Fortaleza dos Mortos

FORTALEZA DOS MORTOS

por H. P. Almeida

-Ele está dizendo blasfêmias. Coisas profanas. - disse a matriarca, levando o cachimbo à boca fétida. Ela apertou os olhos leitosos, mirando o homem febril à sua frente encolhido no canto da parede. Ele tremia olhando para todos os cantos do quarto mal iluminado com paredes infestadas de fungos e rachaduras. Seu rosto suava profusamente, e vez por outra ele forçava-se a apertar seus olhos e tapar seus ouvidos, chorando, como se o próprio demônio lambesse sua alma e lhe dissesse obcenidades.

-O que faremos então, vovó? - disse o rapaz ao seu lado, olhando abismado aquela cena. Bruno não era exatamente o que poder-se-ia dizer um cigano de fé, mas acreditava nas histórias de seu povo e as respeitava. E, nas lendas ciganas, narravam-se histórias de demônios e anjos, vida e morte. Aquele era um desses casos. O primeiro que veria em sua vida. Bruno estava assustado com aquela mostra real do desconhecido.

A velha tentou tocar o rapaz numa tentativa inútil de ajudá-lo. Este recusou seu toque com um grito aterrador e selvagem, como se aquele gesto trouxesse todo um turbilhão de dor. O medo e o terror havia tomado completamente sua mente. -Não podemos ajudá-lo. - a matriarca concluiu, finalmente, meneando sua cabeça - ele está além de nossa ajuda.

-Mas... o que ele tem? - disse o rapaz, olhando a matriarca.

-Demônios. Ele vê demônios.

-Mas... ele sempre não viu? - disse o jovem cigano. Pedro era o guia espiritual daqueles Kalon há anos. Ele acolhia os doentes e os tratava, ajudava nas decisões da família e sempre os levara para bons caminhos, como se precicesse o próprio futuro. Vez por outra, entretanto, ele sumia. Sumia por muitos dias ou semanas. Talvez até meses. Dessa vez, entretanto, ele sumira por dois anos. O homem fora encontrado rastejando próximo às vans do acampamento da família na periferia de Itapipoca, com as roupas em farrapos e o corpo repleto de cortes e perfurações superficiais. Fora trazido até ali por alguns de seus familiares, mas não antes de muito lutar, gritando sobre demônios umbrais.

-Não desse jeito, meu filho. Não desse jeito... - disse a velha, num tom profundo. - Pedro foi o melhor médium que já conheci. Ele tinha realmente o dom de falar com espíritos. Muitas vezes sua amizade com eles fez com que tivéssemos marés de sorte como nunca tínhamos tido antes. Ganhamos muito com ele ajudando nossos primos à caçar o mal do mundo, convencendo bons espíritos à lhes sussurrar no ouvido seus perigos e lhes dar boa sorte. Mas então, Pedro começou à conversar com espíritos maus. Espíritos fortes. Muitos deles tentaram arrastar Pedro para o mundo deles, mas nenhum conseguiu. Não. Esse jovem tolo foi para lá por conta própria. Ele atravessou o Mundo dos Vivos para ir até o Mundo dos Mortos e conhecê-los pessoalmente.

-E... - o rapaz olhou para Pedro e depois para a velha - ...o que ele pode ter visto lá?

-Só a deusa pode saber. Horrores inomináveis, talvez. Espíritos malignos. Demônios.

-Não, velha. Ele só viu a verdade. - uma voz sussurrou por detrás de ambos. Estes viraram para olhar a voz, num susto. O rosto da velha empalideceu-se. Era um homem de rosto claro, cavanhaque negro meticulosamente aparado e um longo rabo de cavalo repleto de pequenas tranças. Vestia-se numa camisa de malha preta, calça social também escura e luvas negras; tinha também diversas faixas de couro presas em seu peito, coxas e braços, dando-lhe uma aparência sadomasoquista. -Os olhos dele miraram o que nenhum ser vivo poderia mirar. Ele viu as profundezas do Umbral, os espíritos mais inumanos e primitivos que existiriam lá. Tais almas não possuem forma ou mente humana, mas seus sentimentos malignos ultrapassam quaisquer barreiras de sanidade, despedaçando-as como um espelho quebrado. E tal qual foi quebrada a mente dele.

