O S A N T O

Embora o diálogo transcorresse de forma civilizada, havia, no entanto, divergência no modo de enxergar o mundo. Ele, que estava perto de embarcar em mais uma viagem, era mais incisivo e falava de forma vigorosa:

-Não adianta insistir nesse assunto, melhor mesmo é seguirmos em outra direção para não nos machucarmos novamente.

- Não sei o porquê dessa revolta toda. Tudo isso é história e faz parte da cultura da humanidade.

- Isso eu sei, mas não é sobre esse aspecto cultural a que me refiro e sim a esse aprisionamento de almas que se faz, visando tão somente interesses econômicos.

- Você tem que entender, isso é muito humano, faz parte dessa loucura que alguns têm e que outros chamam de fé. Não se esqueça que já participou desse processo.

- Tudo bem, não posso impedir que pessoas tenham fé, nem tampouco posso querer que o mundo se desfaça por falta dela, ou por falta de respeito às crenças. - O que não posso concordar é ver-me exposto dessa maneira, sendo explorado, como se fosse um produto a ser consumido.

-É, concordo com você que é triste, mas por outro lado fica até cômico. - Veja sob o aspecto positivo, você está sendo adorado.

- Cômico, e quem disse que quero ser objeto de culto e ser adorado?

- Veja e observe pelo lado positivo, você está sendo adorado e reverenciado por diversas pessoas. - Deixe que elas acreditem em algo que possa lhes dar a felicidade, ou mantê-la mais solidárias.

- E daí, devo ficar calado vendo tudo isso?

- Sei meu amigo que é triste ver a enganação, mas, por outro lado você nada poder fazer, pois já se acha arraigado dentro do inconsciente coletivo da sociedade.

- E como vou me portar perante “eu”, quando chegar lá, devo ficar quieto e aplaudir essas sandices?

- De maneira alguma, faça o que achar melhor, porém é melhor não esquecer que poderá ser chamado de louco. Lá, todos aqueles que se opõem as idéias já estabelecidas e sedimentadas dentro da sociedade são taxados de loucos.

- Devo então calar-me, e concordar com essa exploração?

- Não, mas se tentar ir contra, terá pouco resultado prático, além disso, poderá ficar isolado com seu pensamento. - Afinal o que há de errado na fé do povo?

- Meu amigo, não estou contra a fé do povo, você bem sabe disso, eu mesmo, em outras épocas preguei essa necessidade. - Mas é que ao ver-me como objeto de culto, adorado como se estivesse no “céu”, fico preocupado, você sabe tanto quanto eu que o céu, é um mero conceito teológico.

- Eu sei meu irmão, mas nada poderá fazer por enquanto. - Como já disse, isso já está arraigado dentro da sociedade e não irá desaparecer tão cedo, só deverá desaparecer num futuro ainda distante, quando todos se conscientizarem e olharem a vida e a morte com outros olhos.

-É, acho que tem razão, parece que devo conformar-me em ser um Santo, mesmo sem eu, ser.

Fez uma pausa e depois com largo sorriso complementou:

- Se eles soubessem o que já fiz de errado depois daquela vida, não estariam cultuando-me dessa maneira. - É pena que eles não aceitem a multiplicidade de vidas, como a justiça de Deus.

- Não se esqueça que esse processo ainda é necessário até que todos alcancem o grau ideal de consciência para entender o verdadeiro significado da vida.

-É, parece que vou ter que engolir mais uma vez essa estupidez humana. - E você, quando irá encontrar-me por lá?

- Bem depois, ainda não foi definido o tempo, mas não se preocupe que iremos no encontrar, e não se esqueça que talvez estejamos de lados opostos.

- Agora eu sei, mas vou tentar não esquecer quando estiver lá, mesmo sabendo que seremos outros atores em papéis diferentes.

- Exatamente amigo, é isso mesmo, mas é bom preparar-se, pois seu tempo já é chegado.

- Até breve amigo.

- Até lá, irmão.

-II-

O médico apressado passou pelos familiares da grávida e dirigiu-se à sala de parto onde a gestante começava a sentir as contrações do parto que se anunciava para os próximos minutos.

Ao entrar, ela agarra-lhe a mão e diz:

- Doutor, desta doendo demais, acho que não vou suportar tanta dor.

- Vai sim, daqui a pouco a dor diminui fique pensando no seu filho que está por nascer, e a satisfação que ele irá lhe proporcionar, pense nos seus familiares que estão lá fora torcendo por você.

- Doutor, não tem jeito de amenizar a dor, alguma injeção?

- Agora não, não é aconselhável para o feto, pode prejudicá-lo. - Você quer correr esse risco?

- Claro que não, acho que posso agüentar.

- Eu não acho, tenho certeza que conseguirá.

-Aiiiii, doutor, penso que não vou agüentar!

- Calma e resista, pois já está quase no fim.

Momentos depois quando os familiares se dirigiram ao médico que vinha ao encontro deles, a mãe da paciente foi a primeira a perguntar:

- Doutor, ouvimos o choro de uma criança, já nasceu, é menino, menina, tudo bem?

Atropelando as palavras a mãe da parturiente só se calou quando notou o rosto triste e sombrio do médico que parecia nada querer falar com a boca, mas apenas com a expressão que apresentava em suas faces.

Antes que a mãe lhe interrogasse de novo sobre o estado da filha e da criança, ele foi direto e disse:

- Sinto muito senhora, por sua filha, ela não resistiu, mas seu neto está muito bem.

- Sente muito, o que quer dizer com isso?

- Ela não resistiu ao parto, nós fizemos tudo que foi possível, para salvá-la, mas não quis o destino que isso ocorresse, sinto muito.

Aquelas palavras selaram o diálogo, ele se retirou e deixou que a enfermeira desse as outras explicações que seriam necessárias.

-III-

- Vovó posso sair para brincar com meu amigo Tiago? - Ele está lá fora esperando que a senhora autorize.

