Álvaro decide dormir, ou o conto do belo adormecido

Luciano abriu as janelas. O sol da manhã iluminou o quarto que explodiu em cores. As paredes todas eram pintadas em cores vivas. O seu amigo ainda estava deitado enrolado em um cobertor macio. Sentou-se na poltrona que sempre estava ali, a espera dos visitantes. Nestes dez anos nunca viera tão cedo, mas esta era uma data especial.

_ Sabe, Álvaro, a última vez que tinha te visto de pijamas foi quando você dormiu lá em casa. No meu aniversário de onze anos. Tem uma dezena inteira de anos.

Esperou um pouco, mas sabia que o amigo não responderia. Estava dormindo como estivera na última década. Dormindo mesmo. Os médicos disseram que não havia nada de errado. Não era coma nem nada assim, nem catalepsia, nem doença da mosca tse-tsé. Eles não explicavam, mas diziam que era apenas sono. Incomum, pois já durava anos a fio, mas sono. Às vezes, o jovem adormecido murmurava palavras, respondia perguntas em estado de semi-consciência, como quem tocado pelo sono perde as palavras, e vagando entre a realidade e a fantasia libera palavras desconexas, mas era só isso.

Luciano era o melhor amigo de Álvaro, sempre fora, desde a pré-escola. Moravam na mesma rua, estudavam na mesma escola. Sempre estavam juntos. Na quarta série, porém, algo aconteceu. Álvaro resolveu dormir, e dormiu. Nunca mais acordou. Foi um choque para Luciano. Quando dona Eloísa, mãe de Álvaro, veio lhe dizer que seu amigo dormia, temeu, achou que era eufemismo, que o amigo estava era morto mesmo. Quando viu com os próprios olhos viu que era verdade, o amigo apenas dormia.

Naquela época, há dez anos atrás, o quarto não era tão colorido. Era moda que as paredes fossem discretas, em tons desbotados, preferencialmente branco! Quando entrou no quarto não acreditou, o amigo que não aparecia há dois dias na escola nem na rua estava ali deitado. Aninhado em posição fetal, deitado de lado, com as mãos juntas sob o rosto. Os cabelos lhe caiam bagunçados a testa. E ele respirava fortemente, respiração diafragmática, daquelas que o peito se enche todo. Era verdade, ele dormia. Esperaram muitos dias, chamaram médicos, pais de santos e benzedeiras, mas Álvaro só dormia.

Nos primeiros anos, Luciano visitava o amigo todos os dias, mas agora o fazia semanalmente. Hoje era uma visita especial. Era uma visita séria e derradeira.

Olhou para o Àlvaro que dormia. Estava lá, com a mesma respiração diafragmática. Mas era diferente agora. Não era mais aquele garoto que viu na primeira visita, era um homem. Estava deitado com a barriga virada para cima, como costumava ficar em dias quentes. Luciano retirou um pacote que trazia na mochila. Eram álbuns velhos de fotografias.

_Olha só, trouxe umas fotos antigas para te mostrar. Da nossa infância. Tenho umas dos meus aniversários de nove, dez e onze anos. Você esteve em todos lembra?

Álvaro se mexeu, um pouco, e virou-se na direção de Luciano, ficando de lado. Ajeitou as mãos sob a cabeça, estava deitado como estivera na primeira vez em que Luciano o visitara. Luciano olhou e pareceu por um instante que seu amigo abriria os olhos. Que ele acordaria. Mas esse momento passou. Conhecia o amigo, sabia que sempre ficava agitado no início da visitas, e sempre falava alguma coisa por entre seus sonhos. Entretanto permanecia sempre dormindo.

Luciano começou e retirar as fotos da bolsa, via uma por uma, descrevia todas elas e sorria. Mas seus olhos permaneciam tristes. Olhou todas as fotos dos aniversários de nove e dez anos de idade.

_ Olha, aqui eu e você estávamos ajudando a arrumar os brigadeiros. Sempre era uma festa. Você adorava, lembra? Eu sempre preferi os salgados, mas você preferia os doces. Foi a última vez que minha mãe aceitou sua ajuda, reclamava que você comia mais que enrolava!

Continuou olhando uma por uma das fotografias até chegar as últimas. A festa de onze anos, dois meses antes de Álvaro decidir dormir. Olhou com tristeza maior. Ouviu Álvaro murmurar algo. Olhou. Brigadeiro tinha dito, Luciano sorriu.

_ Eu te entendo amigo, há quantos anos você não come brigadeiros?

