O Gabinete
Parte I – O ambiente
Já faz muitos anos da última vez que desci a minha escada de mármore negra. Hoje fico tentando imaginar como ela seria. Lembro-me de que havia parede e corrimão apenas do lado esquerdo, mas nem sempre eu precisava me apoiar, ainda tinha muito equilíbrio e força. Às vezes eu até descia saltitando, sem medo algum de cair; e talvez ali uma queda fosse fatal, porque o lado direito era um grande vão, um precipício mais negro ainda, cujas dimensões eu nunca pude saber.
A escada já se me apresentou assim desde a primeira vez que a imaginei. A única alteração que eu havia feito foi colocar um carpete vermelho para forrá-la parcialmente. Seu Alfredo havia me aconselhado a fazer isso, ele achava que não era bom eu ficar pisando diretamente no mármore negro. O carpete funcionaria como uma espécie de isolante.
No final da escada havia um porão. De início era uma sala abandonada, escura, sem ventilação, com livros velhos jogados de qualquer jeito no chão. Tábuas espalhadas, teias de aranha, mofo... Ali eu pude fazer uma grande reforma e o resultado foi muito bom. Abri duas grandes janelas, instalei luz elétrica, providenciei móveis e prateleiras, limpei e organizei os livros. Ao final eu tinha meu Gabinete de trabalho. Sentia-me importante em minha confortável cadeira estofada diante da grande mesa polida. Dispunha ali de todo material necessário... menos computador, porque naquele tempo ele era inacessível às pessoas comuns. Tinha até ventilador de teto.
Daquela posição eu podia observar o seguinte: à minha frente um grande quadro negro para as anotações diárias e a tela do projetor; acima do quadro um lindo relógio de ponteiros e números grandes e bem definidos; ao lado esquerdo minha bem organizada biblioteca, com os melhores títulos de quase todos os assuntos. Finalmente, ao lado direito a minha farmácia, com medicamentos e órgãos vitais. Era muito prático porque se um remédio não resolvesse o meu mal estar, eu poderia simplesmente substituir o órgão afetado. Eu tinha ali desde pulmões, fígados, vesículas, rins, estômagos até um sistema nervoso completo, com medula e tudo.
Quando contei a seu Alfredo sobre a reforma ele ficou empolgado. Eu ainda disse que, aos poucos, estava melhorando a decoração, com bonitas cortinas, tapetes, vasos e alguns badulaques. Então ele me disse que faltava apenas um item importante: um Assistente. “Um Assistente?” – perguntei – “no meu Gabinete pessoal?” Ele me respondeu que não haveria problemas, que bastasse colocar uma cadeira ao lado direito da minha e que logo o Assistente estaria lá para me receber. Como seu Alfredo era da minha mais alta confiança, procedi conforme suas orientações: providenciei uma nova cadeira e deixei-a ao lado direito da minha, no mesmo dia em que terminei os detalhes da decoração. Naquela hora, ao deixar a sala, passando pela porta e prestes a subir a minha escada de mármore negra com carpete vermelho, ainda fiz uma observação panorâmica do ambiente e me senti extremamente bem: “meu Gabinete está pronto”.
Parte II – As atividades
Era o meu primeiro dia de trabalho no Gabinete. Desci a escada, abri a porta e tive uma surpresa: lá estava o Assistente. Assim que me viu levantou-se e veio me receber à porta. Era um ser difícil de se descrever, sua aura muito branca me ofuscava um pouco. Apesar disso tive uma sensação de paz, suas palavras me tranqüilizaram. Ele apenas me pediu que confiasse nele e que fizéssemos uma pequena oração antes de iniciarmos as atividades, e assim foi feito.
O que minha memória me permite agora relatar sobre aqueles dias é que, num primeiro momento, fui ao quadro e comecei a escrever uma lista de prioridades pertinentes à minha vida naquela época. Lembro-me de ter comentado com o Assistente que gostaria de dispor daquela organização e métodos não só no Gabinete, mas também fora dele. Ele me respondeu que, à medida em que eu fosse evoluindo, saberia também aplicar tudo aquilo quando estivesse fora e que, se atingisse um determinado nível, poderia estar dentro quando estivesse fora e vice-versa. Não entendi direito, mas me senti muito bem com essas palavras. Àquela altura minha confiança no Assistente já era plena.