-Como você sabe disso, estranho? - disse Bruno.

O estranho sorriu. - Porque eu já estive lá.

Bruno recuou à aquela alegação.

-Eu escutei o chamado desta criança. O sangue da Família Dratvoz corre em suas veias. Vozes de espíritos do caos chegaram aos nossos ouvidos, como o choro de crianças queimadas vivas, vozes trasmitindo as súplicas deste cigano. Súplicas de morte.

-Você... você não pode matá-lo. - disse a velha, finalmente recobrando a fala.

-Não posso? - seus olhos enigmáticos fitando os olhos leitosos da velha - Você era mais rebelde quando era criança, florzinha do campo. - o estranho sorriu. A velha emudeceu-se. - Mas não vou matá-lo. Vou curá-lo. Dar-lhe a única cura possível para o tormento de sua alma. Pedro viu o inexplicável e foi punido por isso. Sua mente não suportou o peso da verdade. Mas a verdade foi apenas o primeiro passo de sua transformação. Agora, eu irei ajudá-lo a completá-la. - nisso o estranho estendeu a mão para o cigano, que estava encolhido no chão, remoendo-se em seus pesadelos despertos.

- Venha comigo, meu irmão. Silencie os uivos de Spiritum em sua mente e caminhe comigo para sua salvação. - a voz profunda do estranho pareceram ressoar na mente de Pedro, que por um segundo ele conseguiu esquecer a loucura e olhá-lo nos olhos. Ele estendeu-lhe a mão, e ergueu-se como uma criança que esperava o alento de seu pai. O estranho então conduziu-o para fora do quarto, sob a luz amarelada da lâmpada incandescente.

*

Há pelo menos dois meses Pedro estava lidando com maus-olhados. Haviam muitos nomes para os espíritos com que ele estava lidando, mas seu talento ignorava todos eles. Pedro não precisava saber aquilo, ele era um médium nato. Em suas veias corria o sangue da Família Dratvoz, uma antiga linhagem de guardiães dos Homens-Lobo. Eles tinham o poder intrínseco de lidar com os espíritos, vendo-os e conversando com eles instintivamente. Pedro aprendera a lidar com os espíritos muito cedo, e fora-lhe ensinado a respeitá-los e compreendê-los. Ele era órfão de mãe, e seu pai trilhara o Caminho do Lobo, uma trilha sangrenta de guerra que levou sua vida muito antes de seu filho completar pelo menos dez anos. Foi nessa mesma época seu corpo clamou com a sede pelo sangue humano, e Pedro teve de aprender a lidar com isso também. Pedro alimentava-se com as doações que a família lhe fazia com freqüência. Apesar de ele não ser um Kalon, ele era um cigano, e um irmão valoroso. Ele retribuiu o amor que lhe fora oferecido com seus dons, convencendo espíritos à olharem por eles e dizer-lhe segredos que podiam ajudá-los. A sabedoria chegou muito cedo para Pedro. Cedo demais, diziam alguns.

Quando alcançou a idade certa, a matriarca levou-o para a serra de Guaramiranga e lá, em meio à floresta, um lobo-guará veio recebê-lo. O pequeno animal de olhos inteligentes viram o jovem humano à sua frente e o brilho de sua esperteza mudaram, bem como sua forma, transformando-se numa fera de forma primitiva, meio homem e meio lobo. A majestosa criatura ofereceu-lhe sua mão-pata num gesto significativo. Pedro, no entanto, olhou-o diretamente nos olhos, sem responder-lhe aquele ato. O homem-lobo entendeu aquilo e declinou sua cabeça, compreendendo a decisão do jovem cigano. Então, ele deu-lhe as costas e transformou-se de novo num lobo-guará, sumindo mata adentro em seu mundo. Pedro, agora e para sempre, seguiria o Caminho da Alma.