- Pedrinho pode ir brincar, mas, por favor, dessa vez não arrume confusão com seus amigos durante suas brincadeiras.

- Pode deixar, eu vou tentar me comportar.

- Tentar não, é melhor se comportar e respeitar o modo deles verem o mundo onde vivem. Não crie confusão e nem os ofenda.

- Está bem vovó pode deixar, vou me controlar.

Enquanto o tempo transcorria, as tendências do adolescente Pedro eram notadas por onde andava. De perfil atlético, não se curvava ao pensamento alheio e suas opiniões eram colocadas de forma contundente que às vezes parecia ser agressivas pelo modo dele falar.

Seu amigo Tiago, mais conciliador, tentava aparar as arestas que havia entre o pensamento de Pedro e os dos outros colegas que conviviam com ele, tanto no lazer como no estudo.

Ele se dizia não Cristão, mas admitia a existência de Deus, sem, contudo admitir ou procurar qualquer denominação religiosa aonde iam os parentes e até mesmo o seu grande amigo Tiago.

Embora ainda mais novo, o amigo às vezes tentava dar uma de conselheiro e falava com ele sobre o que acreditava.

Talvez por não haver conhecido a mãe, por ter morrido durante o parto, Pedro muitas vezes questionava até mesmo a razão de receber aquele nome.

Quando dizia a avó que deveria se chamar Roberto, esta dizia-lhe:

- Querido o seu nome foi o desejo de sua mãe, nós já conversamos sobre isso.

- Mas se ela havia morrido, por que a senhora não trocou meu nome?

- Esse era o desejo dela e, além disso, eu gosto do seu nome.

Quando ficava só após as discussões que tinha com a avó sobre diversos assuntos, falava para si mesmo que um dia ainda trocaria de nome. A única referencia que ele tinha era a avó, a mãe falecera no dia do parto, o homem que seria seu pai, havia desaparecido da vida dela quando soube da gravidez.

Ele chegou a odiar o pai, mas, porém logo esqueceu por não saber quem era e tampouco conhecer nada sobre ele. Da mãe tinha uma foto que olhava sempre, como se fosse um ato de adoração.

-IV-

- Mas o senhor quer dizer que não acredita em Deus?

- Eu não disse isso, o senhor interpretou errado, quando eu disse que essa história de Santo é coisa de gente ignorante.

- Não é a mesma coisa não?

- Claro que não amigo, crer em Deus, não depende de acreditar na existência de santos, já que esses foram criados pela igreja.

- E a igreja não é a casa de Deus?

- Bobagem, isso é um conceito errôneo que foi criado para manter o povo dentro dela. Houve época que foi necessário, mas acho que atualmente em pleno século vinte e um, isso é desnecessário.

- Por quê?

- Antes de responder eu lhe faço uma pergunta; Para que foram criados tantos santos?

- Acho que eles sejam intermediários entre os homens e Deus.

- Pois eu lhe digo que essa de intermediários entre Deus e os Homens e burrice, Deus está em tudo e no próprio homem, portanto, não precisa que ninguém lhe venha dizer que esse ou aquele e bom e merece ser salvo. - Olhe que digo ser salvo, apenas para situar nosso diálogo, pois entendo que não há necessidade de salvação de ninguém.

- Em resumo o senhor não acredita em Santo, e que não há salvação, é isso ?

- Exatamente essa história de Santo é engodo que foi criado pela igreja com intúito de manter muitos com devoção a estes e consequentemente arrecadarem mais. - E digo mais, se não existisse igreja, até acredito que estaria o homem bem mais evoluído e mais perto de Deus.

- Isso é blasfêmia. Disse uma mulher entre a multidão.

- Olhe minha cara senhora, você fala assim, porque alguém colocou em sua mente esses aspectos da religiosidade, por isso não consegue enxergar nada fora deles.

- Você é um herege, o anti-Cristo, que está tentando acabar com nossa fé.

- Engano seu, ao contrário do que pensa, quero que aumente ainda mais sua fé, mas sem crer em santos ou demônios e sim em si mesmo como um aspecto de Deus.

- Você está dizendo que é Deus, seu demônio?!

- Senhora, embora esteja sendo grosseira, não me ofende com suas palavras, pois sei que é o resultado da igreja por isso não consegue entender o que falo. Esse demônio de que fala é mais uma invenção para intimidar almas crianças.

Enquanto Pedro ia discorrendo sobre o polêmico assunto, Tiago ouvia tudo de forma apreensivo e preocupado com o rumo das altercações que surgiam durante a palestra. Mas prometera ao amigo que nada diria na frente das pessoas que fazia parte da platéia.

Durante mais de hora, a discussão foi acirrada, enquanto Pedro através da palavra inflamada, tentava derrubar conceitos que existiam em ralação aos santos, alguns saiam esbravejando e rogando pragas, desejando que ele fosse castigado pelas blasfêmias que proferira naquele dia.

Quando o último membro da platéia saiu, Tiago aproximou-se e falou:

- Pedro você ficou louco de vez?

- O que eu fiz?

- Você acha que não fez nada mesmo? – Será que não consegue colocar um pouco de juízo nessa sua cabeça e parar de agredir a crença de todos nós?

- Exceto eu. Falou Pedro.

- Tudo bem, menos você, mas e os outros, por que não respeita o direito que eles têm de pensar do jeito que pensam?

- Olha Tiago, acho melhor você também não me recriminar por pensar assim, se insistir nesse assunto, melhor mesmo é seguirmos em outra direção para não nos machucarmos novamente.

- Sabe Pedro, até parece que já ouvi você falar isso alguma vez, mas se é isso que deseja, é melhor não falarmos mais sobre igrejas, religiões ou mesmo a fé de cada um.

- Melhor que assim seja. Encerrou o assunto, Pedro.

