A falsa Crença na Fé...

Era uma tarde fria.

Do alto de uma colina Mariah observava os corpos caídos.

O vento soprava em sua pele fria.

Seu coração tocava canções de um povo devastado.

A fumaça ainda queimava os corpos e estes quase não mais eram observáveis. Sumiam em meio à brasa faminta.

Mariah trazia o olhar sombrio, o coração gélido, as mãos cerradas, os pés ensangüentados, a alma pesada...

Mas não foi sempre assim...

Porém neste instante a jovem de vinte e seis anos encontrava-se nos braços de um sentimento chamado dor e um outro de nome vingança.

Gostaria de reencontrar os diamantes que todos viam nos olhos dela. Onde será que se perderam em meio àquela confusão dolorosa?

Estamos falando de um povo pacato. Refugiado nos Alpes da Serra de Meldron, cidade conhecida por sua paz, cantos e festas e pelos seres mágicos que ali habitavam.

Quase tudo isso era mito.

Os seres que lá viviam eram como você, leitor, e como eu que escrevo. Pessoas comuns, de espírito elevado, que festejavam constantemente a vida da forma mais natural possível.

Não conheciam muito a maldade. Somente o suficiente para evitá-la.

Uma vila pacífica. Esplendorosa em suas paisagens naturais e rochosas. Os animais estavam sempre presentes em harmoniosa comunhão com os habitantes que viviam da terra. Não caçavam.

Não eram elfos, nem gnomos, como muitos pensavam que fossem, para mim eram magos talvez. Magos no sentido da palavra: “aqueles que sabem quem são e respeitam a ordem do Universo”.

E foi exatamente esta idéia de que eram magos ou bruxos que fez com que outros povos os vissem com maus olhos. E este adjetivo foi a ruína deste lugar.

Os maldoneiros viviam em harmonia. Guardavam sua própria história e cultura. Suas próprias canções e disciplina. Não precisavam nem acatavam as ordens do reino vizinho, Merthener. Este reino pensava-se ser uma civilização avançada, e acima de toda a cadeia social. No topo da pirâmide por assim dizer.

Eles tinham sua religião. A religião que acreditavam correta. Almejavam converter todo o planeta a esta crença. Queriam salvar todos.

Todavia, para se salvar é preciso querer ser salvo...

Foi então que dentre este povo, um fanático religioso, Berdinard formou um exército em favor da fé e saiu em busca das terras mais longínquas a fim de converter aqueles que ainda não seguiam a filosofia religiosa de Merthener. Sonhava que os povos se convertessem sim, mas por trás desta fúria religiosa havia um desejo oculto. Um fim que nenhum de seus homens desconfiava.

Berdinard fazia tudo o que realizava não só pela religião... Ele tinha seus propósitos pessoais ocultos.

Há dez anos tinha recebido um “não” de uma habitante das terras de Meldron quando quis desposá-la:

“Meu coração e alma já possuem dono. Ele reside aqui, mas ainda é mais novo que eu. Quando ele atingir a idade adulta serei dele. Está escrito. Foi assim que escolhi antes mesmo de nascer...” (Explicava a voz doce e suave de Mariah ao jovem e belo Berdinard, que não suportava ouvir um não nem mesmo do Sol quando este não aparecia por causa das nuvens).

Berdinard jurou a si naquele momento que viria buscá-la nem que tivesse que destruir o povo todo em nome da religião e deixar viver apenas a donzela que lhe negou e depois aprisioná-la em seu castelo caso não fosse de sua vontade estar para sempre do lado dele como esposa e rainha.

E então o destino do povo de Mariah estava traçado. Indiretamente por suas próprias mãos...

O tempo passou e o jovem Hazaiel chegou aos seus 16 anos e sendo assim pôde se entregar de corpo e alma à jovem com quem ele tanto sonhava, Mariah, e se amavam reciprocamente um amor puro e voraz, daquele que poucos seres viventes podem experimentar.

E eram felizes. Livres como todo o povo de Meldron.

Passeavam pela floresta e montanhas no final da tarde, depois de fazerem as tarefas diárias de manutenção e ajudar a vila. Não sentiam falta de nada. Não precisavam de nada. Tudo estava ali. Era o Éden.

Os habitantes todos sorriam com a felicidade do casal. Era como se fossem estrelas a guiar os humores de todos ali. Até as flores se abriam mais e expeliam seus perfumes quando eles passavam.

