O Vapor das Horas
Por que ainda não amanheceu?
Por que a madrugada é tão longa?
Quando se espera, de tudo se espera!
É o dia, não é casamento, não é aniversário, não é noivado, não é batizado. É o dia, apenas uma visita.
E quantos anos faz mesmo que não se vêem? Não sou poucos, não são 2, não são 3, não são apenas meses. 10 anos de distância fazem a dor ficar muito pior, sofrer em conjunto faz melhor a saúde.
Era o dia. Não era a mor, não era amizade, não era família, mas conheciam-se, correspondiam-se para tentar amenizar a torrente de emoção, e hoje iriam rever-se os velhos e bons conhecidos.
Em segredo eles sabiam e admitiam nas correspondências que era amor sim. Amor de paixão de viajar a noite toda para se ver... Mas ela tinha também outros objetivos: trabalhava viajando, então de folga, viajou mais uma vez para encontra-lo, ouvir sua voz, fazer um dia para nunca mais ser esquecido.
Conversavam até pela internet e conversando entendiam-se, tinham suas diferenças, e numa das igualdades entrelaçavam-se o gosto forte pelas bebidas quentes, o brindar em vão dos líquidos borbulhantes num recipiente fervendo os lábios.
Uma roupa não necessariamente bonita, mas marcante, nada de senhas ou códigos, ao choque de olhos nos olhos a paixão diria com sorriso: “Está ali!” E uma corrida findando em abraço e beijo para matar todas as possibilidades de saudade.
A chaleira ferveu e ele fez seu café fervido, fechou os olhos para sentir a garganta queimar. A fumaça quente nublou seus óculos, na janela os primeiros raios de sol encontravam a vidraça.
A veste toda preta sobre o sofá esperando recobrir a felicidade em pessoa... O gato roçando suas pernas pedindo a úmida ração. Brincou com o gato até o bip do microondas e o salto das fatias de pão da torradeira. Um desenho muito infantil não lhe distraiu enquanto se vestia, poliu os sapatos, fechou um pouco a cortina para não doer-lhe os olhos com o alto sol. O vizinho começara sua reforma e nem era oito horas, o síndico precisava saber disso. O bate estaca na parede ao lado incomodaria não fosse toda a alegria que estivesse pela frente. Ainda não era a hora, ferveu mais uma chaleira e ao assovio da senhora de inox contemplou o interior da porcelana transformar-se em rubro fluído perfumado. O chá de morango fazia maré na porcelana, os grandes goles morriam em gotículas sobre o bigode, a cheia quente sobre a língua era demasiado prazeroso.
O gato insistia em sair junto com ele, num ato certeiro trancou a porta de mal com o bichano. Desceu levando o lixo da casa consigo. Tomou um táxi, o do Sr. Jaime, uma distinta moça na portaria sorriu-lhe familiar, ela nem respondeu, ela fitou-o intrigada, imóvel, ele tinha mais o que fazer e como costume embarcou no táxi, o primeiro ponto de encontro era seu destino... Mas e o presente? Como não dar, como calar esta façanha, como não lhe fazer a surpresa, como não colocar no mundo mais um sorriso maravilhoso daquela mulher, e um presente lhe faria sorrir certamente.
Admirando rosas numa vitrina decorada por marcas de dedos, impressões digitais interrogativas, esbarrou numa madame e seu poodle ao passar pela porta de maçanetas gastas, lá dentro namorados presenteavam moças inocentes e filhas escolhiam um carinho para as mães. Emendava-se uma cafeteria no local, uma florida cafeteria iluminada contrastando os cravos bordos de uma coroa aos finados, e uma decoração de casamento de arranjos extremamente roxos. Homens gordos e carecas discutiam a melhor maneira de levar um vaso de 100 quilos para uma baile de inverno. No espelho, pagando seu pedido de rosas vermelhas viu um semi-crepúsculo querendo posse do dia, uma fina teia d’água descer do céu, desviou-se por poucos do café derramado no chão por uma jovem de muletas, encharcando e queimando o abdômen de uma senhora elegante. Lhe deu vontade de arrancar sua larga blusa de pedrarias e roubar aquele aroma de café expresso com chantilly, sorver do pesado tecido aquela substância divina. Saiu apressado murrando a porta giratória.
Ela ainda não chegara, mas o tempo era fiel, as mulheres atrasavam-se e o que era mais cinco, dez, quinze minutos para quem esperara 10 anos. Certamente ela também deveria estar escolhendo um presente á ele, e as mulheres são confusas, indecisas, despercebidas e adoráveis, tranqüilas, meigas e fadas numa leve brisa. A moça por si toda era um fadinha a voar neste mundo, e com seus lábios finos cereja, diria que lhe ama mais que tudo, ou não, 10 anos amando a distância complica a situação.
Da cereja de sua boca, pediu ao garçom um licor da fruta... Era ruim. Não dispunha de nenhum artifício do seu agrado. Fumaça alguma exalava, a temperatura ambiente, perguntando, descobriu que sua amada já havia estado ali faz um tempo, não se encontrava mais. Sua alma pulou de desespero, sentiu no esqueleto o vulto do ser querendo sair, as pernas em desencontro aos interesses.
Tinham um roteiro, lembrou-se e partiu para o próximo passo... Uma lanchonete no shopping central.
Um sol bem tímido colocava-se a disposição, fazendo miragens no asfalta novo.