Luciano sorriu, mas por pouco tempo. Lembrava-se de como era divertido sorrir com o amigo, mas nos últimos dez anos sorrira sozinho na presença dele. Sempre sozinho. E agora sorrir assim tinha um gosto levemente amargo. E ele sentia que aos poucos também se tornava, a si próprio, amargo.

_ Sabe, Álvaro. Tem outros motivos pelos quais estou carregando essas fotos. E tenho uma coisa pra lhe dizer, importante.

O amigo continuava com sua respiração diafragmática, como um bebê. O peito subia e descia.

_ Eu estive tentando lembrar cada detalhe nos anos em que andávamos juntos. Sabe, lembrar de cada coisa. Tudo o que fizemos, tudo o que conversamos. Tenho tentado relembrar. Acho que pode ser importante. Sei lá. Talvez eu ache uma resposta. Sei que prometi não insistir nesse assunto, mas talvez eu pudesse descobrir porque você resolveu dormir. Por quê?

Luciano tocou no assunto com cuidado, sabia que o amigo não gostava dessa pergunta, sempre que começava a falar sobre isso o amigo ficava muito quieto e começava a roncar muito, um sono profundo e impenetrável. Quando as conversas o desagradavam ele roncava!

_ Bem, vou te dizer o que tenho que dizer.

Luciano se arrumou na cadeira, ajeitou-se e chegou mais perto arrastando a poltrona, ela fez um barulho alto. Não se preocupou que o barulho perturbasse o sono de Álvaro.

_ Cara, estou indo embora.

Olhou para o amigo, não que tivesse esperanças de que ele acordasse. Mas podia ser uma possibilidade. No entanto Álvaro continuou imóvel, com sua respiração de bebê. Luciano tentou reprimir algo ruim que sentiu no fundo do peito. Continuou.

_ Mas é sério, estou indo para São Paulo, morar com uma tia. Vou fazer faculdade lá.

Esperou um tempo. Nada aconteceu.

_ E vou essa semana, na realidade provavelmente amanhã. Sei que é muito em cima, mas já estava planejando. Não tinha falado ainda porque não era certo.

Ele esperou, mas um pouco, o amigo ainda dormia.

_ E também que diferença ia fazer, né. Você está ai dormindo...

Sentiu um pouco de vergonha da descompostura, voltou a olhar um pouco envergonhado para as fotos. Tentava disfarçar a tristeza que sentia. Na realidade qual seria a culpa do amigo em estar naquele estado?

_ Lembra a primeira vez que briguei com você? Você já estava dormindo há quase um ano. Eu me descontrolei e fiquei gritando e sacudindo você, e você nem ai. Só virou pro lado e começou a roncar. Mas espero que você entenda... como nos sentimos. Você ai dormindo, Álvaro, é como nos abandonar. Ir embora sem deixar recado, sem explicação. Sua mãe, coitada, fica desolada. Acho que ela sente culpa. Ela pensa na coisa tão terrível que aconteceu com você, que fez você preferir dormir a viver acordado. Eu também penso. Por isso tenho tentado lembrar tudo da nossa infância. Talvez esteja lá a resposta. Talvez alguma vez, nas nossas conversas você tenha me dado a dica. Você tenha tentado expressar esse temor ou ansiedade. E se alguém fez algo com você, por que você não falou comigo?

Luciano calou e esperou, como se Álvaro fosse expressar-se agora, mas ele continuou lá, parado, só respirando e dormindo.

_ Talvez eu nunca volte sabe, pode rolar um emprego por lá ou coisa parecida. Mas na melhor possibilidade devo ficar lá uns cinco anos no mínimo, o tempo de terminar minha graduação.

Luciano agora permaneceu calado por muito tempo, olhava as fotos novamente. Às vezes sorria, mas tinha uma vontade muito grande de chorar, permaneceu calado, pois sabia que assim poderia evitar as lágrimas.

_ Olha meu tempo está acabando, você poderia, tipo uma única vez falar comigo direito, abrir os olhos. Eu sei que você me entende...

Agora não pôde resistir, uma lágrima fugiu-lhe. Escapou-lhe como um ato falho, sem permissão. Mas ela não vinha sozinha, junto delas vinham outras, mas estas ele segurou. Aquela lágrima solitária escorreu-lhe pelo rosto. Ele, num movimento rápido, deu fim aquela única lágrima. Secou o rosto, respirou fundo e continuou.

