Requien para a última orquídea

Havia em certo lugar, um jardim florido das mais numerosas espécies que se possa imaginar. Flores de todos os aromas, cores e até sabores; perfiladas, viçosas, desabrochando sua juventude, descobrindo-se em sua identidade de flor, pois que ainda não sabiam detalhes de sua gênese.

Era o tempo, o jardineiro da natureza, que tratava de aperfeiçoar-lhes o talhe e que as tornaria o que deveriam ser.

E eis que o senhor da vida fez seu trabalho e veio a época da colheita. A primavera, mãe de todas as renovações, chegou e com ela, foi-se embora a primeira flor: era uma delicada margaridinha. Levou-a consigo o jardineiro logo no início da estação. Não se deu causa de surpresa entre aquelas que ficaram. Aquela tenra flor, em pleno desabrochar, fora concebida para ser colhida num de repente. Era de sua essência, imanente a sua espécie a precocidade das experiências. Logo em seguida, foi a vez da exuberante rosa colombiana com sua beleza exótica atrair para si todos os sentimentos luxuriosos. Não houve surpresa alguma, pois eis que carregava em si o visco da sedução e era óbvio o desfecho que a vida lhe reservava.

Seguiram-se à sua ceifa, outras mais; os lírios amarelos de uma só vez, algumas begônias já maduras, cravos multicolores...

No entanto, nova pausa se fez e a ansiedade no ar não deixava dúvidas sobre a incerteza dos tempos. Algumas folhas esmaecidas davam sinal da maturidade chegando. Pétalas perdiam a firmeza habitual. Temores rondavam da grama ao cálice, algumas espécies.

Mas, um vento zéfiro no fim de uma longa tarde acalorada, renovou as esperanças sinalizando que a colheita continuava a despeito do envelhecer das horas...

Papoulas, jasmins, gerânios, girassóis, crisântemos, Marias-sem-vergonha, honze-horas, hibiscos, violetas. Foram todas arrebatadas de uma só vez. Aquela tarde ficou na memória botânica do jardim: o dia em que uma lufada de vento de uma só vez, levou consigo flores de todas as idades e temperamentos.

Parecia aquelas que ficaram, desajuizado requerer mais atenção do jardineiro, diante de tão democrática colheita, afinal, eram agora poucas, rotas, desconsoladas florezinhas; cálidas e tristonhas. Seguiam assim, à espera do termo que lhes cabia.

Mas, a despeito do sentimento de impotência dominante, havia entre elas uma orquídea que cismava consigo mesma sobre o destino que caminhava em sua direção. Resoluta em suas concepções queria arrancar-se pelas raízes e seguir outro rumo que não fosse o ficar à espera pelo que não viria. Mas como, se estava de fato plantada, regada e bem adubada? Se ao menos dispusesse do poder de ir e vir, do movimento inerente aos que possuem o animus de sua espécie.

Entretanto, parecia não haver uma saída diferente daquela que se desenhava a sua volta. Quis enlouquecer, como se fosse possível a uma planta experimentar distúrbio tão humano. Tentou chamar atenção para si, murchando todas as suas florezinhas de uma só vez, mas apenas recebeu uma rega mais cuidadosa do jardineiro.

Enfim, passou por todas as fases de uma alma enferma: surpresa, revolta, negação, impotência e entrega. E quando já se preparava para entregar os pontos, viu que o céu tornara-se nublado e escondia o sol por completo. Nuvens negras jaziam sobre o jardim de uma maneira preocupante. O ar se tornou mais denso e o vento já levantava algumas folhas do chão.

De súbito, uma torrente caiu sobre a terra e misturaram-se a ela tenebrosos ventos uivantes que sacudia caules, despregava folhas e trucidava flores. A orquídea viu o jardim ser destruído pelo mal tempo e aquilo lhe pareceu, inexplicavelmente, bom.

Contemplava com excitação a devassa, quando se viu também erguida pelos ares e, surpreendentemente, viu suas raízes planarem bem livres acima da terra. Essa sensação irrecuperável de liberdade encheu-a de euforia e, paradoxalmente, sentia-se viva mesmo em iminente risco de morte.

Entregou-se inteiramente a esses instantes de frenesi... E assim como surgiu, foi-se embora a tempestade e a calmaria retornou ao lugar.

O que se viu a partir daí foi um retrato apocalíptico: o jardim fora destruído por completo. No charco que se formou no chão, restos de flores e folhas formavam um mosaico vegetal.

Do alto de uma árvore, agarrada às reentrâncias de um tronco rústico e limoroso, estava a orquídea contemplando o desafio de recomeçar de maneira inóspita.

E, ao contrário do que se possa imaginar, pareceu-lhe muito bom que fosse assim...

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adelaide de paula martins fontes santos
Enviado por adelaide de paula martins fontes santos em 28/11/2008
Reeditado em 16/12/2008
Código do texto: T1307254
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