo. E quando olhei para o lado, vi sangue na pia. Assustei-me. Sangue e uma mão ali, cortando carne de carneiro. E aquele corpo robusto se virou para mim, baixinho e então vi o que procurava. O sorriso. A senhora. Mais parecia um sonho do que realidade, porque minha visão começava a embaçar, sentindo latejar a cabeça de andar no sol quente depois de tanto tempo. Mas, para mim o sol só era matéria, a dor vinha da alegria que pesava em minha mente. Invadia meu corpo desacostumado e esquentava tudo por dentro, mais do que banhos, mais do que cafés. E o abraço da senhora, o ronco abobalhado do irmão, tudo me fazia esquecer por minutos que no dia anterior eu estava na cidade onde a chuva não parava de cair.
O ódio em minhas veias eu senti fluir quando me perguntei por dentro porquê eu tinha abandonado aquele lugar. Mas, o máximo que fiz naqueles momentos curtos foi sorrir e abraçar a senhora. Foi abrir a janela para deixar o sol quente entrar na cozinha de novo e avistar, ali parado, perto da janela, o barquinho de papel, seco, sem mais poder navegar, em sua terra firme. Chegou em sua terra firme.