A ARTE DE FALAR COM ARTE
Preferi iniciar meus diálogos com a mais jovem entre as damas presentes. A caçula da exposição. Além de ser uma imagem de uma bela jovem, foi pintada às portas do século XX, mais precisamente em 1898.
Já havíamos trocado olhares em oportunidades anteriores, pois além de tudo ela foi à imagem escolhida para a divulgação da exposição, mas não havíamos ainda nos falado. Foi assim minha primeira tentativa de aproximação com a nossa Mona Lisa, Gioventú um óleo sobre tela de criação do catarinense Eliseo D’Angelo Visconte (1866-1944).
— Boa Noite! Como estas bela donzela? — Tentei formular a frase como se estivesse no seu tempo, mas a princípio não tive sucesso em minha investida.
— Por qual motivo haverias tu de não falares comigo! Meus olhos são para tua beleza. Não te envergonhes com teu busto desnudo. Afinal de contas, apesar da avançada idade de tua existência, tu foste imortalizada com enorme destreza, no auge de tua beleza juvenil.
Quase que a vi de face rubra, senti que estava sendo ouvido e que então estava no caminho certo.
— Desculpe se te pareci avoada ou distante, nobre senhor — Respondeu Gioventú — É que tuas vestes e teu jeito são para mim tão estranhos.
— Ora Gioventú, tu estás de seios a mostra e reparas em minhas calças curtas! — Falei fazendo menção à bermuda que vestia.
— Me envergonho senhor de assim estar. É que como bem sabes, sou um ícone agora e estarei para sempre assim de seios a mostra.
— Tudo bem. Vamos deixar de formalidades, podes passar a me tratar por você ou vos mecê, como estais acostumada, pois me coloco muito novo para ser tratado por Senhor. E também na verdade não tenho posses suficientes, que me qualifiquem para tal título.
— Espero que me perdoes, é que o hábito faz com que me comporte de tal maneira.
— Está perdoada. E espero que tu também me perdoes, porque estou, digo estamos agora no século XXI e para mim é difícil falar de forma tão rebuscada. Por isso se não me tornar claro o suficiente, por favor me interrompa.
— Claro, cavalheiro.
— E espero que me desculpes também pela anedota sobre as calças curtas, não sei se ela foi de bom grado, mas a intenção era deixar-lhe mais à vontade.
— Mais à vontade do que já estou, só se estivesse completamente desnuda e se assim estivesse, talvez tivesse sido imortalizada pelo nobre senhor Amoedo. — Desta vez a piada partiu de Gioventú, se referindo ao pintor baiano Rodolfo Amoedo (1857-1941), famoso por seus nus.
— Vejo que entendes de arte. Quando viva eras uma amante das belas artes?
— Nobre cavalheiro, te esqueces que sou uma idealização? Como poderia eu estar com minha idade de peito desnudo para um pintor retratista, mesmo que seja o respeitoso senhor Eliseo?
— Queres dizer então que tu não existes? — Respondi atônito.
— Como não existo! Tu estas decerto louco ou em devaneios? Tu não estas a me ver em tua frente!
— Sim, claro, me expressei mal. Na verdade quis dizer não existia, apenas morava na mente de teu idealizador?
— Naquela época sim, mas agora pertenço ao mundo. É como se criasse vida e com isso meu espírito acabou se tornando meio cigano, se é que posso dizer isso.
— Percebo que tens bom humor e que gostas de uma boa piada, digo anedota.
— Nobre senhor...
— Já lhe disse, não me trate por senhor...
— Perdão cavalheiro, mas continuando, pareço a você ter quantos anos de vida. Na verdade não pense na obra e sim na jovem mulher seminua que contigo proseia.
— Treze talvez quatorze anos, não mais que isso.
— Pois então cavalheiro que idade mais rica em alegria pode existir senão a juventude. E não sou eu então o retrato da pureza e beleza da juventude do final do século XIX?
— Pois bem, há de ser, é verdade. Perceba porém a dificuldade de prosear que tenho pela distância cultural e temporal.
— As distâncias se encurtam com a chegada da tecnologia. Lembre-se pois, que não estarias aqui se não fosse o advento da modernidade, da energia elétrica, dos computadores...
— Como conheces tudo isso? Podes me explicar?
— Antes de tu andei proseando por aí, como tu bem deverias saber.