Alguns anos se passaram depois daquilo. Pedro havia se tornado um experiente médium, guia espiritual e até mesmo vidente, diziam alguns. Os Kalon passaram anos vivendo de bonanças, graças aos dons de Pedro. Um primo apresentara-lhe um político de Fortaleza, no Ceará, que ficou maravilhado com a capacidade do jovem cigano de tirar maus-olhados, dar previsões e boa sorte. Por causa disso, ele financiara sua família adotiva por muitos anos enquanto ele pudesse continuar com seus serviços. Já chegaram à dizer que, só por causa de Pedro, esse político conseguira se eleger tantas vezes para prefeito em Fortaleza. Pedro só respondia aquilo com um sorriso enigmáticoe uma desconversa do assunto. Ele não podia explicar-lhes sobre seu mundo. Afinal, ninguém poderia entender-lhe se não pudesse ver o mundo por seus olhos.

E foi no final do último mandato desse prefeito que as coisas começaram à acontecer. Ele viajara até o acampamento da família de Pedro novamente para novos serviços. As eleições estavam ferrenhas e ele precisava dos serviços do cigano mais do que nunca. Mas daquela vez, não era para boa sorte. Ele queria tomar a ofensiva. 'Morte' pensou Pedro 'Ele quer que eu lhe dê morte'. Pedro recusara terminantemente os pedidos do político, que chegaram à tornar-se verdadeiras ameaças à sua família adotiva. O político foi embora do acampamento com uma jura de morte preso entre os dentes para Pedro e os Kalon. E Pedro sabia que aquilo não terminaria ali. Três dias depois Pedro ainda ponderara as últimas palavras do político. Ele não pretendia defender-se usando seus dons, mas seus recursos não podiam com os daquele homem. Ele tomava o Caminho da Alma e não o do Lobo. Ele queria desvendar os mistérios dos espíritos e dos mortos, ajudar os vivos, e não criar mais almas atormentadas!

Foi com a primeira morte, numa noite sob uma intensa chuva, que Pedro chorou, cedendo à pressão do político. Ele não queria mais mortes. Simplesmente se arrastou até um quarto de motel e pagou por uma hora. A lembrança da bala no olho de sua parente ainda era vívida. Mas o que Pedro realmente odiava naquilo tudo era a excitação que ele estava sentindo ao pensar no ferimento. O buraco da bala parecia pedir-lhe para chupar o sangue que estava ali, junto do olho vazado. Aquilo estava consumindo-o mais e mais. As batidas de seu próprio coração pareciam tambores retumbando cada vez mais alto, levando-o à uma maré irracional que poderia acabar em algo muito pior. Por isso Pedro deixou o acampamento. Ceder a pressão do político foi a melhor explicação que achou para convencer à si mesmo que não estava excitado com um buraco de bala na cara de sua prima de dezesseis anos. O mero pensamento da verdade enojou-o o suficiente para que regurgitasse Sanguinus no chão do motel. Pedro vomitara pelo menos meio litro de Sanguinus ali. E mesmo antes de recobrar-se completamente, ao olhar todo aquele sangue no chão, ele tocou o sangue e começou à desenhar freneticamente no chão com ele. Se aquele maldito carniceiro queria que ele invocasse os mortos para seus serviços sujos, ele o faria. Ele invocaria a própria Sombra da Morte se preciso para salvar sua família.

Dois meses depois, Pedro estava olhando o horizonte sobre uma pedra nas imediações de Camocim quando seu tio veio dizer-lhe que o político ganhara a eleição. Estava feito. Uma lágrima escorrera no rosto do jovem cigano, pois aquele era o marco do início de um caminho muito mais negro.

*

Ele sentia o poder. Uma sensação de completo controle sobre o Mundo Invisível que se desvencilhava diante de si. Antes, quando simplesmente atuava junto de tal mundo ele só podia observar e tentar ajudar nas mudanças que este trazia para o mundo material. Agora, no entretanto, era tudo diferente. Agora ele controlava os mortos.