Após escrever a lista no quadro resolvi testar o projetor. Baixei a tela e voltei à minha mesa. Lembrei-me de que um amigo, uns dias antes, havia me descrito sumariamente uma garota que conhecera; altura, cabelos, olhos, boca, enfim, esses primeiros detalhes. Então mentalizei a descrição e liguei o projetor. Fiquei impressionado, era um filme de imagens claras e absolutas. A garota era linda, de olhos castanhos claros, cabelos castanhos curtos que deixavam descoberta uma nuca realmente tentadora; seu sorriso era maravilhoso e mostrava um pequeno defeito em um dos dentes, que mais parecia um charme. Aquele dente quebrado na pontinha formava um pequeno traço diagonal que combinava com o conjunto do rosto, principalmente com os olhos ligeiramente puxados. Depois a imagem foi se ampliando, como se a câmera estivesse se afastando, e eu pude notar que ela estava com um vestido salmão, de alças, sentada ao piano, tocando uma linda melodia. De repente, vejo na tela também esse meu amigo, que lhe dá um beijo carinhoso na testa, e ambos voltam-se para mim (ou para a câmera) e sorriem como se estivessem me agradecendo por algo.
Os dias foram-se passando e eu fui, aos poucos, aprendendo a lidar com aquelas coisas. O relógio era muito interessante e eficiente. Se eu quisesse acordar, por exemplo, às sete horas, e não tivesse despertador, bastava colocar os ponteiros na posição correta e escrever no quadro: “amanhã vou despertar às sete horas”. Então eu podia terminar tranqüilamente os trabalhos do dia no Gabinete, subir a escada de mármore e ir dormir. No dia seguinte, num estalo, eu acordava e podia conferir: eram sete horas em ponto.
Certa ocasião, não duvidando da eficiência do relógio, mas para ver a que ponto chegava, eu o programei para me despertar de hora em hora, da meia-noite até às sete. Naquela noite me dei mal e passei o dia indisposto, pois tive meu sono interrompido sete vezes.
Mas foi com o uso da biblioteca e com os conselhos e a orientação do Assistente que eu comecei a sentir na vida prática os efeitos das atividades no Gabinete. Era estudante do nível médio na época e tive uma boa evolução acadêmica. Em tempo de provas, ia para o Gabinete e conversava com o Assistente sobre a escola e as matérias que eu teria de enfrentar nos dias seguintes. Ele sempre me aconselhava a prestar atenção nas aulas e me indicava os livros da nossa biblioteca que poderiam me ajudar. Funcionava mesmo, nos dias das provas eu chegava na escola bem preparado e confiante. Minhas notas foram excelentes naqueles tempos.
Comecei a ter sucesso também na utilização da farmácia. Já algumas dores de cabeça e de estômago haviam sido eliminadas com os remédios que eu tomava no Gabinete. Uma vez meu amigo e colega Heitor disse que seu pai estava muito mal no hospital, que seria operado de um sério problema cardíaco. Os médicos não estavam muito confiantes. No dia da operação eu desci ao Gabinete e relatei o caso ao Assistente. Ele respondeu que poderíamos salvar o amigo utilizando o projetor e a farmácia. Mentalizei firme e liguei o projetor. Pude ver, então, o pai de Heitor em um leito de hospital. A imagem da tela foi crescendo, girando, e quando dei por mim, a visão era real. O homem estava deitado ali, no meio do Gabinete. O Assistente me mandou pegar um coração novo na farmácia e colocá-lo no peito do doente. Após alguns dias, Heitor me disse que tudo havia corrido bem com seu pai, e a recuperação estava indo muito melhor do que os médicos previam: “parece até que lhe arrancaram o coração velho e puseram no lugar um novinho em folha”, foi o que ele concluiu.