Quando saíram do recinto o zelador que se encontrava num canto da sala esperando a saída deles para fechar o recinto sussurrou baixo:

- Se esses amigos continuarem assim, acabarão por brigar e acabar com a amizade.

Depois de cinco insistentes toques Pedro resolveu atender ao telefone que se encontrava jogado sobre o sofá onde se sentara logo após sua chegada.

- Alô, quem fala?

- Olhe, seu demônio, se não deixar de falar o que anda falando por aí, vai ter que agüentar as conseqüências.

- Quem está falando?

- Isso pouco importa, o recado e conselho estão dados! Depois desligou.

- Alô, alô, alô, droga, cada imbecil que aparece nesse mundo e ainda tentando me intimidar.

Meio bravo olhou o número de onde haviam discado e depois de tentativas descobriu que era um telefone público.

Nos dias que se seguiram, houve diversos telefonemas quase com o mesmo teor de ameaças. Procurou a delegacia para dar queixa e apresentar suas reclamações contra aqueles que agiam de forma silenciosa, nos bastidores, sem mostrar a cara.

Após explicar detalhadamente o assunto ao delegado esse simplesmente disse:

- Sinto muito senhor Pedro, mas nada posso fazer, se você não sabe quem está lhe ameaçando, como acha que posso descobrir, já que fazem as ligações de aparelhos públicos diferentes! E complementou:- Quem planta vento, colhe tempestade!

- Como disse, delegado?

- Nada, acho melhor o senhor sair, pois tenho mais coisas a fazer.

Desiludido e sem saber o que fazer para se proteger ou descobrir que lhe ameaçava, saiu lentamente da delegacia, sem saber o que faria. Seguiu diretamente a uma igreja e quando se deu conta estava dentro desta.

Um padre que se encontrava no recinto, ao vê-lo, aproximou-se e o interpelou:

- Posso ajudá-lo em alguma coisa filho?

- Filho? - Eu não sou seu filho, desculpe, entrei aqui sem querer, até logo.

- Espere talvez eu possa lhe ajudar!

- Não pode e também não necessito de sua ajuda, com licença, preciso ir.

- Tudo bem, mas se precisar já sabe onde estou é só procurar.

Saiu apressadamente do lugar que chamava de arapuca e decidiu procurar o amigo Tiago, na casa deste.

Quando a empregada atendeu a porta, antes mesmo que ele procurasse pelo amigo, esta falou:

- Seu Pedro, cruz credo, ouvi dizer que o senhor não acredita em Deus!

- Que história é essa dona Filomena? – quem lhe falou isso, foi o Tiago?

- Não, seu Pedro, eu ouvi de uma mulher que estava na mercearia que disse ter ouvido do vizinho dela.

- Não tem importância, mas é sempre assim, ninguém tem coragem de assumir aquilo que fala. – Talvez eu seja considerado louco por falar o que penso! - o Tiago está ?

- Sim, senhor, entre.

- Diga amigo, qual o problema de hoje?

- Tiago, você sabia que recebi nos últimos dias, várias ameaças?

- De morte?

- Sei lá, só dizem que eu vou me arrepender.

- Lembra que lhe falei para ser mais comedido, para não bater de frente contra todos conceitos religiosos e morais existentes ?

- Você que dizer que devo calar-me?

- Não, eu não disse isso, apenas aconselhei-o a ir mais devagar para não chocar as pessoas. – Afinal Pedro por que toda essa revolta?

- Não é revolta, talvez seja o fato de não ter conhecido meu pai e haver perdido minha mãe quando nasci e ter recebido uma educação muito rígida e orquestrada por minha avó.

- É amigo, existem coisas que não conseguimos compreender e outras que fazemos sem saber a razão.

- E aí, Tiago o que aconselha que eu faça !?

- Adianta alguma coisa, eu aconselhar?

- Acho que não! - A propósito vamos assistir ao jogo de futebol amanhã?

- Está bem, passe por aqui que eu vou, já que minha namorada anda viajando, vou aproveitar para arrumar outra.

Naquele dia os amigos ficaram por horas, jogando conversa fora, falando de coisas sérias e até mesmo de futilidades, como sempre ocorria nos dias de sábado.

-V-

Quando iniciou a palestra Pedro tinha como propósito “pegar leve”, de forma que não chocasse muito os ouvintes. Depois de meia hora de explanação, começaram os interrogatórios em forma de cobrança.

Uma mulher ainda bem jovem que se encontrava no meio da segunda fila interpelou o orador:

- Senhor Pedro, você tem algum problema sério de desvio de conduta?

- Desvio de conduta, eu, pode se explicar melhor?

- Bem, toda vez que faz suas palestras, faz questão de ressaltar que não aceita os dogmas criados pela igreja.

- Senhora, se considerarmos a igreja a que se refere como única, eu digo que sim, mas se observar, a maioria dos evangélicos, não aceita santos, e nem por isso ouvi dizer que eles tenham desvio de conduta.

- O senhor por acaso é evangélico?

- Também não, na realidade não tenho religião alguma.

- É Ateu !

- Ateu, eu?

- Sim o senhor mesmo.

- Está confundido tudo, devido aos conceitos errôneos que tem sobre fé e religião, por isso a senhora me chama de ateu. – Eu não sou ateu e mesmo que assim diga. - O que penso e acredito sobre Deus, é diferente do modo de enxergar da maioria das pessoas, mesmo que seja o mesmo Deus.

- Não entendi.

- Vou explicar melhor; alguns acreditam na existência de um Deus Antropomorfo, baseado naquilo que as igrejas vêm pregando durante milhares de anos. Eu acredito numa energia latente em tudo e em todos os lugares, a quem denomino de Deus. – A maioria dos cristãos, teme Deus, por que receberam essa herança dos antepassados.

- O senhor não teme a Deus?

