O AVARENTO
Ávidos, os seus olhos percorriam os livros de contabilidade onde estavam cuidadosamente anotados em ordem cronológica os seus direitos e bens. Diariamente, como um sagrado ritual, verificava os seus ganhos e ficava maquinando por longas horas novas maneiras de aumentar a sua já considerável fortuna.
Lá fora havia um mundo vivo mudando a cada dia, pessoas passando nas ruas, aves cantando nos jardins, crianças brincando, flores se abrindo ao sol, nuvens colorindo as manhãs e os ocasos, vento amenizando o calor das tarde e tangendo os barcos, havia tanta coisa para ser apreciada mas em sua cabeça não havia lugar para mais nada que não fossem cifras.
Na rua onde morava, e mesmo no bairro comercial, tinha muitos admiradores que invejavam a sua fortuna, o seu modo de vida, e que gostariam também de estar em seu lugar. Dinheiro, dinheiro bastante, dinheiro chegando cada vez mais.
Não tinha filhos, tinha uma esposa que, além da vida, era a única coisa que ele possuía em uma única versão. Algumas pessoas comentavam em surdina que eles jamais tiveram filhos porque todo o seu tempo era destinado a aumentar a sua fortuna. Outros diziam que a razão era a esterilidade da esposa ou, ainda, que ela não lhe aquecia o leito desde que o casamento era recente. Naquele ano haviam completado trinta anos de casados.
Não, ainda não era velho. Muito magro, escondia-se constantemente atrás de óculos geralmente com aros dourados e grossas lentes, lentes de aumento, diziam, que era para ver o seu dinheiro maior. Andava próximo dos sessenta anos. Quanto à mulher, esta aparentava nos seus cinqüenta anos todo vigor possível para aquela idade.
Não se podia dizer que fosse bela, mas ainda possuía traços delicados, olhos vivos, um par de vivos olhos azuis que dançavam nas órbitas e lançavam em redor um brilho ofuscante para, talvez, tentar esconder a sua resignação. Sim, resignação pelo tempo perdido. Seu peito ainda guardava restos de um fogo que ao longo dos anos, desde o seu casamento, havia queimado como vulcão que não entrou em erupção. Seu sangue percorria os labirintos venosos e arteriais como lava que corre pelas encostas esfriando, a cada passo, na descida. Não tivera acentuadas curvas na adolescência, mas mesmo assim ainda conservava muito charme e discretos traços de uma graça em seu andar, graça essa que ia perdendo na sucessão de noites e dias pois os olhos do marido estavam voltados exclusivamente para o dinheiro.
Viajavam com muita freqüencia. Ele a negócios e ela para não ficar só, como se fosse possível alguém que trazia constantemente a solidão na alma fugir de si mesmo em viagens. Quantas cidades, paisagens, pessoas, não haviam desfilado ante aqueles dois pares de olhos sem que eles os vissem. Raul tinha uma visão matemática e só fixava e guardava em seu cérebro imagens que pudessem ser transformadas em números representativos da elevação do seu patrimônio. Ela, com os belos olhos que encobriam a densa névoa da solidão, só via imagens do passado pois o presente passava com tamanha velocidade que era impossível reter qualquer imagem.
A atividade do marido na desenfreada busca pelo aumento de sua fortuna, de enriquecer cada vez mais, estava na razão direta da passividade de sua esposa ante a vida que se resumia em contar o tempo e esperar, mas esperar o que? Nem mesmo ela sabia, mas ainda assim esperava.
Certo dia, pela manhã, Raul descobriu que faltava alguém na mesa do café. Sua esposa não estava ali. Não deu importância para o fato, pois só ocasionalmente notava a ausência de sua esposa. Estava levantando para ir ao escritório, como fazia religiosamente após o café, quando a empregada entrou na sala de jantar e disse:
- Patrão, Dona Sofia morreu dormindo ontem a noite.
Então, de forma maquinal, sua resposta foi:
- Depois eu vejo isso, absorto que estava a pensar nos seus números.
Desesperada, a empregada gritou com toda a força de seus pulmões Vieram os vizinhos, vieram os amigos, vieram os homens da funerária. As providências foram tomadas e o corpo de Sofia foi levado em carruagem para a solidão maior do isolamento de uma cova em um cemitério. Naquele corpo frio foi sepultada uma promessa de vida. Foi sepultado um vulcão de desejos cujas lavas incandescentes nunca afloraram. Naquele corpo sem vida Sofia se escondeu para sempre sob uma lápide onde se lia: “eternas saudades do seu amado esposo”. Sim ele fora amado sob a forma de renúncia e ela que forma de amor experimentou?. Ninguém viu Raul derramar uma lágrima.
O tempo passou. Raul continuava a sua desesperada busca de aumentar cada vez mais a sua fortuna para ter, ter, ter e ter cada vez mais. Uma noite, quando sozinho no seu escritório, Raul foi surpreendido por um ladrão que lhe pediu a bolsa e jóias. Tal como estava ficou, não se alterou diante do marginal armado e nervoso, ou pelo menos nenhuma alteração foi demonstrada. Entretanto, internamente, Raul desabava e entrava em desespero e dizia para si: - Querem o que tenho de melhor na vida. Porque me querem roubar, tenho tão pouco ainda? Não, não darei nada e reagiu.
Houve um tiro e, após isso, um profundo silêncio envolveu o escritório. Os empregados acordaram e correram procurando localizar a direção do estampido. Ao passarem na frente do escritório, pela porta entreaberta, viram o corpo magro do patrão estendido no tapete. Entraram todos chamando pelo seu nome mas não obtiveram resposta. Então descobriram que do peito do Raul, na altura do coração, de um ferimento recente jorrava uma torrente de “ouro líquido” que manchava o tapete, o escritório e a noite...
Belém, Junho de 1977