— Gioventú, Gioventú, sempre cheia de surpresas.
— Interessante o que dizes, a juventude na verdade esta sempre a pregar peças, não importando a época não é verdade?
— Tens razão!
O mais estranho para mim não é estar falando com um quadro, mas o fato desta reprodução... bom na verdade o que me espanta é a experiência de vida que esta menina tem para transmitir. Realmente fantástico. Tudo é fantástico.
— Por falar nisso pare de me chamar por Gioventú, senão passarei a chamar-lhe senhor como outrora.
— Mas nem ao menos sei teu nome! Como poderei me dirigir a ti!
— Como quiseres, lembre-se que dialogo contigo através da interação da tua sensibilidade ao me olhar e a sensibilidade do artista ao me criar. Portanto a ti pertence tudo aquilo o que puderes de mim tirar.
— Enquanto penso em um nome para ti, posso esclarecer uma dúvida pessoal?
— Claro que sim!
— Em que tu pensavas quando foi retratada?
— Sabes que tu não és a primeira pessoa a me dirigir tal indagação?
— Já imaginava.
— Pensava em várias coisas. A juventude é maravilhosa, o melhor momento da vida. É quando existe mais fertilidade em nossa mente e é a fase da vida que de alguma forma deve permanecer.
— Está se perdendo em devaneios ou não queres mesmo responder?
— Espanta-me tua sensibilidade, cavalheiro, por isso podemos manter franco diálogo.
— Fico agradecido e lisonjeado, mas na verdade ainda ansioso por uma resposta tua.
— És impossível! Está bem, responderei. Pensava em como seria meu futuro, apesar de tudo e dos adultos pensarem que não nos importamos com o futuro era nisso que eu mais pensava.
— Tua face é mesmo de preocupação.
— Acredito ser mesmo um misto de sentimentos. O futuro a Deus pertence e quando me pego a admirar Heloísa e o Cristo em seu altar, penso novamente no destino que a mim está reservado.
— Ganhaste fama e tiveste a beleza imortalizada o que mais poderia querer?
— Minha preocupação era com o nu, já imaginou se eu estivesse assim sentada, retratada aos pés de minha cama?
— Que mal haveria nisso?
— Lembre-se cavalheiro, século XIX, se hoje nos dias em que vive minha imagem já serve para abordar temas como o sexo, virgindade e pedofilia, que diria a cem anos atrás?
— Tua sabedoria me espanta!
— Aprendo por estar na estrada, nas galerias e com o tempo. O tempo é um grande amigo. Ele cura as feridas do esquecimento.
Neste momento, surgiram em minha mente imagens. Vi nitidamente o fim de uma exposição. Os quadros sendo retirados das paredes e painéis e embalados em plástico bolha. O transporte até o depósito e lá o esquecimento até uma próxima exposição. E o objeto de admiração durante o período da exposição, se torna apenas mais um quadro no depósito juntando poeira até ser selecionado por um curador em uma outra oportunidade.
— Desde a tua época a juventude já era mal compreendida, não achas?
— Pode ser, mas não era sobre isso que falávamos...
— É verdade, desta vez o devaneio veio de minha parte. Queres dizer então que a idéia do artista era te pintar sobre uma cama, como se pensasse sobre o melhor momento de se entregar aos prazeres da carne?
— Agora percebes o porque de minha preocupação? Afinal de contas é a minha imagem!
— Literalmente. — Respondi entre risos.
— Deixe de piadas e retornemos ao assunto.
— Voltemos a “vaca fria” como dizem.
— Pois então, pensando nisso sugeri algo mais suave, afinal eu já havia sido criada e contrariando o princípio, existo, logo penso.
— Esta foi realmente boa. Pensando em como ficaria sua imagem para a posteridade, sugeristes ao artista um ambiente de floresta.
— Pois sim, pense comigo. Olhando para mim sentada seminua no meio de um bosque por entre os pássaros. O que te faço lembrar?
— Deixe-me pensar... — Descontraindo o diálogo, ponho-me na mesma pose em que Gioventú foi idealizada e mesmo não podendo ver efetivamente, sinto que ela abre um largo sorriso como resposta a meu gesto. — Uma ninfa, talvez uma fada.
— Mas é claro, uma imagem mitológica, por isso estou inclusive ao lado da imagem da Deusa Nix.