A mesma sorte não teve dona Bernardete. Ela era minha vizinha, bem idosa e sofria de graves problemas respiratórios. Desta vez o Assistente me disse que não poderíamos fazer nada além de uma boa oração, apesar de termos pulmões em nossa farmácia. Dona Bernardete já estava encaminhada, o que não era o caso do pai de Heitor. Fizemos a oração. No dia seguinte dona Bernardete faleceu.
Obviamente ninguém sabia das minhas atividades no Gabinete. Isto era questão de honra e um segredo meu e de seu Alfredo. E tudo começou por causa da escada. Um belo dia ele me disse: “imagine uma escada”. Como assim, uma escada? – perguntei – e ele: “apenas imagine uma escada e me descreva a primeira que vier à sua cabeça”. Entrei na dele, fechei os olhos e comecei a imaginar: - é uma escada de dez degraus que desce. “É reta?” – Não, ela faz uma curva para a direita. “É de cimento ou de madeira?” – É de mármore. “Que cor?” – Preta. “Preta? Caramba! Tem parede?” – Só do lado esquerdo. “E corrimão?” – Só do lado esquerdo também. “E o que há do lado direito?” – Nada. “Como nada?” – Nada. Absolutamente nada, parece um buraco negro, um precipício sem fim.
“É, meu rapaz, você precisa de ajuda”. Neste momento seu Alfredo me olhou quase com dó e continuou: “você vai fazer o seguinte: primeiro coloque um forro nessa escada, um carpete ou qualquer coisa do tipo, não é bom você ficar pisando diretamente na pedra negra; depois você vai imaginar uma porta no final da escada, vai abrir essa porta com cuidado e me descrever o que estará vendo então”. Bem, acho que assim fica explicado como tudo começou. Depois que eu abri a porta e disse a seu Alfredo o que vi no porão, ele me disse que eu poderia limpá-lo e reformá-lo e transformá-lo num Gabinete. Não era obrigado a fazer nada disso, se não quisesse. O interesse e a vontade deveriam partir de mim. Por isso ele ficou tão feliz quando contei que estava montando o Gabinete e que queria aprender a utilizá-lo.
Parte III – A decadência
É engraçado como as necessidades da vida prática vão distanciando as pessoas delas mesmas. Ao invés de humanizarem-se, vão mecanizando-se cada vez mais, em nome de um “progresso” e um “conforto” que lhes é imposto pelas “coisas da vida moderna”. Comigo não foi diferente desta regra, e como conseqüência inevitável, o Gabinete foi ficando restrito em segundo plano. Eu já não me interessava tanto pelas atividades. Durante algum tempo,
ainda descia ao Gabinete diariamente apenas para dar uma ou duas palavras com o Assistente, basicamente para agradecê-lo e pedir que continuasse, de alguma forma, me protegendo, apesar do meu desleixo. Depois nem isso. As idas ao Gabinete foram ficando cada vez mais esparsas, até terminarem definitivamente. E eu ainda tinha alguma consciência de que não chegara a fazer e compreender nem vinte por cento do que era possível realizar ali.
As pessoas também vêm e vão na nossa vida, como um vento que, dependendo da intensidade, pode ou não deixar marcas. Seu Alfredo foi um vento muito forte, apesar de passageiro. Por onde andará agora?
Eu não sabia muito sobre a vida de seu Alfredo, apenas que ele já passara alguns anos na Índia ou no Tibet, enfim, em algum desses lugares onde o auto conhecimento e a elevação espiritual são mais importantes do que um telefone celular. Antes de me mostrar o caminho para o Gabinete, ele já havia me ensinado alguns mantras e técnicas de respiração para relaxamento e também uns exercícios de concentração com pirâmides coloridas. Eu retribuía esses ensinamentos de seu Alfredo dando aulas de violão ao seu filho, um jovem pouco mais novo do que eu.