- Não, e acho que não seja isso que ele deseja, acredito que Deus deseja que os homens se entendam e se amem, pois se assim fizerem também estarão amando-o, porquanto ele faz parte de todos. – Pense em Deus como o Sol e que cada raio desse sol, seja parte de cada um de nós, isso é Deus.

- Isso é absurdo. Falou um jovem que se trajava a rigor, como se estivesse indo a um casamento. Era daqueles que poderia ser taxado de pastor, devido sua maneira de se trajar.

- Blasfêmia. Gritou outro.

- Meus amigos, sempre que ouvimos alguma coisa e não aceitamos, é porque já temos conceitos e preconceitos estabelecidos, que se chocam com o que acabamos de ouvir. – O Cristo morreu na cruz, por ser um pensador que queria transformar conceitos e valores da sociedade da época.

- Não, ele morreu na cruz para nos salvar! Vociferou um senhor idoso que estava na última cadeira da platéia.

- Meu caro senhor, respeito o seu modo de ver esse aspecto de salvação, mas isso na realidade não é necessário. – O Cristo, morreu por ter falado o que era novo e não aceito na época. – Se hoje não houvesse liberdade de expressão, talvez eu também viesse a ser queimado vivo como foram outros, pelo fato de pensarem diferente dos conceitos que a igreja queria que o povo aceitasse.

- A igreja é a casa de Deus!

- Se é nisso em que acredita, não vou dissuadi-lo disso, mas sei que as igrejas falharam por não conseguirem acelerar a evolução espiritual do homem, pelas falsas promessas de salvação ou castigo.

Por mais de trinta minutos o ambiente esteve tenso entre o revolucionário da palavra e pessoas simples que se sujeitavam aos preceitos pré-estabelecidos, por medo ou por comodismo.

-VI-

Estava cansado pelo debate, ao assumir e defender posições revolucionárias, tentando mudar um pouco a cabeças de pessoas que se sujeitavam aos enganos das religiões que lhes prometia uma gama variada de bugiganga a pretexto de salvação, mediante módicos pagamentos.

Sentado do jeito como se encontrava, adormeceu sobre o sofá, onde tantas vezes brincara e conversara com sua avó quando criança e adolescente.

O lugar por onde andava era muito bonito, grandes parques e jardins floridos se estendiam até perder de vista. Pequenos animais e pássaros alimentavam-se dos frutos e sementes que ali eram abundantes.

Absorto na deslumbrante paisagem, não percebeu que duas pessoas estavam ao seu lado, esperando serem notadas para conversarem com ele.

Ao se virar, viu uma linda mulher sorrindo como se houvesse ganhado o maior dos presentes, enquanto o homem que a acompanhava se limitava a sorrir, mas com os lábios fechados.

- Quem é você? perguntou Pedro.

- O nome Marina diz alguma coisa para você?

- Não!

- Então pouco adianta eu falar meu nome, o que mais importa mesmo é sobre o que viemos lhe falar.

- Sobre o que desejam falar-me?

- Viemos pedir-lhe para moderar um pouco seu verbo, para não melindrar tantas pessoas.

- Você também está dizendo que eu estou errado?

- Eu não disse isso Pedro, apenas pedi para moderar o verbo, e não chocar tanto aquelas pessoas aonde você vive.

- E onde eu vivo?

- Na Terra, é claro!

- E você não é da terra também?

- Não, nós somos daqui desta dimensão, de onde você partiu para viver na terra, com a missão de tentar desmistificar a figura do Santo.

- Então é por isso que eu luto contra eles?

- Não é só isso, foi pedido seu cumprir essa missão, você se sentia incomodado devido a enorme quantidade de pessoas que vivem lhe adorando no céu, enquanto você já passou por várias vidas na terra.

- Então é por isso que falo tantos contra eles:

- Mais ou menos isso, sua missão é tentar diminuir essa adoração passiva, para que o homem passe a valorizar-se como pessoa, buscando ao criador de verdade.

O homem que acompanhava a mulher complementou:

- Além disso, você deve tomar muito cuidado, existem forças contrárias que estão tramando contra você na terra.

- E vocês vão me ajudar a vencê-las?

- Nada podemos fazer além do permitido, tudo depende da evolução que se processo no planeta. – Alguns fatos podem ser evitados, no entanto certos atos devem seguir o curso normal, no palco cênico onde a vida se desenrola e o homem evolui aprendendo. Concluiu a mulher.

Antes que pudesse voltar a falar novamente, acordou sobressaltado, com a sensação de ter vivido um pesadelo, não se lembrava de nada, exceto o fato de ter visto pássaros sendo devorados por abutres.

Durante vários dias, continuou com a rotina de trabalho e palestras, e as discussões que sempre lhe tornava fatigado. Havia muitos pensamentos negativos em cima dele, isso o estava minando. Tiago andava sumido, poucas vezes o vira durante a semana.

Naquele dia acordou de mau humor, estava de certa forma angustiado, talvez pelo o fato de não haver conseguido o aumento de salário que havia pleiteado com o patrão. Isso lhe martelara a cabeça na hora de dormir e quando acordava sempre lhe vinha à lembrança, a negativa que recebera do patrão.

Preocupado seguiu atravessando a rua, por isso não viu um veículo em alta velocidade em sua direção como se tivesse vida própria. Depois do impacto, viu Marina ao seu lado sorrindo, enquanto lhe estendia a mão, dizia:

- Vamos "São Pedro", essa sua missão já acabou!

- Sorrindo ele disse:

- Por que tenho sempre que morrer de forma violenta ?

- Sente alguma dor?

- Nenhuma!

- Então vamos, você precisa de repouso.

- Ufa!! ainda bem, já não agüentava mais atacar “o santo”.

- Não fique tão alegre assim, ainda voltará a fazê-lo.

Rindo os dois se afastaram da trágica cena, onde os humanos só conseguem enxergar aquilo que eles mesmos criam.

