Abaixo da tempestade
Os relâmpagos riscavam o céu noturno como chicotes celestiais, e a voz dos ares descia para a terra explodindo em fúria contra o solo.
As nuvens acendiam como se elas próprias fossem compostas por energia; a noite às vezes parecia voltar a ser dia. Algo estava ocorrendo.
No solo um personagem, soturno e ominoso; havia caminhado durante horas até chegar a um ponto em que julgou ideal sobre uma colina, lá ele parou, e esperou concentrado, pela resposta da natureza. Seu nome? Iogael.
Quando a força das águas que desciam do céu em forma de pesadas e grossas gotas tocaram o solo, o indivíduo que até então trajava um grande manto que lhe cobria dos pés a cabeça, começou a retirar o capuz vagarosamente. Como se tivesse medo de que a água causasse algum dano.
Uma poderosa tormenta estava em curso, e o monge sabia o que acontecia acima da tempestade em noites como aquela, participara de incontáveis combates por eras sem fim, mas agora estava confinado a perambular do pior jeito que conhecia. Tudo que lhe restou foi o ódio; um ódio tão grande que movia sua vida desde que os portões da cidade dourada lhe foram fechados.
O capuz retirado revelou uma vasta cabeleira encanecida emoldurando o rosto de feições finas, quase femininas, porém seriamente castigadas pelo tempo; madeixas tão reluzentes que até poderiam ser compostas por fios de prata, mas não eram. Eram apenas o que restou de um grande soldado corrompido.
Vozes ecoavam por toda parte, porém estavam tão longe e alto que nenhuma pessoa humana ouviria. De repente uma faísca cintilou nos ares; certamente ele sabia o que era.
“Lanças de fogo”_ pensou_ “a batalha já começou.”
Ficou sozinho por algum tempo contemplando a tormenta e a batalha nas nuvens.
“Quem estaria lá”_ pensou.”_ Quantos dos antigos príncipes decaídos lutavam contra a Luz naquela noite?”.
Retirou cuidadosamente o manto que lhe cobria o tórax e amarrou pelas longas mangas na altura da cintura; estendeu as mãos para o céu; olhos fechados como se fosse voar, mesmo não sendo mais capaz de fazê-lo já há muitos séculos.
Odiava as pessoas, homens, mulheres, crianças, idosos; todo o gênero humano. Cria que nenhum deles era digno de coisa alguma, um povo fraco, seres menores, massa de manobra e nada mais.
Estava fazendo um trabalho muito bom desde sua queda; três atribuições lhe foram concedidas: Extinguir, Roubar e destruir.
Sempre que se deparava com tempestades como aquela Iogael lembrava de seu último confronto ainda na sua forma etérea; muito, muito tempo atrás, numa época diferente de pessoas diferentes, contra uma adversária que quase o aniquilou. Naquela ocasião o confronto se deu dentro de uma velha catedral, e também sob o pesado manto da noite e da chuva.
Nesse momento uma voz ferozmente gutural nasceu do nada, pronunciando palavras há muito enterradas:
_Sküld sempre foi uma excelente guerreira e uma mulher fascinante. Disse a voz.
Iogael sobressaltou-se e procurando, girou olhando ao seu redor, porém nada viu.
A voz insistiu:
_ Uma Valkíria.
Sim; aquele tom de voz, a forma como retumbava no ar e o que dizia só poderia significar uma coisa.
_Filha de Wotan_ continuou o som monstruoso.
Iogael parecia feliz naquele momento, sabia que algo diferente estava prestes a acontecer, as grossas gotas na furiosa chuva não lhe incomodavam, encharcando seus cabelos e as roupas amarradas na cintura.
Finalmente o monge respondeu:
_ Senhor Loki!
Um raio atravessou o céu iluminando a noite e seu grito ribombou pelo tempo e espaço ao redor.
_ Esse tempo lembra-me de meu irmão que se perdeu com a passagem dos anos.
