Ocípite, a menina dos olhos sonhadores. Frescor e cheiro de promessas. Musa sempre cercada de poetas e artistas. Cativante, amante da música e das Belas Artes. Devaneios e precipícios, irresistíveis convites aos jovens Ícaros: Iludidos, impetuosos e apaixonados.
Celeno, a sombria. Veludo italiano e renda francesa compõem o visual gótico sofisticado. Botas de couro altíssimas, tatuagens e piercings de brilhantes. Se a noite tivesse uma rainha, definitivamente seria Celeno.
O casarão, em algum ponto perdido no Vale das Sombras, é o único foco de luz. Foi construído com os lamentos e lágrimas dos eternos escravos. O piso de pedras escuras reflete o fogo da imensa lareira. Um aparador exibe bebidas exóticas e taças de cristal.
Não fosse pela ausência de janelas, o interior pareceria com qualquer castelo europeu.
Aelo bebe absinto. No momento exato, elas formam o círculo. Unidas em profunda reverência, entoam os decretos:
- Por Gaia e Urano, as filhas de Thaumas e Elektra evocam a Tradição e os antigos sábios...
O grande salão exibe tênues sombras esgueirando-se pelos cantos. Ocultas na escuridão, antigas formas murmuram mantras em linguagens milenares:
- Sim, podemos iniciar. Hoje decidiremos quem conduzirá a alma negra que todas desejamos.
As três Fúrias sem a capa da polidez mediam forças. A sina maldita era o convívio eterno. Lentamente os traços humanos deram lugar às verdadeiras faces das Hárpias. O homem em questão era um poderoso líder político e espiritual responsável por milhões de mortes no Oriente. Ganancioso, inescrupuloso, sem um pingo de caráter ou moral.
Ocípite movimenta-se brandindo os longos braços como se fossem asas. Volteios exagerados, narrando as terríveis cenas que acontecem naquele instante:
- Bombas explodem cidades, meninas mães choram os filhos e homens caem aos pedaços. Montanhas de corpos no deserto, ódio, sangue e medo. Desespero nos olhos dos soldados inexperientes, mêdo da morte prematura.
- Pare com isso, poupe-nos de seu teatro. Já partilhamos tudo. Sabemos que o caos é engolido, com sofreguidão pelas trevas. Disputado, incentivado, gerido como um filho mal parido.
- Tamanha sordidez supera os tempos mais remotos quando a bestialidade e a ignorância se confundiam. Precisamos nos apressar.
Aelo e as irmãs caminham para o terraço. Debruçadas no parapeito apreciam a paisagem árida em tons vibrantes. Do vermelho fogo ardendo em fendas e gargantas alimentadas permanentemente com o magma. A dor e o suplício da Terra.
No mais profundo dos abismos o ar irrespirável confundem-se com o frio gelado das almas perdidas. A constante mudança de temperatura, assim como a chuva ácida, eram detalhes criados pelas criaturas tornando o local muito além do insuportável. O ar quente chega em lufadas fortes com a mesma intensidade das tempestades:
- Quase confundo a paisagem com o campo de batalha terreno.
- Algumas vezes penso que eles vão nos superar na destruição da grande Obra.
- Em poucas horas, Sahan terminará o ciclo e uma de nós fará as honras.
A outra irmã não prestou atenção, tinha o costume de ser imparcial em todas as decisões:
- Ocípite, não vai opinar, como sempre.
- Aelo sempre quer arrebanhar o máximo. Centenas de milhares de mortes diárias. Ainda assim, não está satisfeita.
- Sim, sou gananciosa. O que nos rendeu um aumento considerável de almas. Viver na América, tem diversas vantagens. Devo lembrar que a escolha dos continentes foi uma decisão conjunta?
- Mas não estou arrependida, incentivar a eterna guerra Santa é um prazer. As disputas, retaliações, embates que nunca chegarão a lugar algum. Tudo em nome da fé.
- Ocípite! Fora o presidente que deseja governar o mundo, o que tem feito?
Aelo, tenta ganhar tempo:
- Focada no Brasil. Cada dia pior e mais perdido. Guerras urbanas, tráfico e miséria. Além do mais, apontam o país como o grande celeiro do mundo. No futuro, disputarão cada pedacinho de terra, os verdadeiros donos perterão o lugar. O povo deixará de ser tão pacífico.
Um tremor suave anuncia a chegada do Senhor dos submundos. As fúrias agitam-se em mesuras e boas-vindas:
- Minhas queridas, estão aprontando novamente?
O cheiro forte de enxofre, marca registrada:
- Hades! Íamos pedir sua ajuda neste impasse.
- Acredito. A resposta é não. Regras claras, ele falhou e morrerá na forca. Aelo, isto é uma ordem, as eleições não tardam. A história terá o primeiro presidente negro. Isto sim. É importante!
- Senhor, Sahan é uma lenda. O mistério que incita os delírios terroristas. Carrega fardos de almas inocentes.
- Mentiras. Não passa de um ególatra inexpressivo. Esta disputa, é um capricho. Caso encerrado.
- Como queira Mestre, acataremos suas ordens. Aelo, a eterna diplomata, assentiu em nome de todas.
- Ocípite, minha garotinha deliciosa, concentre-se. O ouro negro é o pomo da disputa. Incite as lutas pelas terras, desfaça acordos. Intrigas ainda funcionam nos dias atuais. Os cartéis estão indo muito bem. O vício cada dia mais forte e incontrolável. Você percebe que estão descontrolados?
Caminhou até a figura altiva e visivelmente contrariada. Tocou a face pálida, desfez o penteado soltando as fivelas de ouro. Os cachos caíram em ondas perfumadas. Delicadamente aspirou, sussurrando:
- Linda Celeno! Minha favorita. Vou conceder esta honra, em nome da nossa velha amizade. Estarei vigiando, naturalmente.
- Perdi sua confiança, meu senhor?
- Nunca a teve! Admirada com meu terno Armani? Sou um empresário e vou a uma reunião importante. Em Roma. Ciao meninas.
As Fúrias emitiram um rosnado assustador. Celeno, saboreando o momento de triunfo, emitia risadas agudas, de puro escárnio. Não se despediram. Cada qual tomou seu rumo. Fortes, famintas, personificam os Arautos da Discórdia: Miséria, Fome, Medo, Doenças. Adaptadas, burlam o tempo e sopram o vento do caos.
Nos dias atuais, alguém perceberia a presença das Lendas? Tantos seres humanos exibem comportamento semelhante. Estão em todos lugares, tomam decisões e decidem nossos destinos. Neste instante, podem estar ao nosso lado. E nem nos damos conta. Simplesmente, seguimos adiante e obedecemos.
Revisão: Lucia Czermainski Gonçalves
http://portalliteral.com.br/banco/texto/harpias-a-disputa-das-furias