O SANTO

Embora o diálogo transcorresse de forma civilizada, havia, no entanto, divergência no modo de enxergar o mundo. Ele, que estava perto de embarcar em mais uma viagem, era mais incisivo e falava de forma vigorosa:

-Não adianta insistir nesse assunto, melhor mesmo é seguirmos em outra direção para não nos machucarmos novamente.

- Não sei o porquê dessa revolta toda. Tudo isso é história e faz parte da cultura da humanidade.

- Isso eu sei, mas não é sobre esse aspecto cultural a que me refiro e sim a esse aprisionamento de almas que se faz, visando tão somente interesses econômicos.

- Você tem que entender, isso é muito humano, faz parte dessa loucura que alguns têm e que outros chamam de fé. Não se esqueça que já participou desse processo.

- Tudo bem, não posso impedir que pessoas tenham fé, nem tampouco posso querer que o mundo se desfaça por falta dela, ou por falta de respeito às crenças. - O que não posso concordar é ver-me exposto dessa maneira, sendo explorado, como se fosse um produto a ser consumido.

-É, concordo com você que é triste, mas por outro lado fica até cômico. - Veja sob o aspecto positivo, você está sendo adorado.

- Cômico, e quem disse que quero ser objeto de culto e ser adorado?

- Veja e observe pelo lado positivo, você está sendo adorado e reverenciado por diversas pessoas. - Deixe que elas acreditem em algo que possa lhes dar a felicidade, ou mantê-la mais solidárias.

- E daí, devo ficar calado vendo tudo isso?

- Sei meu amigo que é triste ver a enganação, mas, por outro lado você nada poder fazer, pois já se acha arraigado dentro do inconsciente coletivo da sociedade.

- E como vou me portar perante “eu”, quando chegar lá, devo ficar quieto e aplaudir essas sandices?

- De maneira alguma, faça o que achar melhor, porém é melhor não esquecer que poderá ser chamado de louco. Lá, todos aqueles que se opõem as idéias já estabelecidas e sedimentadas dentro da sociedade são taxados de loucos.

- Devo então calar-me, e concordar com essa exploração?

- Não, mas se tentar ir contra, terá pouco resultado prático, além disso, poderá ficar isolado com seu pensamento. - Afinal o que há de errado na fé do povo?

- Meu amigo, não estou contra a fé do povo, você bem sabe disso, eu mesmo, em outras épocas preguei essa necessidade. - Mas é que ao ver-me como objeto de culto, adorado como se estivesse no “céu”, fico preocupado, você sabe tanto quanto eu que o céu, é um mero conceito teológico.

- Eu sei meu irmão, mas nada poderá fazer por enquanto. - Como já disse, isso já está arraigado dentro da sociedade e não irá desaparecer tão cedo, só deverá desaparecer num futuro ainda distante, quando todos se conscientizarem e olharem a vida e a morte com outros olhos.

-É, acho que tem razão, parece que devo conformar-me em ser um Santo, mesmo sem eu, ser.

Fez uma pausa e depois com largo sorriso complementou:

- Se eles soubessem o que já fiz de errado depois daquela vida, não estariam cultuando-me dessa maneira. É pena que eles não aceitem a multiplicidade de vidas, como a justiça de Deus.

- Não se esqueça que esse processo ainda é necessário até que todos alcancem o grau ideal de consciência para entender o verdadeiro significado da vida.

-É, parece que vou ter que engolir mais uma vez essa estupidez humana. - E você, quando irá encontrar-me por lá?

- Bem depois, ainda não foi definido o tempo, mas não se preocupe que iremos no encontrar, e não se esqueça que talvez estejamos de lados opostos.

- Agora eu sei, mas vou tentar não esquecer quando estiver lá, mesmo sabendo que seremos outros atores em papéis diferentes.

- Exatamente amigo, é isso mesmo, mas é bom preparar-se, pois seu tempo já é chegado.

- Até breve amigo.

- Até lá, irmão.

-II-

O médico apressado passou pelos familiares da grávida e dirigiu-se à sala de parto onde a gestante começava a sentir as contrações do parto que se anunciava para os próximos minutos.

Ao entrar, ela agarra-lhe a mão e diz:

- Doutor, desta doendo demais, acho que não vou suportar tanta dor.

- Vai sim, daqui a pouco a dor diminui fique pensando no seu filho que está por nascer, e a satisfação que ele irá lhe proporcionar, pense nos seus familiares que estão lá fora torcendo por você.

- Doutor, não tem jeito de amenizar a dor, alguma injeção?

- Agora não, não é aconselhável para o feto, pode prejudicá-lo. - Você quer correr esse risco?

- Claro que não, acho que posso agüentar.

- Eu não acho, tenho certeza que conseguirá.

-Aiiiii, doutor, penso que não vou agüentar!

- Calma e resista, pois já está quase no fim.

Momentos depois quando os familiares se dirigiram ao médico que vinha ao encontro deles, a mãe da paciente foi a primeira a perguntar:

- Doutor, ouvimos o choro de uma criança, já nasceu, é menino, menina, tudo bem?

Atropelando as palavras a mãe da parturiente só se calou quando notou o rosto triste e sombrio do médico que parecia nada querer falar com a boca, mas apenas com a expressão que apresentava em suas faces.

Antes que a mãe lhe interrogasse de novo sobre o estado da filha e da criança, ele foi direto e disse:

- Sinto muito senhora, por sua filha, ela não resistiu, mas seu neto está muito bem.

- Sente muito, o que quer dizer com isso?

- Ela não resistiu ao parto, nós fizemos tudo que foi possível, para salvá-la, mas não quis o destino que isso ocorresse, sinto muito.

Aquelas palavras selaram o diálogo, ele se retirou e deixou que a enfermeira desse as outras explicações que seriam necessárias.

-III-

- Vovó posso sair para brincar com meu amigo Tiago? - Ele está lá fora esperando que a senhora autorize.