Iogael imediatamente ajoelho-se sobre a grama bombardeada pela chuva e de cabeça baixa continuava a dialogar:
_ Loki, finalmente; quanto tempo tive de esperar, fiz alunos, influenciei pessoas em muitas partes do mundo, rodeei a terra a sua procura e vendo as guerras que os homens travaram durante muito tempo; destruindo vidas, extinguindo o amor e roubando aquilo que eles chamam de fé. Quero que conheça meus alunos, o mundo os chama de dragões exatamente como...
A voz retornou como se brotasse do próprio ar; pesada, sombria e grave:
_ Já os conheço, estou constantemente vendo o progresso de minhas sombras. Mas você tem negócios inacabados; termine-os. Estive também rodeando a terra e olhando ao redor, os homens; tenho propósitos aqui desde que Miguel, o primeiro príncipe, venceu a batalha da rebelião.
O monge se limitava a escutar atentamente enquanto a voz de Loki continuava falando:
_Retornei, e ordeno que libere suas criações, é hora de reinar o caos.
O homem ajoelhado ergueu a cabeça para perguntar:
_ Até quando terei que suportar este corpo humano? Estou restrito assim. Quando minha punição chegará ao fim?
Outro trovão ribombou no ar:
_Você já foi uma sombra leal, mas não cumpriu o que ordenei; devia ter acabado com todas as filhas de Wotan que restaram, mas não o fez, vagará até o fim preso nesta falsa forma humana.
Não me questione.
Iogael abaixou a cabeça novamente, não poderia se opor a Loki, uma das estrelas sem luz que caiu do céu juntamente com Samael, Hades, Anúbis, Freyr, Destino, Belial, Shiva, Astarote, Dagom, Acolmiztli e tantos outros generais que escolheram reinar na terra ao invés de servir nos céus.
Loki continuou:
_ Tenho enlaçado todo este território chamado Brasil, colocando sombras dominadoras em atuação constante. E aqui no Rio de Janeiro tenho muitos sob meu comando, você é um deles. Muito do que tem ocorrido é minha ação e de minhas sombras, mas os mortais não vêem.
Iogael olhou para o céu e percebeu que o confronto travado acima da tempestade já estava no fim, a chuva forte gradativamente diminuía de intensidade.
_ Loki; eu suplico. Não tenho força suficiente para por um fim no que comecei. Liberte-me deste corpo mortal.
Somente o barulho da chuva que gradativamente diminuía estava sendo escutado pelo homem ali ajoelhado. Loki não respondeu.
_Como posso servi-lo se não puder agir como antigamente?
Loki não respondeu. Iogael continuou.
_Odeio tudo isso, desejo que todos os homens se percam do caminho e vou provar que posso voltar a minha forma antiga. Vou levantar o caos por onde passar.
Finalmente a voz retornou trovejante:
_Quando eu retornar a ti, vou reconsiderar sua punição caso sua tarefa esteja completa, eu exijo um sacrifício de sangue. Vá e faça o que lhe comissionei para fazer, se aproxime, engane e destrua tantos quantos puder.
Iogael se ergueu do solo e constatou que a batalha nas nuvens terminara finalmente, mas ele ainda tinha muito que dizer ao seu mestre sombrio, entretanto também sabia que Loki não permitiria mais nenhum discurso.
_Sábia decisão_ retrucou a voz_ não permitirei mais discurso algum. Vá e esteja pronto quando eu chamar.
Finalmente era chegado o momento de Iogael fazer aquilo para o que foi concebido há milênios. A chuva parou por completo; aos pés da montanha descansava o município que ficou sob a incumbência deste ex-anjo, agora ele teria de destruir o máximo de vidas no menor tempo possível para que seu mestre o libertasse da punição, e faria isso da forma que surtia mais efeito, enredando os mortais nas redes das superstições.
Ele recolocou vagarosamente o seu manto e o capuz encharcados, e caminhou novamente, tomou a direção da cidade na base da colina. Parou por um instante e com uma pequena faísca de felicidade mórbida na face oculta pelo capuz, sussurrou para si mesmo:
_ Cento e noventa mil almas.