A verdade é que essas coisas passam. Mesmo que esses contatos fossem retomados hoje, as coisas não seriam da mesma maneira. Eu acabei indo fazer um curso no interior e só voltei depois de dois anos. Ainda tentei utilizar o Gabinete algumas vezes, mas, nessa época, meus colegas de alojamento deveriam me julgar como louco ou esquisito: eu, às vezes, conversava com o Assistente em voz alta, sem querer. Quando dava por mim, dois ou três colegas me observavam e faziam aquele gesto típico de girar o indicador ao lado de uma das têmporas: “esse cara deve ser meio pancada mesmo”, aposto que era isso que eles pensavam.
Com isso, numa cidade estranha e afastado da família e dos amigos, acabei deixando definitivamente de freqüentar o Gabinete.
Parte IV (final) – E o tempo voou
Na semana passada recebi o telefonema de um antigo colega de turma, o Márcio. “Caramba, quanto tempo, cara!... Como você me achou?... Claro que eu me lembro do pessoal...”
O Márcio é um cara muito legal mesmo. Ele tomou a iniciativa de reunir a turma em sua chácara, correu atrás de todo mundo e marcou a reunião, com churrasco e cerveja, para ontem. É óbvio que eu aceitei o convite e estive lá. Acho que uma das melhores coisas da vida para aliviar o estresse é encontrar antigos colegas de turma e recordar os tempos. Dei muita risada. Estavam quase todos lá, o Paulo Cesar (o “CDF”) hoje é engenheiro de telecomunicações; o Jairo (“Pôrra Lôca”) sossegou com uma loja de roupas em uma pequena cidade do interior depois de ter tocado em uma banda de rock; a Aninha (com quem eu tive um namorico muito do mal resolvido) me apresentou o marido: “Benhê, lembra que eu te falei de um gordinho metido a poeta que eu gostava no colégio?...”
Um dos que não estavam era o Heitor. Alguns que tiveram mais contato com ele disseram que é hoje um médico renomado e vive em Brasília. Depois de uns dois anos da primeira cirurgia no coração seu pai morreu e ele pôs na cabeça que tinha de se dedicar à cardiologia.
O anfitrião, Márcio, está bem de vida. Dedicou-se, como seu pai, ao comércio de veículos. A casa da chácara é linda. Ele me apresentou a esposa, que estava tocando piano: “Esta é a Fernanda, ela não era da turma, a gente se conheceu no clube, mas eu só falava dela no colégio, lembra? Paixão antiga que deu certo...” Era uma mulher linda de cabelos e olhos castanhos. Estava de vestido salmão, de alças.
Márcio aproximou-se dela e beijou-a na testa. Depois, ambos se voltaram para mim e ficaram abraçados, sorrindo.
Cheguei em casa tarde da noite, ainda um pouco impressionado com as cenas, que há muito tempo eu vira no antigo Gabinete e que agora eram reais. Resolvi verificar antes de ir dormir, será que aquelas coisas todas ainda estavam por lá? O projetor, a biblioteca, a farmácia... E o Assistente, estaria ele me esperando pacientemente durante tantos anos?
A escada mantinha a mesma forma e cor, o carpete estava lá, bem empoeirado. A única diferença é que não havia mais parede nem corrimão do lado esquerdo. Os dois lados agora eram um grande vão escuro. Isso me assustou um pouco. Desci com muito cuidado, parei diante da porta do antigo Gabinete. Ela parecia ter voltado ao estado de porta de porão abandonado. Recuei uns dois passos, sentei-me no penúltimo degrau da escada e fiquei observando.
Tanto tempo, meu Deus... O que acontece com a gente, além de nascer, apodrecer e morrer? Talvez este seja o ciclo normal da existência, mas por que é tão difícil aceitar certas seqüelas emocionais? A porta desse porão agora está parecendo uma pedra tumular com meu nome escrito... Pelo menos eu ainda posso contar histórias, não é mesmo?
Não entrei no porão... Subi a escada e fui dormir. Qualquer dia desses quando eu estiver com mais disposição e coragem, abro aquela porta e verifico a situação lá dentro.