Já faziam três anos desde que Pedro começara à utilizar de seu dom sobre os mortos, e não mais com os mortos. Ele ainda estava dando seus primeiros passos diretamente dentro desse mundo desconhecido, mas à cada passo ele desesperadamente almejava o próximo. A sensação de imersão na escuridão da morte estava seduzindo-o como uma amante decadente. Ele suspirava chamados para os espíritos que o atendiam, e tão logo os prendia e escravizada por curtos períodos. Pedro tentava não usar sempre os mesmos espíritos, buscando não criar inimizades duradouras. Há algum tempo ele usou um espírito obcecado, ou Obcessor, como chamam, para atormentar a mente de um homem até a loucura completa. O mesmo espírito voltou-lhe durante diversas noites para sussurar-lhe como havia matado a própria esposa e as filhas com um moedor de pimenta. Desde então, Pedro têm sido mais comedido.

Nos últimos meses, entretanto, ele cometera um erro. Evocara pela primeira vez em sua vida um espírito maior. Chamara-o de muito longe. Esperava ser uma boa estratégia, assim não teria negócios ou problemas com espírito poderoso das redondezas. No entanto, não foi isso que aconteceu: o espírito furioso arrancou os mais profundos desejos de Pedro e converteu-os em puro prazer, assediando-o até este concordar no preço que cobrava. Pedro deveria ingerir, inalar, injetar e fumar 6 tipos diferentes de drogas, 6 vezes por semana, durante 6 meses. Rapidamente o jovem médium percebera que não fizera um bom negócio, e passara à buscar mais e mais espíritos para informar-se sobre aquele com quem fizera um acordo.

Infelizmente, era um dos Lordes da Rainha Branca, um poderoso espírito Padroeiro dos Viciados, cujo qual reinava supremo em muitas partes de Spiritum, visto seu poder e domínio sobre muitas almas vivas e mortas. Pedro descobrira que esse era o modo de agir dos servos da Rainha Branca: as drogas levavam lentamente a alma do viciado para o Mundo dos Mortos até que este estivesse completamente entregue à morte, finalmente cortando seu último vínculo com o mundo material, o que costumam chamar de "overdose". O Lorde enganara-o. Ele não queria um ritual de poder para sua Rainha. Ele queria sua alma.