Magos. Senhores de si e um do outro. Frater e Sóror. Eles sim, sabiam quem eram e o que queriam. Sinto inveja deles. Confesso. Quem não sente? Quem não deseja neste momento estar próximo daquele ser que nos foi destinado e escolhido por nossa vontade e imaginação? Quem? Até Berdinard... Aquele teimoso... Ele sentia não só inveja, também habitava em seu ser um orgulho ferido, perfurado, maltratado...

Era um mal amado. Mal mago. Abandonado. Nem percebeu com sua raiva as chances de uma boa mulher que a vida lhe deu. Até mesmo a mulher que lhe foi predestinada ordenou queimar em fogueira “santa” sem ao menos olhar em seus olhos e perceber a súplica da jovem e reconhecer nela a si mesmo. Estava cego. Há tempos ele nada via além de um certo “não”.

Hazaiel estava a cada dia mais parecido com sua amada. Ou era ela que se trasmutava nele? Não se sabia dizer. Eram quase andrógenos! Faces angelicais. Tão belos quanto os caídos. A beleza dos dois ofuscava e não se podia imaginar um sem o outro. Era como a noite e o dia. A Lua e o Sol. Não se pode haver paz sem a existência de ambos. A falta da Lua causaria o caos nas marés, a falta do Sol um frio que mataria tudo que existe. Hazaiel era a Noite, Mariah o dia. E assim viviam em perfeita harmonia.

Na noite em que antecede o início deste registro cultural do povo de Meldron, Mariah teve crises de choro e não deixava seu amado por nada, ela teve febre. Porém no dia seguinte tudo estava normal e este fato fora considerado como dor de amor...

Ah... Se fossem supersticiosos. Quem sabe teriam sido salvos? Quem sabe?

Foi na madrugada desta mesma noite que Berdinard e seu exército da “paz”, mesmo cansado em dizimar duas tribos próximas se aproxima dos limites de Meldror e o mentor ordena um ataque.

“Não matem ninguém! Um animal sequer! Quero ver os maldoneiros se converterem um a um à nossa crença! Já perdi gente demais estes tempos! Todos tiveram que se redimir pela dor e pela sublimação do fogo! Tolos, não entendem! É meu dever salvar suas almas! E quando acharem a alma mais rebelde, a jovem de ruivos cabelos e seu amado Hazaiel, tragam até mim, pois os convertendo salvarei a todos!”.

Berdinard mais parecia possuído por demônios do que são. Ele já não comandava sua vontade, não era mais a crença religiosa, era a raiva, a vingança... Estava cego, como nunca!

Os homens armados de tochas e lanças afiadas entraram nas tocas de pedra e traziam para fora, aos gritos, mulheres e crianças e os homens eram ainda mais maltratados, todos arrancados de sua paz noturna, de sua vida sadia e sábia.

Ah se soubessem que Mariah havia tido uma febre intuitiva. Alguns começavam a desconfiar, mas já era tarde... Tarde demais.

Berdinard com sua voz rouca e medonha, de feições luciferinas recém criadas irreconhecíveis até para seus homens, rosnava palavras de sua crença!

“Converte-te mulher e criança e assim também teu homem aos mandamentos do santíssimo Ser que acredito e de agora em diante nunca mais terão sua crença inútil de que és livre e que a natureza também o é! A natureza é controlada por nós, homens seres superiores! Não vês? Ainda há tempo. Digam que se arrependem, beijem a bandeira que meu homem traz na mão direita e queimem tudo que possuem. Venham caminhar comigo, do contrário vós que sereis queimados envolvidos em toda a natureza que amas!”.

O povo nada dizia.

“Queimem todos! Queimem tudo! Tolos...”.

Essas palavras me causam arrepio e medo e sei que ao leitor também. Tanta arrogância, tanta ignorância. Não se pode obrigar os outros a serem o que somos! Nunca. Mas Berdinard esqueceu este ensinamento.

Mariah estava nos braços de seu amado dormindo quando ouviu as vozes e gritos. Pensou que estava sonhando acordada mais uma vez, mas enganou-se. Acordou seu amado e desceram até a vila. Estavam no alto da montanha. Não deviam ter descido. Jamais.

“Hahaha, pois bem! Até que enfim o casal de elfos decidiu não mais se esconder enquanto seu povo morre queimado. Pensei que teu amado querida, fosse tão covarde quanto belo!”.