- Pedrinho pode ir brincar, mas, por favor, dessa vez não arrume confusão com seus amigos durante suas brincadeiras.

- Pode deixar, eu vou tentar me comportar.

- Tentar não, é melhor se comportar e respeitar o modo deles verem o mundo onde vivem. Não crie confusão e nem os ofenda.

- Está bem vovó pode deixar, vou me controlar.

Enquanto o tempo transcorria, as tendências do adolescente Pedro eram notadas por onde andava. De perfil atlético, não se curvava ao pensamento alheio e suas opiniões eram colocadas de forma contundente que às vezes parecia ser agressivas pelo modo dele falar.

Seu amigo Tiago, mais conciliador, tentava aparar as arestas que havia entre o pensamento de Pedro e os dos outros colegas que conviviam com ele, tanto no lazer como no estudo.

Ele se dizia não Cristão, mas admitia a existência de Deus, sem, contudo admitir ou procurar qualquer denominação religiosa aonde iam os parentes e até mesmo o seu grande amigo Tiago.

Embora ainda mais novo, o amigo às vezes tentava dar uma de conselheiro e falava com ele sobre o que acreditava.

Talvez por não haver conhecido a mãe, por ter morrido durante o parto, Pedro muitas vezes questionava até mesmo a razão de receber aquele nome.

Quando dizia a avó que deveria se chamar Roberto, esta dizia-lhe:

- Querido o seu nome foi o desejo de sua mãe, nós já conversamos sobre isso.

- Mas se ela havia morrido, por que a senhora não trocou meu nome?

- Esse era o desejo dela e, além disso, eu gosto do seu nome.

Quando ficava só após as discussões que tinha com a avó sobre diversos assuntos, falava para si mesmo que um dia ainda trocaria de nome. A única referencia que ele tinha era a avó, a mãe falecera no dia do parto, o homem que seria seu pai, havia desaparecido da vida dela quando soube da gravidez.

Ele chegou a odiar o pai, mas, porém logo esqueceu por não saber quem era e tampouco conhecer nada sobre ele. Da mãe tinha uma foto que olhava sempre, como se fosse um ato de adoração.

-IV-

- Mas o senhor quer dizer que não acredita em Deus?

- Eu não disse isso, o senhor interpretou errado, quando eu disse que essa história de Santo é coisa de gente ignorante.

- Não é a mesma coisa não?

- Claro que não amigo, crer em Deus, não depende de acreditar na existência de santos, já que esses foram criados pela igreja.

- E a igreja não é a casa de Deus?

- Bobagem, isso é um conceito errôneo que foi criado para manter o povo dentro dela. Houve época que foi necessário, mas acho que atualmente em pleno século vinte e um, isso é desnecessário.

- Por quê?

- Antes de responder eu lhe faço uma pergunta; Para que foram criados tantos santos?

- Acho que eles sejam intermediários entre os homens e Deus.

- Pois eu lhe digo que essa de intermediários entre Deus e os Homens e burrice, Deus está em tudo e no próprio homem, portanto, não precisa que ninguém lhe venha dizer que esse ou aquele e bom e merece ser salvo. - Olhe que digo ser salvo, apenas para situar nosso diálogo, pois entendo que não há necessidade de salvação de ninguém.

- Em resumo o senhor não acredita em Santo, e que não há salvação, é isso ?

- Exatamente essa história de Santo é engodo que foi criado pela igreja com intuito de manter muitos com devoção a estes e consequentemente arrecadarem mais. - E digo mais, se não existisse igreja, até acredito que estaria o homem bem mais evoluído e mais perto de Deus.

- Isso é blasfêmia. Disse uma mulher entre a multidão.

- Olhe minha cara senhora, você fala assim, porque alguém colocou em sua mente esses aspectos da religiosidade, por isso não consegue enxergar nada fora deles.

- Você é um herege, o anticristo, que está tentando acabar com nossa fé.

- Engano seu, ao contrário do que pensa, quero que aumente ainda mais sua fé, mas sem crer em santos ou demônios e sim em si mesmo como um aspecto de Deus.

- Você está dizendo que é Deus, seu demônio?!

- Senhora, embora esteja sendo grosseira, não me ofende com suas palavras, pois sei que é o resultado da igreja por isso não consegue entender o que falo. Esse demônio de que fala é mais uma invenção para intimidar almas crianças.

Enquanto Pedro ia discorrendo sobre o polêmico assunto, Tiago ouvia tudo de forma apreensivo e preocupado com o rumo das altercações que surgiam durante a palestra. Mas prometera ao amigo que nada diria na frente das pessoas que fazia parte da platéia.

Durante mais de hora, a discussão foi acirrada, enquanto Pedro através da palavra inflamada, tentava derrubar conceitos que existiam em ralação aos santos, alguns saiam esbravejando e rogando pragas, desejando que ele fosse castigado pelas blasfêmias que proferira naquele dia.

Quando o último membro da platéia saiu, Tiago aproximou-se e falou:

- Pedro você ficou louco de vez?

- O que eu fiz?

- Você acha que não fez nada mesmo? – Será que não consegue colocar um pouco de juízo nessa sua cabeça e parar de agredir a crença de todos nós?

- Exceto eu. Falou Pedro.

- Tudo bem, menos você, mas e os outros, por que não respeita o direito que eles têm de pensar do jeito que pensam?

- Olha Tiago, acho melhor você também não me recriminar por pensar assim, se insistir nesse assunto, melhor mesmo é seguirmos em outra direção para não nos machucarmos novamente.

- Sabe Pedro, até parece que já ouvi você falar isso alguma vez, mas se é isso que deseja, é melhor não falarmos mais sobre igrejas, religiões ou mesmo a fé de cada um.

- Melhor que assim seja. Encerrou o assunto, Pedro.

