Quando Surgem as Lendas
Capitulo I
Um Livro, Um Nome
e Um Numero de Telefone
Estava Ícaro, em oriundos devaneios à beira do mar da Mancha em Normandia, junto aos Trabalhadores do Mar de Vitor Hugo, quando percebeu uma beleza sem igual. De pele morena, dessas que o sol não maltrata, acaricia. De sorriso tão espetacular quanto o brilho do próprio sol, não só pela clareza, mas também, pelo poder que esse astro tem de trazer esperança ao crepúsculo negro do medo que vem com os monstros da noite. Então, levado por um súbito impulso, sem ao menos se despedir de Giliat, com o livro ainda aberto entre as mãos dando a impressão de um pastor com a bíblia em pleno sermão de domingo, pôs-se a bloquear o caminho de tal beleza.
- Seria ousadia de minha parte perguntar seu nome? – disse ele de súbito ao interromper a tal beleza.
- Sim, seria!!! Respondeu de uma maneira seca e dura, cortando Ícaro pelo lado direito e continuando sua trajetória.
Ícaro se encantou com aquela voz, e de maneira nenhuma, pensou ele, jamais aquele tom de voz pertenceria a uma pessoa grosseira. Então, logo percebeu que o problema deveria ter sido a sua abordagem, se amaldiçoou por alguns segundos e depois, olhou em suas mãos, o livro ainda estava aberto, se lembrou de Giliat, um ser obstinado e guerreiro, se pôs de imediato atrás da beleza que tentava lhe escapar, mas que, ainda desfilava na plataforma do Terminal de Pirituba em direção ao seu ônibus.
- Desculpe-me a petulância – disse ele, dessa vez caminhando ao lado dela -, não queria que me tomasse como um bruto insensível, sei que mereço o tratamento que me deu, porém, para que não fique mágoas quero lhe dar esse livro de presente...
Ícaro havia conseguido, ela parara ao seu lado e virara em sua direção, estava ali diante dele, e pior, emudecida. Ele começou a contar até dez em sua mente: um, dois, três – nada -, quatro, cinco, seis – ainda nada -, sete, oito, nove – de repente viu as mãos dela se mover em direção do livro-, dez. Ele já estava calmo, tranqüilo e pode reparar os detalhes.
Contemplou aquelas belas mãos de unhas bem feitas enquanto buscavam o livro, ainda ousou pensar o quanto elas seriam macias. Quando as mãos chegaram ao livro, Ícaro de imediato segurou-as colocando suas mãos sobre as dela, impedindo-a de qualquer atitude, e disse:
- Isso é um presente, não meu para você, mas de Vitor Hugo, e para que toda vez que pegue esse livro não se lembre somente dele, peço para que me autorize fazer uma dedicatória. Poderia me emprestar uma caneta, por favor?
Ela ainda sem reação, levou a mão que estava livre das garras de Ícaro ao zíper da bolsa e abriu, colocou a mão dentro da bolsa e começou a vasculhar até achar uma caneta e lhe deu. Não demorara cinco segundos toda essa ação, junto a velocidade de uma cidade como São Paulo que nunca para, vai e vem de pessoas, gritaria e todo aquele estresse da hora do rush. Ainda assim, Ícaro via tudo em câmera-lenta. O silêncio era total. Era preciso se concentrar. Até Dom Juan ficaria com as pernas bambas diante daquela beleza.
- Poderia saber o seu nome para por na dedicatória? Perguntou ele como se fosse o último golpe.
- Gabriela. Respondeu ela.
Naquele instante o tempo parou, tudo estava certamente paralisado. Ícaro não via nem ouvia mais nada, só tinha olhos e ouvidos para aquela cena: – Ga – bri – e – la. Era doce aquela voz. Um doce contralto diferente daquela “Não, seria!” de poucos minutos atrás.
“Gabriela,
Que esse livro
possa lhe dar asas
e que elas sejam
mais fortes e mais belas
do que as que me deu
pois voei,
cheguei próximo ao sol
e quando vi o Sorriso do Sol
cai
me esborrachei no chão
mas não me arrependo.
Ícaro
Então, fechou o livro e entregou a Gabriela que já estava à porta do ônibus. Ícaro a olhou subir, caminhar até a catraca, percebeu o movimento em busca do bilhete para pagar a condução, viu-a passar a catraca e acompanhava toda a movimentação dela do lado de fora caminhando conforme ela andava até que por fim, ela sentou. Ele deu um aceno com a mão, seu coração palpitou um pouco, afinal acabara de se desfazer de um clássico que mal terminara de ler, olhou para ela por entre o vidro, seu coração agora disparara estava próximo a um enfarto quando ela acenou de volta. O ônibus fechara a porta e estava prestes a sair, Ícaro correu batendo na lateral do ônibus aos berros de “espere, por favor!”, em direção à porta, assim que o motorista a abriu, ele agradeceu a gentileza e pediu mil desculpas pelo incomodo, pois, não poderia perder aquele ônibus. Nesse momento, tamanho havia sido o escândalo que fizera que todos do ônibus olhavam para ele. Em passos pequenos e tímidos caminhou até a catraca, agradeceu a Deus pela integração do bilhete único e passou. Todos os olhos naquele momento estavam grudados nele, o cobrador olhava-o como se o tomasse por louco, até o motorista o acompanhava pelo retrovisor. Todos, menos Gabriela, que de cabeça baixa, morria de vergonha por conhecer aquela figura.
Havia muitos lugares vagos no ônibus, e Gabriela naquele instante apegou-se a Deus para que Ícaro não sentasse ao seu lado, colocou a bolsa no lugar que estava vago ao seu lado, encostou a cabeça no vidro do ônibus e fechou os olhos como se estivesse dormindo. Ele veio se aproximando, pegou a bolsa que ela colocara ao lado dela sentou-se e colocou-a no colo imaginando que ela estava guardando lugar para ele. A vergonha encheu-a de raiva e coragem, então abriu os olhos virou para ele e olhou-o bem dentro dos seus olhos, estava prestes a dar-lhe uma bronca daquelas quando ele disse:
- Gabriela, uma coisa me atormenta. Você sabe se Giliat e Déruchette terminam juntos?
- Não sei do que esta falando. Disse ela ainda brava pelo acontecido.
- Estou perguntando sobre o livro. Disse ele já totalmente acomodado ao lado dela.
- Ah, o livro! – exclamou antes de interrogar - Você não terminou de ler?
- Não – disse ele – mas bem que você poderia me emprestar.
Ela o olhou fixamente e soltou uma forte gargalhada, e ele continuou:
- Você me daria seu telefone e assim que eu terminasse de ler ligaria para você marcando um encontro para devolver, isso é, se você me der seu telefone.
Ela mudara de humor, dava para sentir isso em sua gargalhada, tamanho era o prazer que o ônibus inteiro absolveu Ícaro dos transtornos causados a pouca.
- Você é incrível – disse ela – incrível! Foi astuto, muito astuto – completou.
- Não tive culpa, fui hipnotizado. Respondeu ele.
Ela abriu o livro, abriu o zíper da bolsa novamente, pegou a caneta novamente, dessa vez foi fácil encontrar e em baixo da dedicatória escrita por Ícaro escreveu seu número, e disse:
- Você tem uma semana até que a hipnose passe. E não se esqueça de devolver meu livro.
Dito isso, Ícaro se despediu a beijando na face, como se a conhecesse a muitos anos e desceu do ônibus com um livro, um nome e um numero de telefone. “Gabriela”, pensava ele...