*

O jovem cigano observava o acampamento ao longe sobre uma duna. Suas botas, cheias de areia, descansavam ao seu lado enquanto ele meditava com os braços sobre os joelhos. Fazia uma semana que eles estavam na Praia do Preá, há poucos quilômetros de Jericoacoara. Aqueles Kalon buscavam conseguir algum dinheiro vendendo artesanato para os Rom, o que geralmente conseguiam com um bom lucro. Alguns fracos espíritos estavam rondando aqueles turistas, mas Pedro não estava com tempo para isso. Ele tinha outros assuntos para tratar agora. Já havia alugado um quarto barato para passar um dia. Seria o suficiente. Deu as costas para sua família adotiva, pegou sua mochila e caminhou até lá. Ao chegar no pequeno casebre feito de barro e tábuas sujas, Pedro dirijiu-se para um casebre semelhante próximo e pegou a chave com um velho pescador. Adentrou o pequeno aposento e tirou seus pertences da mochila. Estava anoitecendo, com o céu praieiro já desbotando de seus límpidos tons alaranjados para o negrume da noite. Pedro tirou a lamparina que trouxera de sua mochila e a acende, dando um ar sombrio ào aposento. Pegou uma velha caixa de madeira no canto da parede e usou como mesa. 'Já é hora' pensou Pedro. Colocou sobre a mesa duas pílulas, dois pequenos embrulhos, uma seringa e uma colher. Pedro realmente não necessitava de rituais para imergir em Spiritum, mas o consumo de drogas facilitaria a imersão, bem como o vínculo com aquele quem deseja encontrar. Além disso, estaria pagando sua parte do pacto por aquela semana. Pedro já houvera fumado maconha naquele mesmo dia, e sua mente já estava turvada. Mesmo assim, engoliu uma pílula de mescalina e outra de anfetamina. Abriu um dos embrulhos e jogou a cocaína sobre a mesa. Organizou-a em duas fileiras e rapidamente inalou tudo. Pedro já sentia sua mente sendo tomada por entorpecimento e euforia extrema, mas não podia parar por ali. No segundo embrulho, ele retirara uma pedra de heroína. Com as mãos tremendo, ele colocou a pedra na colher e a esmagou, deixando aquilo se liqüefazer no calor do fogo da lamparina. Ele queria consumir tudo antes de sentir os efeitos das drogas... deveria ficar no limiar da própria morte. Ele, que vivera controlando a morte, ironicamente agora estava entregando-se à ela daquele jeito. Pedro rira para si mesmo, querendo acreditar que a triste ironia que via ali era resultado do consumo excessivo das drogas. Retirou a colher do fogo e molhou a agulha da seringa nela, sugando todo seu conteúdo. A inexperiência de Pedro fizera-o errar a própria veia diversas vezes antes de acertar realmente. E, enquanto empurrava o embulo da seringa, Pedro evocou seus poderes sobre seu próprio espírito e o mundo invisível para projetar-se neste. Enquanto a heroína e todas as outras drogas corria por suas veias, Pedro entregava-se para um mundo de inconsistência e inconsciência, correndo com sua mente por planícies, nuvens, rostos conhecidos e desconhecidos, vozes vivas e mortas, o real e o irreal. Quando deu por si, estava em pé olhando um céu sem estrelas, coberto de nuvens cinzentas, que não tinham o negrume da noite de jericoacoara, mas sim um tom esverdeado, escondendo raios e trovões distantes. À sua frente, os destroços longínquos de uma cidade destruída e mais à frente, o que parecia um velho posto rodoviário em pedaços, repleto de manchas de sangue. Uma neblina fraca pairava por todo o chão. E, enquanto olhava aquele ambiente de céu alienígena, Pedro escutou uma voz profunda e gutural detrás de si.

-Você é um tolo ou um louco, estrangeiro... À não ser, é claro, que procure o esquecimento...

O estranho trajava-se em um pesado manto esfarrapado e sujo, deixando-se mostrar apenas seu nariz, boca e queixo, o que mostrava-se ser de um tom muito pálido e quase esverdeado, refletindo a luz daquela noite. Sua pele também era bastante limpa e jovem, em comparação àos seus trajes. O resto, entretanto, era totalmente recoberto por pesadas sombras.

-Quem é você? - retorquiu Pedro, recoberto de uma estranha calmaria.

Aparentemente, sua imersão tão intensa no Mundo dos Mortos banhou sua mente de uma profunda depressão e desapego à vida.

-Eu sou Agah... - disse o estranho - Seu guia no Mundo dos Mortos desta cidade.

-Mas... ninguém sabia que eu estava vindo.

-Você me chamou. - disse o espírito, olhando para o horizonte em aparente meditação. - Senti seu chamado irresistível, e vim ao seu encontro.

Pedro imaginava se não o teria convocado inconscientemente. -Então, mostre-me o caminho, guia.

-Com prazer... mestre. - o espírito emitiu um sorriso largo como o de um tubarão às vésperas de pegar sua presa.

Pedro e seu guia caminharam por aquela rota, passando pelo posto rodoviário. Enquanto caminhavam, passavam ao lado de um açude de águas escuras. Pedro aproximou-se para encher seu cantil e, pouco antes de tocar na água, viu um rosto esbranquiçado olhando-o entre as águas. O grito do jovem cigano fez aparecer diversos outros rostos muito semelhantes ao primeiro, e todos pareciam dizer audivelmente em sussurros...

-Assassino...