Quando saíram do recinto o zelador que se encontrava num canto da sala esperando a saída deles para fechar o recinto sussurrou baixo:

- Se esses amigos continuarem assim, acabarão por brigar e acabar com a amizade.

Depois de cinco insistentes toques Pedro resolveu atender ao telefone que se encontrava jogado sobre o sofá onde se sentara logo após sua chegada.

- Alô, quem fala?

- Olhe, seu demônio, se não deixar de falar o que anda falando por aí, vai ter que agüentar as conseqüências.

- Quem está falando?

- Isso pouco importa, o recado e conselho estão dados! Depois desligou.

- Alô, alô, alô, droga, cada imbecil que aparece nesse mundo e ainda tentando me intimidar.

Meio bravo olhou o número de onde haviam discado e depois de tentativas descobriu que era um telefone público.

Nos dias que se seguiram, houve diversos telefonemas quase com o mesmo teor de ameaças. Procurou a delegacia para dar queixa e apresentar suas reclamações contra aqueles que agiam de forma silenciosa, nos bastidores, sem mostrar a cara.

Após explicar detalhadamente o assunto ao delegado esse simplesmente disse:

- Sinto muito senhor Pedro, mas nada posso fazer, se você não sabe quem está lhe ameaçando, como acha que posso descobrir, já que fazem as ligações de aparelhos públicos diferentes! E complementou:- Quem planta vento, colhe tempestade!

- Como disse, delegado?

- Nada, acho melhor o senhor sair, pois tenho mais coisas a fazer.

Desiludido e sem saber o que fazer para se proteger ou descobrir que lhe ameaçava, saiu lentamente da delegacia, sem saber o que faria. Seguiu diretamente a uma igreja e quando se deu conta estava dentro desta.

Um padre que se encontrava no recinto, ao vê-lo, aproximou-se e o interpelou:

- Posso ajudá-lo em alguma coisa filho?

- Filho? - Eu não sou seu filho, desculpe, entrei aqui sem querer, até logo.

- Espere talvez eu possa lhe ajudar!

- Não pode e também não necessito de sua ajuda, com licença, preciso ir.

- Tudo bem, mas se precisar já sabe onde estou é só procurar.

Saiu apressadamente do lugar que chamava de arapuca e decidiu procurar o amigo Tiago, na casa deste.

Quando a empregada atendeu a porta, antes mesmo que ele procurasse pelo amigo, esta falou:

- Seu Pedro, cruz credo, ouvi dizer que o senhor não acredita em Deus!

- Que história é essa dona Filomena? – quem lhe falou isso, foi o Tiago?

- Não, seu Pedro, eu ouvi de uma mulher que estava na mercearia que disse ter ouvido do vizinho dela.

- Não tem importância, mas é sempre assim, ninguém tem coragem de assumir aquilo que fala. – Talvez eu seja considerado louco por falar o que penso! - o Tiago está ?

- Sim, senhor, entre.

- Diga amigo, qual o problema de hoje?

- Tiago, você sabia que recebi nos últimos dias, várias ameaças?

- De morte?

- Sei lá, só dizem que eu vou me arrepender.

- Lembra que lhe falei para ser mais comedido, para não bater de frente contra todos conceitos religiosos e morais existentes ?

- Você que dizer que devo calar-me?

- Não, eu não disse isso, apenas aconselhei-o a ir mais devagar para não chocar as pessoas. – Afinal Pedro por que toda essa revolta?

- Não é revolta, talvez seja o fato de não ter conhecido meu pai e haver perdido minha mãe quando nasci e ter recebido uma educação muito rígida e orquestrada por minha avó.

- É amigo, existem coisas que não conseguimos compreender e outras que fazemos sem saber a razão.

- E aí, Tiago o que aconselha que eu faça !?

- Adianta alguma coisa, eu aconselhar?

- Acho que não! - A propósito vamos assistir ao jogo de futebol amanhã?

- Está bem, passe por aqui que eu vou, já que minha namorada anda viajando, vou aproveitar para arrumar outra.

Naquele dia os amigos ficaram por horas, jogando conversa fora, falando de coisas sérias e até mesmo de futilidades, como sempre ocorria nos dias de sábado.

-V-

Quando iniciou a palestra Pedro tinha como propósito “pegar leve”, de forma que não chocasse muito os ouvintes. Depois de meia hora de explanação, começaram os interrogatórios em forma de cobrança.

Uma mulher ainda bem jovem que se encontrava no meio da segunda fila interpelou o orador:

- Senhor Pedro, você tem algum problema sério de desvio de conduta?

- Desvio de conduta, eu, pode se explicar melhor?

- Bem, toda vez que faz suas palestras, faz questão de ressaltar que não aceita os dogmas criados pela igreja.

- Senhora, se considerarmos a igreja a que se refere como única, eu digo que sim, mas se observar, a maioria dos evangélicos, não aceita santos, e nem por isso ouvi dizer que eles tenham desvio de conduta.

- O senhor por acaso é evangélico?

- Também não, na realidade não tenho religião alguma.

- É Ateu !

- Ateu, eu?

- Sim, o senhor mesmo.

- Está confundido tudo, devido aos conceitos errôneos que tem sobre fé e religião, por isso a senhora me chama de ateu. – Eu não sou ateu e mesmo que assim diga. - O que penso e acredito sobre Deus, é diferente do modo de enxergar da maioria das pessoas, mesmo que seja o mesmo Deus.

- Não entendi.

- Vou explicar melhor; alguns acreditam na existência de um Deus Antropomorfo, baseado naquilo que as igrejas vêm pregando durante milhares de anos. Eu acredito numa energia latente em tudo e em todos os lugares, a quem denomino de Deus. – A maioria dos cristãos, teme Deus, por que receberam essa herança dos antepassados.

- O senhor não teme a Deus?

- Não, e acho que não seja isso que ele deseja, acredito que Deus deseja que os homens se entendam e se amem, pois se assim fizerem também estarão amando-o, porquanto ele faz parte de todos. – Pense em Deus como o Sol e que cada raio desse sol, seja parte de cada um de nós, isso é Deus.