_ Eu queria, assim, de uma hora para outra ter um insight que me dissesse claramente o que tenho que fazer para você acordar. Cara, eu e sua mãe já andamos em médicos, pais de santo, você deve se lembrar do pai de santo que trouxemos, a casa ficou cheirando a cachimbo uma semana. Mas só quando vieram aqueles espíritas, você lembra? Só quando eles vieram que eu percebi, eles disseram que se você estava dormindo, era porque não queria acordar. Isso me fez ficar pensando todo esse tempo. Eu queria mesmo que você me ajudasse, nós tentamos tanta coisa. Ajude-nos!

Ele teve que se calar novamente. Evitaria assim o fluxo de sua amargura e frustração, que certamente escorreriam pelo seu rosto. Olhou para Álvaro. Luciano contorcia o rosto para evitar as lágrimas. Sentia-se patético, que homem era ele ali fazendo caretas para conter o choro? Sobretudo na presença de um amigo que dorme há dez anos.

_ Sabe o que mais me preocupa? A idéia de que pode ter sido algo que eu fiz, pode ter sido minha culpa. Como posso saber que não é verdade? Você não dá respostas. Na realidade é isso que me dá forças para continuar vindo aqui todos os anos. Eu não tenho certeza se a culpa não é minha. Por isso já fiz tudo que pude para você acordar, mas nada adiantou.

Agora Luciano, curvou-se. Encaixou os cotovelos sobre os joelhos. Os dedos se cruzaram, e as mãos apoiaram o queixo. Era uma posição de contenção de tristezas. Esperou um pouco e falou.

_ Sabe, na realidade eu ainda não tentei tudo. Todos esses anos vim pensando sobre as coisas que fariam com que você acordasse. Tem uma que não tentei. Uma que sempre foi tão absurda, que me deixava dando risos histéricos. Mas agora, me parece a última esperança. Eu penso, eu reflito, e a resposta que predomina sempre parece ser, “por que não?”.

Luciano calou-se. O mais longo silêncio até agora. Levantou-se de sua cadeira, foi difícil, a grande tensão de seus músculos tornava seus movimentos lentos. Ele seguiu projetando o tronco para frente em direção a cama de Álvaro, que dormia com sua respiração diafragmática. Luciano aproximou-se até a respiração do amigo estar misturada a sua, fechou os olhos. E quase fraquejou.

Um fluxo incontrolável de pensamentos surgiu em sua mente. O que ele estava fazendo? Era loucura, sem dúvidas. Não era coisa que um homem deveria fazer com outro. O que a mãe de Álvaro pensaria se o visse ali, daquele jeito? Mas será que ela mesma não havia pensado nisto, nesta forma?

Entretanto não podia parar agora. Preparava-se há dez anos para aquilo. Não podia parar, era sua derradeira chance de despertar o amigo.

Antes que pudesse pensar algo mais, sentiu o contato. Seus lábios tocaram os de Álvaro. No inicio ficaram ali tocados, lábio com lábio. Sentiu a respiração quente do amigo. Forçou mais seus lábios, agora poderia ser visto realmente como um beijo o que antes era apenas lábios tocados.

Luciano pressionou mais. Mas o amigo não resistia. Ele sabia que estava só naquele ato. Então não se conteve. O fluxo das lágrimas foi forte, o choro irrompeu, todo o corpo se tencionou. As lágrimas molharam seu rosto e o do amigo. Mas ele não desistiu, tentou com mais afinco, com mais ardor, e seus lábios abriram o do amigo com carinho. Sua língua entrou na boca do amigo.

Luciano se perdeu nesse beijo, e o tempo mudou, nem ia nem vinha. Estava parado. Mas quando Luciano voltou a si era como se estivesse parado um século inteiro. Álvaro ainda estava ali, dormindo com sua respiração diafragmática. Não se movera, continuava dormindo.

Luciano chorou mais, mas agora sobre o peito do amigo. Chorou como uma criança, soluçava alto, e suas lágrimas ensoparam o cobertor.

Depois de um tempo, finalmente falou.

_ Eu achei que se não funcionasse como nas histórias infantis, ao menos o fato de ser beijado por outro homem o acordaria.

Voltou para sua cadeira e retirou da bolsa alguns objetos.

_ Estão aqui os álbuns, quando você acordar serão mais preciosas para você do que para mim. Eu espero que este mundo do sonhos onde você está seja realmente bom, que seja um paraíso. E espero que você sonhe comigo ai, pra um dia se você acordar, lembrar-se de mim. Mas agora tenho que ir.

Luciano levantou-se, pôs a bolsa nas costas e foi embora. Antes de partir, diante da saída, olhou uma última vez para o amigo. Ele estava lá, só parecia vivo graças a sua maldita respiração diafragmática. A porta bateu com força.