Gioventú se refere à montagem proposta pela curadoria da exposição, que possivelmente entendeu como ela, que sua inocência seria mais visível desta forma, apesar de a imagem da noite ser de uma bela e sensual mulher.
— Não vais me dizer que influenciastes também a curadoria a te colocar aqui?!
— Ora meu caro, não só eu como alguns de meus nobres colegas aqui retratados. É claro que não é sempre que somos ouvidos, a democracia é sempre muito difícil. Mas tu não querias me ver ao lado da Carioca por exemplo? Nada pessoal, mas já que nem D. Pedro II a quis por perto porque então eu haveria de querer?
— Não seja rude, ela acabou sendo reconhecida assim como seu pintor, foi condecorado pelo Rei da Prússia!
— Que vantagem Maria leva! Sabes por acaso onde fica a Prússia? Acho que nem existe mais.
— Que absurdo, estas se tornando muito mundana.
— Estou a brincar, gosto da Carioca. Uma mulher revolucionária, internacional. — Colocou como que entre risos — A admiro de verdade, só não gostaria de estar exposta a seu lado. Como lhe disse, tenho uma imagem a zelar.
— Tudo bem. Tenho que ir. Amanhã nos falaremos?
— Será sempre um prazer prosear contigo.
— O prazer será todo meu. No bom sentido é claro.
— Não haveria de ser de outra forma. Até amanhã então.
— Até.
— Espere, não me falaste teu nome?
— João Paulo e o teu?
— Tu que decides lembra?
— Perdão, é a força do hábito. Mas pensando bem não sei ao certo que nome seria o ideal para ti.
— Vamos, tente, sei que tu és capaz.
— Obrigado pela confiança, mas percebeste o tamanho da responsabilidade que recai sobre meus ombros? O que os outros irão dizer se minha escolha não lhes agradar?
— Vamos, moço, esqueça os outros. Os outros nunca estão contentes com nada mesmo, encare como se fossemos apenas nós dois aqui.
— A situação merece algo mais rebuscado e ritualístico. Afinal de contas estarei lhe batizando.
— Se estivéssemos próximos da primeira missa eu poderia pedir a um dos frades para oficializar a cerimônia.
— Acho que poderemos resolver isso sozinhos. Imagine o altar ao seu lado, onde o cristo, não crucificado, mas como símbolo do Deus vivo a nos observar e abençoar.
— Se as mulheres pudessem oficializar os cultos, a própria Heloísa poderia resolver este problema.
— Não achas que a hora é um pouco imprópria para discutir os direitos das mulheres?
— Acho apenas que um Deus não tem sexo e pode ser representado tanto pelo homem quanto pela mulher, já que os sexos não são na verdade opostos, mas sim complementares.
— Está bem, concordo com você, mas vamos nos concentrar ou não acabaremos com isso hoje.
— Respeito-te nobre sacerdote, espero que me perdoe — Foi a resposta irônica de Gioventú.
— Em nome do poder investido a mim pelo próprio Deus vivo, que é homem e mulher eu te batizo...Vitória.
— Vitória!!! Nobre senhor, que lindo nome. Podeis me iluminar e desvendar o mistério que o faz nomear-me por este nome tão ilustrativo?
— Caríssima Gioventú, Vitória melhor dizendo, a inspiração que me veio quando desejei chamar-te por tal nome foi somente porque penso que Vitória condiz com tua posição. Vitória da tua beleza sobre o tempo, da tua juventude sobre o esquecimento. Eis o motivo!
— Que nobre motivo cavalheiro, com tua retórica acabo por ficar mais melancólica. Não sei se a eternidade me agrada tanto assim. O tempo também merece fazer seu papel de tutor da validade de tudo. O que seria bem mais natural. Mesmo algumas obras sucumbiram por obra e arte, se me permite o trocadilho.
— O Tempo, o Tempo... Não acho que devamos sucumbir a tão cruel senhor. Pelo menos não tu com tua promissora beleza histórica. Mas se não gostastes do nome, posso respeitar tua decisão e deixar de lado tal ousadia, que por certo Visconti condenaria.
— Não sejas modesto, sabes que adorei. E te agradeço e estendo a benção a ti, para que venças o Tempo, o senhor de todos os senhores.
— Assim seja!