- Isso é absurdo. Falou um jovem que se trajava a rigor, como se estivesse indo a um casamento. Era daqueles que poderia ser taxado de pastor, devido sua maneira de se trajar.

- Blasfêmia. Gritou outro.

- Meus amigos, sempre que ouvimos alguma coisa e não aceitamos, é porque já temos conceitos e preconceitos estabelecidos, que se chocam com o que acabamos de ouvir. – O Cristo morreu na cruz, por ser um pensador que queria transformar conceitos e valores da sociedade da época.

- Não, ele morreu na cruz para nos salvar! Vociferou um senhor idoso que estava na última cadeira da platéia.

- Meu caro senhor, respeito o seu modo de ver esse aspecto de salvação, mas isso na realidade não é necessário. – O Cristo, morreu por ter falado o que era novo e não aceito na época. – Se hoje não houvesse liberdade de expressão, talvez eu também viesse a ser queimado vivo como foram outros, pelo fato de pensarem diferente dos conceitos que a igreja queria que o povo aceitasse.

- A igreja é a casa de Deus!

- Se é nisso em que acredita, não vou dissuadi-lo disso, mas sei que as igrejas falharam por não conseguirem acelerar a evolução espiritual do homem, pelas falsas promessas de salvação ou castigo.

Por mais de trinta minutos o ambiente esteve tenso entre o revolucionário da palavra e pessoas simples que se sujeitavam aos preceitos pré-estabelecidos, por medo ou por comodismo.

-VI-

Estava cansado pelo debate, ao assumir e defender posições revolucionárias, tentando mudar um pouco a cabeças de pessoas que se sujeitavam aos enganos das religiões que lhes prometia uma gama variada de bugiganga a pretexto de salvação, mediante módicos pagamentos.

Sentado do jeito como se encontrava, adormeceu sobre o sofá, onde tantas vezes brincara e conversara com sua avó quando criança e adolescente.

O lugar por onde andava era muito bonito, grandes parques e jardins floridos se estendiam até perder de vista. Pequenos animais e pássaros alimentavam-se dos frutos e sementes que ali eram abundantes.

Absorto na deslumbrante paisagem, não percebeu que duas pessoas estavam ao seu lado, esperando serem notadas para conversarem com ele.

Ao se virar, viu uma linda mulher sorrindo como se houvesse ganhado o maior dos presentes, enquanto o homem que a acompanhava se limitava a sorrir, mas com os lábios fechados.

- Quem é você? perguntou Pedro.

- O nome Marina diz alguma coisa para você?

- Não!

- Então pouco adianta eu falar meu nome, o que mais importa mesmo é sobre o que viemos lhe falar.

- Sobre o que desejam falar-me?

- Viemos pedir-lhe para moderar um pouco seu verbo, para não melindrar tantas pessoas.

- Você também está dizendo que eu estou errado?

- Eu não disse isso Pedro, só pedi para moderar o verbo, e não chocar tanto aquelas pessoas aonde você vive.

- E onde eu vivo?

- Na Terra, é claro!

- E você não é da terra também?

- Não, nós somos daqui desta dimensão, de onde você partiu para viver na terra, com a missão de tentar desmistificar a figura do Santo.

- Então é por isso que eu luto contra eles?

- Não é só isso, foi pedido seu cumprir essa missão, você se sentia incomodado devido a enorme quantidade de pessoas que vivem lhe adorando no céu, enquanto você já passou por várias vidas na terra.

- Então é por isso que falo tantos contra eles:

- Mais ou menos isso, sua missão é tentar diminuir essa adoração passiva, para que o homem passe a valorizar-se como pessoa, buscando ao criador de verdade.

O homem que acompanhava a mulher complementou:

- Além disso, você deve tomar muito cuidado, existem forças contrárias que estão tramando contra você na terra.

- E vocês vão me ajudar a vencê-las?

- Nada podemos fazer além do permitido, tudo depende da evolução que se processo no planeta. – Alguns fatos podem ser evitados, no entanto certos atos devem seguir o curso normal, no palco cênico onde a vida se desenrola e o homem evolui aprendendo. Concluiu a mulher.

Antes que pudesse voltar a falar novamente, acordou sobressaltado, com a sensação de ter vivido um pesadelo, não se lembrava de nada, exceto o fato de ter visto pássaros sendo devorados por abutres.

Durante vários dias, continuou com a rotina de trabalho e palestras, e as discussões que sempre lhe tornava fatigado. Havia muitos pensamentos negativos em cima dele, isso o estava minando. Tiago andava sumido, poucas vezes o vira durante a semana.

Naquele dia acordou de mau humor, estava de certa forma angustiado, talvez pelo o fato de não haver conseguido o aumento de salário que havia pleiteado com o patrão. Isso lhe martelara a cabeça na hora de dormir e quando acordava sempre lhe vinha à lembrança, a negativa que recebera do patrão.

Preocupado seguiu atravessando a rua, por isso não viu um veículo em alta velocidade em sua direção como se tivesse vida própria. Depois do impacto, viu Marina ao seu lado sorrindo, enquanto lhe estendia a mão, dizia:

- Vamos "São Pedro", essa sua missão já acabou!

- Sorrindo ele disse:

- Por que tenho sempre que morrer de forma violenta ?

- Sente alguma dor?

- Nenhuma!

- Então vamos, você precisa de repouso.

- Ufa!! Ainda bem, já não agüentava mais atacar “o santo”.

- Não fique tão alegre assim, ainda voltará a fazê-lo.

Rindo os dois se afastaram da trágica cena, onde os humanos só conseguem enxergar aquilo que eles mesmos criam.

23-07-08-VEM

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 25/07/2008
Reeditado em 20/01/2011
Código do texto: T1097457