-Eu aconselho à não se aproximar dessas águas, viajante. No mundo dos mortais, ele é bastante conhecido como local de desova de corpos. Aqui, entre os mortos, estes pobres espíritos não conseguiram escapar de seu fatídicos destinos, aprisionados nestas águas até que seus assassinos um dia se banhasse nelas para que pudessem prendê-los no lugar deles e, enfim, escaparem. Infelizmente, essas almas vêem qualquer um com o rosto de seus assassinos e quem tocar nessas águas é tragado para dentro delas e um desses espíritos escapa. Além do mais - o espírito ri num tom sarcástico - Você não precisará de água. Nem comida. - O guia estava certo. Desde que chegara ali, Pedro não sentira nenhuma necessidade física. A Fome, a maldição de qualquer um de sua raça de daiphires, a necessidade que faria até mesmo ele matar sem piedade, não estava lá. Nem a Fome, nem os efeitos das drogas que consumira. Sua mente estava um pouco turva, mas nada que se assemelhasse à uma proximidade de overdose. Enquanto seu corpo sofria, sua alma estava vagando em outros lugares. Pedro se distanciou daquelas águas, ainda olhando para os rostos brancos e ambos voltam a caminhar. Diversas horas de caminhada no meio da velha estrada urbana, Pedro vira diversas casas e prédios despedaçados. Aquilo era, o que chamavam, de o Umbral, um reflexo distorcido e decadente da realidade. Enquanto caminhavam, Pedro pensara ter visto uma ou outra pessoa nas esquinas.

-São espíritos. - disse o guia - como você, e eu. Pedro não tinha certeza se Agah era realmente uma alma comum. Seus modos, nem de longe, se assemelhavam à uma das almas torturadas de Spiritum ou um nativo desapegado àos valores terrenos.

-Quem você foi, Agah? Esse é seu nome verdadeiro? - indagou Pedro, tentando conseguir algo.

O espírito sorriu cinicamente. -Não. Meu nome mortal já se perdeu há tempos. Eu fui um humano, jovem e jogador. Minha curiosidade para com os valores do mundo me levaram a me unir à uma seita satânica. Eles me usaram como sacrifício ào demônio e arrancaram meus órgãos. - Nesse momento, Pedro percebe a mão do espírito segurar o manto mais junto ao corpo, como se ocultasse algo sob seu manto. - Isso faz muito tempo. Eu já matei todos eles. - diz o espírito, sorrindo sob o pesado manto. Pedro não tinha mais dúvidas sobre aquelas palavras. Agah era um espírito Obcessor.

A caminhada levou-os até uma área repleta de prédios baixos. Alguns postes pareciam ainda funcionar, com suas luzes opacas iluminando aquela área depredada. O mais impressionante, no entanto, era uma grande quantidade de espíritos caminhando de um lado para outro das calçadas. Pedro olhou para o guia.

-Eles...?

-Aqui é o bairro Bezerra de Menezes. - disse - Esta é a avenida Bezerra de Menezes. Os espíritos que está vendo são as pessoas que morreram por aqui ao longo dos anos. Não são muitas, apesar do que parece. Nenhum deles sequer percebeu que já está morto; suas mentes simplesmente distorcem ou preferem ignorar o mundo que os cerca, vendo apenas o que lhes convém. Muitos deles ainda estão assim há décadas...

-Isso é... horrível. - Pedro olhava para eles.

O espírito sorriu malignamente, enquanto voltava à caminhar.

-Espere só até ver o Dragão do Mar, mestre...

*

A caminhada continuou novamente por mais algumas horas. -São poucos os espíritos que vagam pelas cidades sem nenhum assunto pendente. - Agah explicava. -Geralmente a maioria possui alguém para atormentar, acompanhar, cuidar, amar ou odiar. Alguns até permanecem aqui simplesmente por serem lembrados em ícones, como o velho coronel Antônio Salles. Ele foi presidente do Ceará na década de 20. Hoje você pode vê-lo, sempre transitando pela avenida Antônio Salles...

*

-Aqui é o centro da cidade. - explicou Agah, enquanto Pedro olhava, atônito, os arranha-céus negros que cortavam as nuvens lodosas até o desconhecido, cercados por centenas de espíritos demoníacos e criaturas quirópteras. -Eu já vi esse prédio, quando era vivo. Ele não possui essa altura, de fato, mas aqui as coisas são diferentes. Eles podem modelar as estruturas ao seu bel prazer, caso tenham poder para isso.

