Janine

A Baudelaire e a Theóphile Gautier , que me perdoem a ousadia. 1989, meu primeiro conto.

A noite úmida e fria cedera lugar ao esplendor de uma manhã ensolarada. Sim, meu estado de espírito assim lhe conferia advérbios de máxima intensidade. Esplendorosamente, mas densamente iluminado, aquele dia, em particular, parecia me perturbar. O sol sempre tivera um privilégio de me inquietar, é bem verdade, de um modo diverso das sombras, um estranho chamamento por ousadias, às claras. Riscos cujas zonas sombrias nada mais clareiam.

Esta luz que durante o dia incendiava-me por dentro, contrapunha-se ao meu mais recôndito desejo, obscuro, de mergulhar nos sonhos e visões nocturnas, que percorriam minha alma e mente, em ondas de entranhas. Sonhos que, com poucas referências à realidade de minha vida ( não seria essa a essência de sonhar, sem âncoras, flutuando em pisos escorregadios de inconscientes?), aos dogmas e crenças com os quais sempre tive de conviver, pareciam a realização de alguns dos poucos anseios que eu me permitia conhecer.

Aquela pequena aldeia, gélida e soturna, embora ainda cálida por um dia de sol, deserta de seres urbanos, povoado por mitos, emblemas e enigmas de um rico imaginário absurdamente irreal para a razão iluminista, despertava-me um pouco de vivacidade que ainda ousava participar do meu caos interior. Ali, aqui, eu procurava apenas existir, simplesmente. Felicidade? Alguns instantâneos. Doce exílio voluntário que me atirava de encontro a mim mesmo, tal como uma barata num conto de Clarice.

O café estava apetitoso. A fome aparecia. O desejo. Os croissants bien chauds preenchiam-me de um prazer singular. Sentia-me um semi-deus num panteão gastronômico um tanto decaído, luxúrias para a circular de minha barriga. Uma caminhada na companhia de um vale de eucaliptos poderia refrescar o bolo estomacal que se fazia em mim. Sob a bruma ainda presente, resquício do frio da noite, extirparia glicídeos, quiçá, temores e estranhas memórias independentes.

Com um pouco de coragem, deixei a aldeia para trás. O mesmo movimento que realizei quando resolvi dar um fim ao torvelinho incansável da cidade grande, a-mitológica, asséptica e brutal, sometimes. Fuga de relações pessoais, conflitos, assassinatos metafóricos de uma multidão de existentes; tudo isso metido num mix imagético e emocional, garantia-me o mínimo de relaxamento, possibilidade de desintoxicação das idéias viciosas que o tempo e a cultura encarregaram-se de impregnar-me. Um utopista, com visões de Walden, renascido ou reencarnado? Sei lá.

A natureza povoava aquelas montanhas emanando paz de suas entranhas. Um ambiente que emoldurava dizeres etéreos aos forasteiros: "hey, a vida aqui pulsa de uma forma diferente, escute o barulho no silêncio, a unidade em cada pedra, integridade de pedaços em quebra-cabeça único". Reflexo de algo escondido no fundo de todos os seres, desconhecido à consciência, mas inquietantemente real.

Como ser racional e imune às histórias mágicas desta região? Seres nocturnos e semi-mortos agora acompanham-me em meus trajetos, à espreita.

Incrível e re-confortante é não dar-se conta de como predisposições psicológicas nos arremessa para o convívio desnudo com mitos e lendas.

Não sou mais um pesquisador, não sou mais nada, não sou. Dou luz e tomo posse das minhas fantasias.

Sentei à beira de um riacho, tirei minha roupa apesar do frio e resolvi imergir deliciosamente para o silêncio. O Outro sempre e fascinou e e me sentia bem-vindo àquelas terras, àquelas águas.

Um vento lambia meu corpo e arrepios de pele eram-me amantes cheias de desejos, sensações estranhas à linguagem humana, prisão de palavras que desconhece as esquinas do nosso pequeno universo. Tábua de esmeraldas...

Nesse torpor que me arremessava para um além das coisas, percebi um movimento, ecos ao longe de alguma vida que se aproximava lentamente.

Ela era bela, estonteantemente pálida, eu a reconheci. Sem hesitação, me aproximei e deixei-a falar. O silêncio que se seguiu preencheu-me com um fio de compreensão . Olhava-a, descobrindo os detalhes de seu rosto que não eram revelados em minhas visões. Todavia, a sofreguidão e a inquietude que mesclavam-se em sua brancura azulada, incomodava-me. Qual razão para tamanho sofrimento? Respostas que poderiam rondar minha mente prenhe do medo de um novo, covardia demasiada humana, impedia-me de capturar sentidos.

Subitamente, aquela forma feminina, de algum temp(l)o distante, fez um sinal para que a seguisse em seu particular caminho. A cada passo, revelações de novas fôrmas, cores, atitudes, vida.

"- T., não sabes o quanto necessito de ti. E tu, meu caro, de mim. Tantas tentativas e tantas recusas tuas. Deste-me uma chance, hoje."

E a cada palavra sua eu sentia frêmitos e ondas do recém-descoberto-rememorado fazer ou voltar como parte de mim. Eu me permiti o estranho, em sua companhia. Janine era imprevisível e entregue ao fluxo do devir circular ( tempo espiral?).

Vivemos o máximo de tempo juntos.

Seus hábitos eram-me muito estranhos. Sua fragilidade mantinha-me em estado de confusão; sua sensibilidade e fraqueza física eram pontos obscuros num oceano de nada.

Também distante estava da minha razão. Desde o encontro com Janine senti sutis mudanças em minha forma de ser; eu era dois homens que não se conheciam um ao outro, já mais não mais conseguia captar a linha tênue do que é realidade ou ilusão, o real sempre me fôra ficcionalizado, agora ainda mais.

O homem quase místico e apaixonado ria-se do homem sisudo-farsante que corria atrás de um significado para fazer Ciências. Mesmo conservando uma leve nuance desta percepção dual de existências em um, o medo da loucura parecia perseguir-me como um punhal sem piedade.

Quanto mais exatidão explicativa procurava, mais permissão obtinha para deixa-me embriagar pela suavidade do corpo daquela mulher, enigma vivo que despertava desconfianças na conservadora população local.

A vida que pulsa em veias nossas fez-se assim.

O cálice de vinho em mãos, por um instante, lembrou-me do ritual católico pleno de culpas. O sangue ou o vinho escorrendo pela face despertava-nos desejos. O olhar de Janine era distante, doente, e ela não parecia estar presente. Fora de cena ou muito dentro dela. Não sei.

A brancura doentia em sua face confundia-se com sua veste exalando um suave perfume de temor. Morte, sombra em seu rosto, avivou o estranho amor que sentia por aquela criatura. E eu a abracei com medo da perda. Silêncio em respirações compassadas, ritmo lento. Com ternura em seu olhar ela feriu meu rosto, longas unhas sem esmalte, agora avermelhadas, sua tez encontrou coloração rósea enquanto sorvia o que a mantinha viva.

Um prazer intenso nos transportou para longe.

Estava me matando em tudo que deixei para trás. Parte de uma vazio se desfazia. E o encontro com esta morte deixou-me avermelhado de paixão real.

As taças sempre se quebram quando o vinho não mais se esgota.

E as videiras em nós brotavam a cada gozo.

Ana Paula Perissé
Enviado por Ana Paula Perissé em 24/11/2008
Reeditado em 08/07/2012
Código do texto: T1300321
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