“Você é maluco Berdinard! Volte para sua terra! Teu povo suplica para que voltes a ver e a guiá-los sem fanatismo! Tua crença é digna, tu que não o és digno dela! Mata em nome daquilo cuja finalidade é dar vida e satisfação em viver! Onde pensas que chegarás com este escudo em brasas, com este olhas impassivo e morto?”.

“Hazaiel! Tu falas! Pensei que ainda fosse um garoto, mas embora tenha palavras de adulto que tenho certeza foi tua esposa que ensinou, não sabes nada da vida e da crença! Darei a última chance a ti e a teu povo para que se arrependam e se furtem do prazer do perdão pelo fogo. Eu os perdôo em nome da santa obra e estarão livres para me seguir na minha fé vivos”.

Mariah assistia a tudo calada. Queria que os dois parassem de brigar. Até pensou em forjar arrependimento só para que seu amado e todo o povo não morressem. Mas não houve tempo. Ela não sabia ser quem não era e logo lançou sua língua em palavras ao louco conversor:

“Que pensas tu, velho homem? Estás acabado! Achas que tens a chave de todas as verdades? Que podes acabar com as diferenças universais desta forma? Não! Estás enforcado por teus medos e rancores! Assim não religará os povos! Deste modo só haverá mais raiva em tua direção daqueles que viverem e mesmo os que morrerem a teu favor jamais serão! Por favor! Pelos quatro ventos e pelos sete cantos do universo! Deixe-nos em paz! Siga teu caminho em tua fé e encontre a si mesmo nela, coisa que não pode fazer por mais ninguém que não tu mesmo! Parta agora, eu lhe peço!”

Nada era dito para ele... Estava tomado por legiões de sentimentos ruins. Não entendia nas frases de Mariah a verdadeira essência do ser, o livre arbítrio, o pedido de clemência. Não ouvia, não enxergava mais nada.

“Prostituta do tempo! Insana! Sandia! Treslouca! Eu não vou embora enquanto não ver as cinzas de todos vocês! Condenaram-se todos. E você os condenou. Fraca! Tragam o amado desta bruxa! Eu mesmo lhe acenderei a fogueira!”.

E começava ali o sabor agradável da vingança particular de Berdinard.

Gritos. Urros. Desespero. Mariah se contorcia enquanto seu povo era empalado e amarrado pelos homens “santos” e nada podia fazer, pois era segurada também por eles!

Hazaiel sentiu medo. Mas estava em paz. Preferiria morrer a ceder a cruz branca. Ele sabia a quem servia e não negaria seus votos nem para salvar sua vida.

Amarrado foi e levado à fogueira que já ardia com dezenas de outros corpos de seus iguais.

Mariah grunhia: “Nãooooo!”.

Caiu no chão. Segurava com força a terra entre seus dedos.

Seu amado somente sorria para ela. Como se pedisse a ela calma. Sussurrou “Eu te amo” e aos poucos desfalecia na medonhez em que seu corpo se transformou com as chamas “purificantes” do “bem”.

“Seu maldito! Vassalo! Eu quero morrer! Atire-me na pira junto dele! Eu te ordeno porco imundo! Falso profeta! Torre de Nefer! Eu quero morrer ao lado dele! Te odeio!”.

Berdinard podia ser ainda mais cruel do que se pode imaginar. Não se regozijava de seu plano em deixar a moça a seu bel prazer e aprisionada. E não daria a chance de realizar o desejo da louca de se jogar na fogueira e se consumir junto de seu bem amado gnomo. Não! Berdinard era de dar medo ao demônio!

“Querida... A fogueira só é para aqueles que tem salvação. Você já está destruída. Tua alma já é das trevas. O fogo não te purificará. E também não quero para mim mulher tão perdida para fazer perder meu povo! Não, não. Vagarás para sempre até morrer de fome. Veremos se sua natureza lhe dá o de comer, se seus animais te aquecem e o Sol te nascerá belo como sempre. Eu a deixarei a mingua para que teste tua fé e se lembre de tudo que causou e perdeu”.

Mariah não consegui dizer uma palavra.

Estava morta ali.

Somente enxergava fogo por toda parte se alastrando.

Homens rindo.

Gritos.

Choros.

Clamores.

E o rosto calmo de Hazaiel.

Dor...

Vingança...

Saudade.

(Emilia Ract)

Emilia Ract
Enviado por Emilia Ract em 07/10/2008
Código do texto: T1216834
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