-"Eles"? - indagou Pedro.

-Eles. Os negociadores de almas. Os escravistas. Muitos espíritos passam tanto tempo aqui que superam suas dores, mestre. E, da única forma que esse mundo permite, prosperam à seu próprio modo. Eles escravizam espíritos mais fracos, prendem e até mesmo moldam suas essências como se fosse uma substância. Imagine viver toda a eternidade como uma espada ou anel, sem nenhuma vontade sobre si mesmo, apenas obedecendo cegamente, e terá uma idéia do que estou falando. Eles vivem enviando grupos de caça para as ruas para aprisionar espíritos despreparados ou fracos demais para resistirem. Os que têm a sorte de naum serem moldados são escravizados para servirem aos Senhores das Trevas, enviados para algum lugar longínquo para servirem como soldados em alguma guerra esquecida do mundo dos vivos - como as Guerras Mundiais - ou mesmo aos próprios escravistas.

-Você... já viu algum deles? - Pedro olhava dentro do manto do espírito. Este olhou-o de volta, de dentro da escuridão. Mas nenhuma resposta foi dada, e este simplesmente continuou a caminhada.

*

Enquanto Pedro observava o horizonte do céu coberto de nuvens carregadas escondendo um tom lodoso e espectral, uma brisa quente atingiu seu rosto trazendo um cheiro bastante familiar. O espírito sorriu por sob o manto. -Chegamos ao Dragão do Mar... - E, enquanto Pedro caminhava subindo uma rua para ver de onde vinha aquele cheiro, a visão deixou-o paralisado: o mar era, até onde a vista alcançava, feito de sangue. Aquele cheiro, um tom ocre e ferroso, salino, advinha do próprio mar!

-Bastante cuidado aqui, Mestre Pedro... os espíritos que norteiam esta área são bastante perigosos... - sibilou Agah, enquanto deliciava-se com o terror no rosto do cigano. O Dragão do Mar consistia numa área repleta de prédios baixos e reformados, mas ali, no Mundo dos Mortos, a reforma não se mostrava, deixando tudo com um aspecto decadente e colonial. Muitos espíritos andavam de um lado para outro ali.

-A maioria são Espectros. - Agah murmurou. -Eles vivem aqui, alimentando-se de sentimentos e vícios.

Ambos desceram a rua, ignorando e evitando os Espectros, até chegar na orla da praia, uma área repleta de restaurantes semi-destruídos. Pedro aproximou-se do mar de sangue, e pôde ver melhor uns pequenos pontos que não conseguira distingüir a princípio. Eram pedaços de corpos humanos. A maioria, de mulheres muito jovens. Aquilo deveria excitar seu lado vampírico, mas Pedro agradeceu à Santa Sara Kali, a deusa de seu povo, por não ter de lidar com esses sentimentos naquele momento. Ao retornar de encontro à Agah, o espírito observava uma cena singular: um grupo de criaturas humanóides, esqueléticas, de pele seca, pálida e acinzentada, com mãos repletas de garras sujas, afiadas e boca repleta de dentes amarelados. A cabeça de todos eles pareciam semi-destruídas, com a parte anterior do crânio e toda a parte superior do rosto destruídas, deixando à mostra seus órgãos eternamente em decomposição. O grupo parecia estar seguindo um jovem espírito de uma garota negra de olhar perdido. Ela parecia realmente ignorar a presença do grupo de demônios selvagens ao seu redor.

-Demônios. - Agah sussurrou. -Arautos de Mammon. Pedro, já prevendo a terrível cena que se seguiria, avançou no rumo dos demônios, mas foi impedido pela mão de Agah. -Não. - O espírito olhou-o das profundezas de seu manto. - Observe.

