O Homem ao avesso
O Homem ao avesso
Eurípedes sempre sentira algo diverso em si; ele tinha nascido ao avesso. Não que o virassem por engano ao nascer ou de propósito; ele era assim e pronto.
Quando pequeno ainda brincavam com ele ; criança não faz muita diferença, só uns mais afrescalhados é que vinham com fricotes, mas sabiam que ele estava no avesso; ele também.
Na escola, enquanto os outros saltitavam para lá e para cá, ele ficava só, encostado à coluna, a mirar os pássaros a brincar no telhado. Às vezes passava horas embevecido, a olhar as formigas fazendo caminhos no quintal, as poças d´água e as marcas que os pés faziam no barro.
Seus pais se desesperavam: não sabiam o que fazer:
“O que é que você tem? Misture-se com os outros meninos, meu filho.”
“Maria, esse moleque merece é uns safanões, isso sim; você o mima demais...”
O doutor olhava-o pela lente grossa; o olho aumentado. Concentrou-se, meditou, olhou, revirou os olhos, resmungou e depois concluiu:
“Ele..foi feito no avesso!”
“Como?”
“Ao avesso!Não adianta tentar desvirar que volta ao avesso.”
“E não tem cura, doutor?”
“Cura? A Natureza o fez assim. Por que contrariá-la?-assumia ares de filósofo o psicanalista- se todos gostassem do azul o que seria do amarelo?”
“O que o senhor quer dizer?”
“Maria, ele quer dizer é que esse menino tem frescuras e que não quer fazer nada de produtivo; no meu tempo isso era caso de cinta!”
Tentaram desvirá-lo. Tentou parecer direito como todo mundo; se esforçou, se esfalfou, é bem verdade. Forçou a risada, tentou sambar; já era um rapazola, ouvia a conversa dos outros e tentava imitá-las, mas todos percebiam que tinha alguma coisa errada. Entre a cinta do pai e o papel ridículo...preferia a cinta.
Continuou no avesso. O que falava não entendiam e nem mais ligavam. Tratavam-no como uma estátua, coluna solitária nas festas, após o breve cumprimento forçado. Sempre que conversavam com ele ou era por interesse (era capaz de recitar de A a Z a Enciclopédia Britânica em três línguas diferentes) ou por troça, como amiúde acontecia. Tanto puxaram e deram petelecos em suas orelhas que elas até tinham crescido. Eis o que faz a humanidade, personificada em fedelhos na puberdade, contra o que considera diverso de si: petelecos e setas de papel.Quando adulta, a humanidade refina suas atitudes: ironias venenosas e desprezo.
Mas, com tudo isso, nele, que tudo era em avesso, começa a se forjar o lado direito; no começo ele se rebela; já tinha se acostumado a ser no avesso e isso era uma marca que o distinguia. Tornara-se zombador e irônico. Todos o detestavam , mas reconheciam que tinha espírito.
Agora não, sente que começa a formar seu lado direito e esse começa a se insinuar. A primeira vez foi quando forçou um sorriso para conseguir um favor, e deu certo. E começaram a se repetir, como cacoete: Um aperto de mão aqui, uma gargalhada ali; uma posição a mais conquistada.
Mas o lado avesso se insinua novamente; tem uma recaída. Os passarinhos vêm comer em sua mão; os gatos lambem-lhe o rosto. Sente um ódio dos rapapés que fizera.
Mas logo recoloca o sorriso de borracha no rosto; é mais fácil, mais cômodo. Apruma-se, faz a barba, enforca o pescoço e sai, decidido, mais direito do que nunca, mais quadrado e reto e monótono; a vitória completa do conformismo sobre si.