ALUCINAÇÃO *

Reverberava da janela do pequeno quarto um sol tênue, de meia tarde, chocando-se com o vitral, causando um reflexo luminoso, qual fagulha de uma chama.

A rua era deserta. Só mesmo a réstia de luz permanecia latejante. O comércio tinha suas portas cerradas, deveria, certamente, ser feriado. Da mais modesta loja até o Paço municipal, podia se admirar, ainda que de forma modesta, a arte no talhe das portas, gosto hoje raro. Uma ou outra alma percebia-se perambulando pelos arredores, no átrio da matriz, a qual exibia belíssimas esculturas, imagens sacras, lembrando o período barroco. De resto, pouco ou quase nada se alterava naquelas pequeninas alamedas, distribuídas em forma de setas, tendo por centro um jardim melancólico a rodear a igreja.

Um cão magro, empesteado, contrastando com o asseio do ambiente, acomodou-se sob um dos bancos, gentilmente cedido por uma das casas comerciais ou personalidades da câmara.

Acompanhava o cenário plácido, uma fragrância agradável, provinda dos pés de figo, predominante por todo o passeio público. Um chafariz aposentado lembrava a mitológica figura grega, Netuno, a ostentar um tridente ou cedro – não estou bem certo – cercado por graciosos peixinhos de pedra a jorrarem água na fonte seca.

Aquele harmônico conjunto de coisas simples e belas chegava-me como uma tela em guache com matizes claros, suaves e exageradamente poéticos. Não fosse o pesar que de mim se apossava, poderia propor-me uma volta pelos pontos mais excêntricos para certificar-me se tal paz reinava também pela periferia. Não fui. Estava demasiadamente indisposto, os olhos irritados e vermelhos por uma noite em claro. Dessa forma, recolhida a inspiração no âmago ferido, toda a sensação transmitida pela paisagem bucólica tornava-se enfastiante e monótona, dando-me a certeza do isolamento, pondo-me n’alma um esplin deplorável.

Limitei-me a observar de longe o clima propício às divagações do espírito. Desprezei ou procurei afastar imagens que me fizessem recordar a chaga ainda sangrando, escancarada, doída. Não raras viam, às bátegas, encontrando-me fraco e indefeso, impossibilitado de fuga, como um foragido embestegado num labirinto sem saída, cuja única sina fosse o fim.

Num plano irreal, pensei entregar-me à letargia profunda, esquecendo-me na coloração pitoresca daquela paisagem. Cheguei a temer um pesadelo, como se a situação em si já não o fosse. Invejei o cão, mesmo doente, pois descansava despreocupado.

Uma gota de suor escorreu-me pela testa trazendo-me à realidade. Era verão. Um mormaço, antevendo chuvas, evaporava-se do solo, enchendo-me as narinas de um frescor de terra revolta ao contato com a água.

Trajava um hábito sisudo, de pêsames, negro. A camisa de um colorido discreto colou-se à pele. Eu transpirava por todo o corpo. Sentia, amiúde, calafrios e mal-estares passageiros, resultando em freqüentes vertigens.

Achava-me debilitado e exausto. Não tinha apetite, tampouco calma para o sono. Há dois dias abstinha-me da alimentação. Tinha os olhos saltados nas órbitas e um ar alucinado, beirando à sandice total. Vagava como uma sombra babélica, fitando o vazio, vendo não vendo.

A tela poética, bela e tranqüila, tornava-se, ao sabor de meu estado de semi-consciência , funesta, carregada, escura. As árvores envergavam seus galhos num farfalhar enlouquecedor, chegando a derrubar seus frutos ainda verdes. Julguei ouvir, levemente, o sino agitar-se com o vendaval que se anunciava breve, dando ao todo um tom de dilúvio apocalíptico.

Passados os instantes de agonia, voltava a mim e tomava ciência de que tudo não era senão o produto de uma mente condenada, tresloucada, enferma. Tratava-se não de uma tempestade, como terrivelmente imaginara, mas de algumas nuvens passageiras, sem diminuírem a temperatura, apenas refrescando-a um pouco.

Uma algazarra alegre ouvia, barcos de papel, risos, choros, euforias, Sol e Chuva casamento de viúva ! como se dizia na inocência de meus primeiros anos. Este pensamento mesclou-se em meu ser desnorteado e encheu-me os olhos de um saudosismo intenso... Quem dera, agora, não temer o inevitável, não envelhecer-me no tédio de minhas aflições ?

Com o aguaceiro, um certo movimento animou, por instantes, o panorama. A chuva descia copiosa e sôfrega em nutridas gotas, será breve – pensei. Um casal de pombos, possivelmente ocultos nos alpendres das casas ou pelos vãos das calhas sobrevoaram a praça, cortando-a, indo pousar próximo à capela do sino. O vira-latas, preguiçoso, buscou refúgio mais acolhedor no coreto velho, em desuso, instalando-se num ângulo ainda livre das goteiras, enquanto lambia a ferida exposta, procurando alívio para a sua dor.

O silêncio, se é que chegou a ser molestado, invadiu definitivamente as ruelas e as vidas solitárias, dando à tarde um anoitecer precoce, auxiliado pelo tempo que a fazia escura.

Da janela, prostrado, em pé, observava a praça tornar-se opaca, com as figueiras, as aves, o cão... Embaçou-se o colorido da vidraça e atrás dela minha face, retalhada em cores fortes, num mosaico tétrico.

Apagava-se, por fim, o último alento de vida, o raio de sol na janela.

Um manto negro debruçava-se sobre a tarde, que morria, eu, confuso, ia com ela...

(folha Literária, colégio estadual Fidelino de Figueiredo, São Paulo-SP, 1978)

* TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA DE CONTOS ALÉM DA IMAGINAÇÃO DA EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, EDIÇÃO MARÇO/2010