Contato
Remexeu-se na cama mais uma vez, sem saber se era noite ou dia. Sentiu frio, apesar do cobertor de lã. Levantou-se, esfregando os olhos e ao abri-los, teve a primeira surpresa: não estava em seu quarto. A cama estava colocada no centro de uma sala circular, com pé direito muito alto, talvez cinco metros. Não havia janelas, apenas uma porta de metal cinzento dava passagem ao recinto. A iluminação escassa vinha de uma única lâmpada do alto do teto.
Tentou caminhar devagar em direção à porta e surpreendeu-se de novo, pois seus pés flutuavam a uma distância de uns trinta centímetros do chão e cada passo era como andar dentro d’água, tinha de fazer movimentos suaves para ter direção e equilíbrio. Apesar do inusitado gostou disso, pois sem precisar fazer muito esforço conseguiu chegar à porta em dois ou três passos.
Levou a mão à maçaneta circular no centro da porta, mas recuou em seguida, ouviu vozes, ruídos como o arrastar de algo metálico se aproximando e alguns gemidos e lamentos. Tomada de súbito pânico, tentou voltar para a cama, mas ao virar-se naquela direção, ela não estava mais lá. Começou a ofegar, o coração disparou, sentiu a cabeça latejar e um zumbido crescente nos ouvidos foi a última coisa que sentiu, antes de desmaiar.
Ao voltar a si, olhou o pequeno relógio de pulso e mais uma vez teve certeza de que algo estava muito errado, pois os ponteiros giravam a uma velocidade espantosa, marcando um tempo absurdo e muito além do real. - O que é real?- se perguntou ao mesmo tempo em que olhava ao redor e tentava ordenar a confusão de pensamentos.
Com seus passos flutuantes, andou novamente em direção à porta e desta vez conseguiu girar a maçaneta, cautelosamente abrindo uma fresta para espiar o que havia fora dali. Agora não ouviu nenhum ruído, nada. Silêncio total no que parecia ser um túnel ou corredor comprido e estreito, parcamente iluminado como o aposento anterior.
Resolveu sair, não lhe agradava a idéia de ficar confinada numa sala sem janelas. Sentiu frio de novo e só agora se deu conta de que não vestia nada, apenas seu relógio de ponteiros velozes fazia contato com seu corpo. Vacilou a princípio, mas em seguida começou a “caminhar”, dando passos cada vez mais rápidos, ganhando velocidade, dali a pouco era quase como se voasse, as paredes do corredor passavam rápidas e ela não queria parar. Foi assim por algum tempo, até que vislumbrou o final do corredor, uma parede de granito que lhe pareceu muito próxima, ao ponto de achar que não ia conseguir parar. Entre pensar em parar e ver que não ia conseguir, fechou os olhos e gritou.
Atingiu a parede com força, mas a sensação foi estranha, não sentiu dor nem houve impacto: ao contrário, foi como se roçasse de leve a superfície dentro do granito e quando abriu os olhos, viu que além de não ter se machucado, estava numa estação de trem, cheia de gente. Instintivamente tentou cobrir sua nudez, mas logo percebeu que ninguém parecia lhe prestar atenção. O ruído de uma composição chegando fez todos se movimentarem na mesma direção, deixando-a sozinha no canto em que estava, junto a um painel com os nomes das estações. Tentou ler mas não conseguiu entender os nomes dos lugares que mudavam muito rápido.
Olhou para o relógio da estação e este não mostrava os ponteiros girando loucamente, marcava então sete horas de algum dia ou noite, não sabia ao certo. A confusão mental por vezes voltava com força, mas agora ela já podia prever quando o zumbido crescente nos ouvidos ia começar e procurou um lugar para se sentar.
Desta vez não desmaiou, mas um sentimento de perda e solidão começou a instalar-se, um aperto no peito e a confusão entre aceitar o que estava vivenciando ou tentar voltar à realidade. Onde ficava a realidade?
Pensou em como seria bom voltar à sua cidade, sua família e seus amigos, tomar chocolate com gemada nas manhãs frias, ir à praia no verão, música, namorar e dar risada, coisas que fazem sentido quando podem ser vividas. Gente comum, cotidiano, algumas razões para se continuar em frente, sem pensar em nada, viver e aproveitar enquanto puder.
O ruído de outro trem se sobrepôs aos pensamentos e desta vez ela levantou-se, decidindo ir mais além e tentar descobrir alguma coisa sobre este mundo. Afinal de contas, também não encontrara mais ninguém como ela ou que pudesse lhe dar alguma explicação sobre esta estranha condição em que se encontrava.
Esperou que as pessoas desembarcassem e flutuou até a porta do vagão. Entrou, sentou-se no banco do lado direito e logo viu mais pessoas entrando com pressa e se acomodando como podiam. Pelo menos no interior do trem estava mais quente e isto lhe deu uma sensação de conforto. Quando o trem começou a andar, cerrou as pálpebras lentamente, tentando de novo conectar os pensamentos com suas referências do plano “real”.
Sentiu um leve torpor apossar-se de seu corpo, adormecendo em seguida.
O zumbido nos ouvidos tornou-se insuportável a ponto de fazer com que gritasse e foi assim que despertou, sobressaltada, olhando ao seu redor e lentamente reconhecendo as paredes brancas de seu quarto, com seus móveis também brancos, seu notebook na mesa ao lado da cama, a janela entreaberta por onde entrava a luz do sol e o ruído de passarinhos. Sentiu o aroma de café e lembrou-se da sua infância, quando seu pai lhe trazia o café na cama nas manhãs de domingo e sempre lhe contava uma história.
Afastou as cobertas, constatando que estava vestida com seu pijama de pelúcia, saiu da cama, bocejando e espreguiçando-se. Foi até a cozinha, onde seus pais estavam preparando a mesa do café da manhã. Tinha pão, biscoitos, geléia, leite e frutas, uma verdadeira refeição.
Não lhe notaram a presença e ao mesmo tempo pareciam dois desconhecidos, vindos de outro lugar, de outra época. Havia apenas dois lugares à mesa e isto foi o que mais lhe causou um estranho ressentimento, como se ela não existisse, como se ninguém mais lembrasse.
Naquele momento, desejou que os ponteiros do relógio nunca tivessem voltado ao normal e que aquele trem também não parasse nunca mais, que seguisse viagem para onde fosse; qualquer destino era melhor que o esquecimento.