O PROCESSO
Tudo começou há, aproximadamente, quinze anos atrás, num vilarejo distante, construído perto dos Alpes, com cerca de mil e quinhentos habitantes, chamado Itapipoca.
Todos viviam em paz com suas famílias, seus trabalhos, seus problemas, seus bichos de estimação. Até o presidente da comunidade receber uma citação oriunda da 1º Vara Cível do Foro Central da Jurisdição a que pertencia a comunidade de Itapipoca. Tratava-se de um processo de execução, movido contra a presidência da comunidade, por um rábula de nome Esaú. O objeto da ação era uma incógnita. Nos autos constava tratar-se de honorários impagos referentes à defesa feita em diversas ações que envolviam pendengas da presidência da comunidade: reparos nas instalações hidráulicas, elétricas, colocação de elevador na torre principal. Outros diziam que se tratava de umas antenas que “o vento levou”.
Na audiência preliminar de tentativa de conciliação, não houve acordo. O Excelentíssimo Juiz abriu os prazos para réplica e tréplica. A audiência de instrução e julgamento ocorreu alguns meses depois. Todos presentes. Foram ouvidas as partes, as testemunhas de acusação e defesa. Encerrada a instrução, o Juiz determinou a data para prolação da sentença. Proferida a sentença com resultado favorável ao rábula Esaú, condenando a presidência da comunidade de Itapipoca ao pagamento do principal, acrescido de juros, correção monetária, custas processuais, honorários e sucumbência. Abriu-se o prazo de quinze dias para apresentação das razões e contra-razões de recurso.
Porém, nesse ínterim, houve assembléia geral na comunidade para eleição do novo presidente. Duas chapas se inscreveram e depois de muito bate-boca, foi eleito presidente o da chapa de oposição. E o processo ficou esquecido. O prazo recursal expirou e a sentença transitou em julgado, sem as devidas razões de recurso da presidência de Itapipoca. O processo foi encaminhado à Contadoria do Foro Central para elaboração dos cálculos de liquidação.
Assim o tempo passou. Vários presidentes administraram Itapipoca, enquanto o processo corria à revelia. O cálculo inicial que somou aproximadamente vinte mil, no decorrer do tempo transformou-se numa dívida astronômica, dez vezes maior: duzentos mil!
Decorridos mais de dez anos do início daquele processo, eis que surgiu naquela comunidade distante, um líder carismático, que assumiu a presidência de Itapipoca e junto com seus ministros colocou ordem naquela bagunça. Sim, porque, além da dívida do “caso Esaú”, o estado geral da velha comunidade estava às traças.
O novo líder adotou a forma de governo democrática, com seus princípios básicos, sistema econômico-social capitalista e pluripartidário. Conhecedor tanto das teorias de Maquiavel como de Marx, aos poucos foi conduzindo a comunidade com a conscientização política, mantendo assim, a democracia.
A partir do surgimento deste novo chefe de Estado, com a implantação da nova forma de governo, a colaboração dos ministros e a maioria dos moradores, a comunidade, aos poucos, ressurgiu das cinzas, tal Fênix. Mas havia o “calcanhar-de-aquiles”: a dívida do processo de Esaú!
Depois de várias tentativas de acordo, inexitosas, o novo chefe de Estado de Itapipoca, que tinha seus fariscadores, descobriu o sonho de consumo de Esaú: um automóvel opulento! Ah, agora era só armar a estratégia. Convocou toda a comunidade para uma assembléia extraordinária, cujo único item da pauta era o “caso Esaú”. Juntamente com seu conselho de ministros, demonstrou matematicamente, o que a comunidade estava perdendo com aquela dívida infindável e quanto poderia se ganhar no caso de liquidá-la. E partiu para a proposta: cada agente da comunidade deveria emprestar à administração, uma quota, que no final, somaria um valor, que em mãos, vivo e a cores, daria poder de barganha para negociar com Esaú. As quotas seriam a posteriori revertidas aos moradores, em benfeitorias, ou descontadas das taxas mensais obrigatórias. Aprovada a proposta por maioria, firmou-se em ata.
Todos foram ao sacrifício para liquidar a dívida do processo: uns diminuíram o leite das crianças, outros deixaram de levar seus cãezinhos de estimação para banhos e tosas em Pet Shop, outros trocaram a ração de seus bichanos por uma mais barata. Assim, depois de uns dois ou três meses, arrecadadas as quotas, somado o valor estimado, o chefe de Estado da comunidade, convocou Esaú.
Ninguém sabe o que foi falado entre eles, nem os ministros. Apenas o jurídico foi chamado para peticionar o acordo que, assinado pelas partes, foi apresentado ao Juiz da Jurisdição da causa. Homologado o acordo, os autos foram arquivados e baixados. O macróbio processo teve fim. Nunca mais se ouviu falar no rábula Esaú. A comunidade restabeleceu-se na ordem e progresso.
Até hoje uma dúvida paira sobre a comunidade de Itapipoca, junto aos Alpes: afinal, qual a verdadeira origem do processo de Esaú? Só Kafka explica!