Ele não viu, mas a cadeira que sentara na mesa pequena de ferro com pés enferrujados, tinha um chiclete de tutti frutti no assento, por conta do acaso pegajoso não levantou-se mais, olhou o cardápio decorando por semi-círculos amarelos, um casal de namorados discutia audivelmente em todo andar por qual salada escolher. Ele escolheu um sorvete de cereja. A taça tilintava sozinha e ela deveria já estar chegando, a qualquer momento suas pernas finas ganhariam o elevador panorâmico e pousariam em quase desmaio de emoção defronte ao estupefato cavalheiro. O sorvete estava quase congelado, o rosa cheiroso e o recipiente suado o faziam tranqüilizar-se, fios invisíveis e gelados acariciavam-lhe o nariz. Distraiu-se e esqueceu da cereja que esperava, em vão. Ela apareceu. Seguiu para o próximo passo, tendo de diminuir as pernadas em frente a uma forte liquidação de sapatos: “Talvez ela estivesse ali!” olhou esticando o girafal pescoço sobre a multidão, mas ela não estava ali, parecia não estar. Correu com seus sapatos retos no mármore lustroso do shopping, retomou caminhos até o possível hotel em que poderia estar hospedada, desatou a chorar sem medidas... Aquela maldita, aquela desgraçada, aquela adorável a quem eu tanto espero e amo, afogou-se com a própria saliva em excesso, arbitrariedades de um caso de amor inacabado, mas será que haviam realmente começado algo?
a porta automática do alguma coisa Palace não respondia ao comando de seu corpo, um moça de coque, maquiagem borrada e laço apertado no pescoço solucionou o problema, ele agarrou-se na pequena dama e perguntou ali perante a entrada, mais gélida do que o sorvete que ele acabara de tomar, ela apenas respondeu que iria verificar se havia algum registro no computador, e voltou ao balcão em seu salto fino gasto.
Duas eternidades de espera debruçado no balcão sem conseguir pensar em absolutamente nada, e de repente: “Sim, ela registrou-se aqui ontem a noite, ás 19h e 30m, e saiu hoje senhor, faz quinze minutos.”
Ele parou e o planeta terra girou a sua volta, precisava acalmar-se e um chocolate quente era essencial para fazer isso. Sentou-se no restaurante do hotel, e mandou a garçonete, que mais parecia uma aeromoça, ferver o leite e jogar o pó de cacau dentro. “Então o senhor quer um chocolate quente?”
“Não querida, isso é a receita de uma sopa de ervilhas”, Mas não respondeu isso, e aquiesceu com a cabeça.
Um copo de listas em alto relevo queimava de leve a mão da garçonete, um pouco de chocolate caiu na fórmica branca da mesa quando ali o depositou; ele queimou a boca cheio de prazer na espuma alva salpicada de pó marrom. O leite era fresco e fechou as pálpebras para degustar melhor o chocolate em sua real forma, era como um rio de terra lavando o esôfago, o leite grosso e o cacau bem moído com pouco açúcar, umedeceu e adocicou cada partícula da sua aura, os cristais da ao mistura arrastavam seus pensamentos. Não tinha mais esperanças, talvez fosse um sonho reencontra-la, um sonho sem realização.
Sua última expectativa, o sol em sua última aparição, dentre a multidão caminhava de cabeça baixa em marcha lenta, esbarrando em sacolas opostas, em marcas variadas, em adolescentes rebeldes e mal humorados... O aeroporto! Sujou uma senhora numa poça de lama, me frente a um lanchonete, no alto da placa girava uma cereja iluminada, contemplou-a por infindáveis segundos, era ela em imagem púrpura. Podia beber um suco ali mesmo, uma soda italiana, algo do tipo... Era tentação encarnada em vermelho, mas não era ela... O aeroporto.
Vai e vem, estrangeiros, guardas, revista, banca de revista, malas, cheiro de combustível, táxis, ar estupefato, camada de ozônio pesada. Queria matar-se entrar em catarse por que não possuía um telefone. Ele não tinha dela, ela não tinha dele, e seguiam-se a moda antiga por correio e raros encontros, tão raros que agora nem encontros não eram mais, e sim distância suprema, divindades em evaporação, líquidos esvaindo-se na fuligem.
Num surto do destino, viu uma mulher de costas indo para a pista de embarque, cabeças próximas ocultavam a solidão do ato. E nem uma palavra, nem um passo, apenas a dúvida pela eternidade: “Seria mesmo ela?” preferiu não ter certeza, viu a mulher afastar-se de costas, o veludo vermelho esvoaçante acariciando os calcanhares de couro de cobra. Tudo o que bebera contraiu-se numa única lágrima longa e vitral, estático admirou o pássaro de ferro ganhar aos poucos a plenitude dos ares, ela lá dentro... Ela lá dentro? Talvez, talvez, quase certo.
Antes de voltar a sua rotina parou num barzinho da moda, era perto do almoço, pediu uma moça na caneca. Fumegante chegou, e a consumiu, sumiu... Os legumes em ponto de brasa, o amarelo com conteúdo uniforme, o contraste daqueles legumes coloridos fazendo festa no caldo picante. A cada gole, um jato acalento de ternura em forma de mais calor, acolhedor... Como eram gostosas as delícias quentes da vida, e tudo na vida, tudo naquele dia era quente como seu coração, como seu sentimento.
Na recepção uma interrupção: um recado... “Uma moça esteve um tempão esperando-o aqui, já foi embora, faz uns quarenta e cinco minutos. Ela diz que cruzou com o senhor aqui na porta, mas o senhor nem olhou pra ela, ela foi embora chorando, desiludida.”
O familiar do sorriso daquela moça. Conseguiu ler no rosto da sua lembrança cada letra das cartas. O arrependimento, a igual desilusão, o ódio maior que todas as coisas, a certeza de um fim sem palavras.
Subiu rápido ao seu apartamento, precisava preparar cereja flambada, algo fumegante para se conter, algo no limite do calor para sobreviver.
Douglas Tedesco – 15/12/2008