O PENTELHO
O Pentelho
Seu Sebastião, um senhor com seus já setenta e poucos anos sofria de uma doença rara. Esquecia-se facilmente do que havia feito alguns minutos depois do acontecido. Franzino e com aparência tísica, era portador de uma tosse parecida com essas que um pai de santo usa para dar passe nas pessoas usando a fumaça de seu charuto. Seu apelido foi dado justamente por causa de sua aparência e por seu jeito de andar. Era conhecido como “Seu Codorninha”.
Já Ubaldo era admirado e respeitado por sua paciência e jeito no trato com as pessoas idosas e também mais humildes. Há mais de quinze anos trabalhando no banco, havia passado por inúmeras situações que variavam entre o cômico e o trágico. E por força do destino, Ubaldo e seu Sebastião iriam se encontrar no decorrer da vida e também no final deste episódio, mas enquanto isto não acontece, vale relatar aqui, uma estória não menos escabrosa.
Ubaldo trabalhava como assistente de gerência há uns dois meses e ao atender em sua mesa um cliente, surgiu uma conversa meio estranha sobre mulher. Ubaldo e o cliente começaram a falar sobre a forma como certas mulheres se vestem e assim acabam provocando nos homens reações das mais variadas. O cliente concordou e Ubaldo empolgado com a conversa avistou na fila uma menina com seus 14 ou 15 anos vestida provocantemente com uma saia super curta e um decote que deixava a mostra metade de seus enormes seios ainda impúberes. E disse:
Veja só esta menina, tão novinha e já se veste dessa maneira, parecendo uma prostituta, depois algum cara vem e passa a mão, aí ela vai reclamar...Mas a culpa mesmo não é dela, pior são os pais que a deixam sair vestida desta maneira...um absurdo...o senhor não acha?
O cliente silencia e não diz nem que sim e nem que não. Meio sem jeito e de cara fechada, apenas pede para que ele lhe entregue as informações que pediu. De repente uma voz suave de uma menina com seus 14 ou 15 anos, invade os ouvidos de Fabiano ao chegar a mesa e falar com seu cliente...
Pai, já paguei suas contas e vou te esperar lá fora está bem? Neste momento um silêncio sepulcral tomou conta da mesa. O cliente ficou vermelho, mas manteve a discrição que talvez o momento exigisse. Fabiano não deu mais nenhuma palavra e ciente da bobagem que havia feito, sentiu vontade de arrancar a própria língua, mas, como não podia, rapidamente e sem sequer dirigir-lhe o olhar, entregou as informações que ele havia pedido e logo chamou pelo próximo para que se livrasse daquela situação miserável em que se encontrava. Acho que aprendeu a lição...ou não...
Mas como havia dito quero falar agora do “Seu Codorninha”. Nas primeiras vezes que o atendeu, Ubaldo sem saber foi todo ouvidos e portou-se totalmente desprovido de qualquer sentimento a não ser o que a situação normal do dia a dia exige no tratamento com os idosos. Informava a ele que não era o dia de seu pagamento e colocava num papel a data correta para que ele voltasse. No outro dia lá estava “Seu Codorninha” aguardando para ser atendido e novamente Ubaldo explicava que ainda não era o dia e escrevia num papel o dia de seu pagamento. E assim foi se repetindo esta situação durante semanas até que chegou o dia do pagamento. A esta altura Ubaldo já sabia que “Seu Codorninha” sofria de algum tipo de doença grave e rara, pois não era normal agir daquela maneira. Mas nosso amigo, sempre paciente, fazia questão de não perder a calma e ia levando na maciota. Até que a coisa começou a piorar...pois ele passou a vir na agência duas a três vezes no mesmo dia. E o diálogo já estava se tornando intragável para o nosso amigo, que havia encontrado na carteira de seu Sebastião um total de 26 bilhetinhos escritos com a data do mesmo pagamento.
Há mais de dois anos isso acontecia, e nada e nem ninguém conseguia resolver este problema. Para vocês terem uma idéia, o rapaz que havia trabalhado nesta agência antes de Ubaldo chegou a prender este senhor dentro do ar condicionado para lhe dar um susto. Quebrou seu cartão de benefício, pois ele esquecia sua senha e todos os dias queria renová-la, atrapalhando o bom andamento da fila. Havia dias em que ele aparecia antes ou depois da hora do expediente querendo entrar. O deixavam entrar e quando queria ir embora o assustavam dizendo que ele teria que ficar na agência até o outro dia. Davam um cansaço nele, mas de nada adiantava, no outro dia lá estava ele, mãos para trás, bonézinho na cabeça e sua tosse “pai de santo”. Este rapaz hoje se encontra internado numa clínica psiquiátrica fazendo tratamento intensivo e sofre de alucinações indescritíveis. Consta nos laudos que ele fala sozinho e vai se irritando até o momento em que na sua imaginação rola atracado com um senhor magro, estatura baixa e com uma tosse “pai de santo” de forma a enforcá-lo até a morte de acordo com seu próprio relato aos médicos de plantão. Para terminar vou relatar o último diálogo entre Ubaldo e seu Sebastião...que foi assim:
Oi ”Seu Codorninha”...o que o senhor manda hoje?
Vim receber meu pagamento...
Como assim? O senhor já recebeu...e foi anteontem, eu mesmo paguei o senhor!
Fala sério rapaz, não estou brincando, quero o meu pagamento, você mesmo mandou que eu viesse aqui hoje...
Não mandei não, o senhor veio porque provavelmente sentiu saudades de mim, sei que o senhor vem aqui todos os dias porque me ama...
Quero meu pagamento...anda!!
O senhor já recebeu...não vou repetir...
Você tem certeza?
Claro que tenho, pois foi eu mesmo quem lhe pagou...
Então que dia é hoje? E quando é meu próximo pagamento?
Hoje é dia 21 e seu pagamento foi transferido para o dia 31 de fevereiro...
E quantos dias faltam para chegar este dia?
Bommm...pra resumir, gostaria de informar que este diálogo estava se repetindo de acordo com as contas de Ubaldo pela milésima nonagésima quinta vez, o que certamente provocou um surto momentâneo em nosso amigo, que hoje se encontra fazendo retiro espiritual dentro de uma penitenciária de segurança máxima. Está preso há dois anos e sem perspectiva de sair ainda com vida, mas mesmo assim, com um sorriso inenarrável no canto dos lábios.
Já “Seu Codorninha”, provavelmente ainda indaga com São Pedro no céu, pela milésima vez, sobre a data de sua chegada e o porquê de seu pagamento ter sido transferido para o dia 31 de fevereiro.