O grupo de demônios, em silvos e ganidos que, Pedro jurava poder ter sentido uma gargalhada ali, passou à cercar o jovem espírito. Eis que um deles salta sobre ela e à joga no chão, arrancando selvagemente os restos de trapos que ainda cobriam seu corpo, enquanto os outros saltam e dançam como em um ritual macabro ao redor da jovem defunta. Pedro olha horrorizado enquanto a criatura abre caminho por entre as pernas da jovem com seus quadris até chegar onde desejava. O monstro sorri sadicamente, enquanto uma saliva amarelada escorre de suas mandíbulas caindo sobre o rosto desesperado e choroso da garota. A criatura estupra-a, e ainda repete seu ato inúmeras vezes, segurando o frágil espírito da jovem, fincando suas garras em seu corpo. Quando abandona o corpo e a jovem relaxa suas pernas, numa mistura de exaustão e derrota, quando pensa ter o pesadelo acabado, outro demônio monta sobre ela e reinicia o ciclo de dor e sofrimento. Pedro assiste tudo sem entender porque seu guia não lhe permite interferir. Será que ele é mesmo um Espectro, afinal, alimentando-se da dor alheia? Ele apenas observava a cena, impassível. No fim, quando todos os demônios já haviam estuprado a jovem garota, um deles monta sobre ela de novo e começa a ter espasmos até vomitar sobre o corpo da jovem um bolo de notas e moedas emboloadas num novelo de notas, catarro e saliva. Ainda sem entender aquilo, Pedro observa os demônios irem embora e, enquanto o jovem espírito se recobrava, tentando levantar, formas saem das sombras. Outras. Outras iguais àquela. Meninas, garotas e até mesmo espíritos de crianças saem das sombras para avançarem sobre o novelo, arrancando o que podem daquilo, lutando uns contra os outros por algo, simplesmente para depois retornarem para as sombras.

-Prostitutas. - Agah finalmente disse. -Este lugar, no Mundo dos Vivos, é uma área de prostituição, geralmente com muitas garotas jovens se vendendo para turistas. Aqueles eram demônios servos de Mammon, uma espécie de Deus do Dinheiro. Eles geralmente aparecem em qualquer área onde o dinheiro esteja sendo usado de forma muito corrompida. Aqui nós temos muitos deles andando em bandos. Se você tivesse ajudado aquela garota, provavelmente seria atacado tanto pelos demônios quanto por ela. Esses espíritos vagam por aqui em busca somente de continuar o que faziam, revivendo esse aspecto de suas vidas decadentes.

Ambos continuaram a caminhar, passando pelo pequeno refúgio onde a garota houvera se escondido. E, lá, o cigano vira o olhar amarelado e morto do jovem espírito. Ela simplesmente não sabia se estava viva ou morta, mas tinha certeza de onde estava: no Inferno. O jovem cigano meneou a cabeça enquanto passava por ali. Ele poderia tê-la ajudado, com seus poderes sobre os espíritos, mas este não seria o meio certo de agir, com dominação e controle. Ele já estava lutando demais consigo mesmo para dominar tais impulsos de manipular os mortos à seu bel prazer.

*

Pouco foi dito entre Pedro e o guia por um longo tempo. Aquele cenário era o reflexo do mundo dos vivos de Fortaleza, um cenário doentio que fora alimentado de almas durante longos anos. Agora, aquilo havia se tornado um reflexo daquela sociedade do ponto de vista afetado das almas torturadas que viviam ali. Pedro sabia que ambientes como aqueles, de cidades movimentadas, traziam uma carga negativa imensa, e tamanha carga moldava as energias de Spiritum de forma que refletiam o mundo dos vivos na forma distorcida que a área urbana merecia. E aquela era a forma de Fortaleza em Spiritum. Enquanto meditava sobre aquilo, ele não percebera a crescente quantidade de gemidos que começara à ouvir. Ele passara por um tipo de floresta morta com um rio praticamente feito de lixo e excrementos humanos, cuja qual Agah disse chamar-se Parque do Cocó, e agora adentravam numa grande avenida. A crescente quantidade de gemidos logo se revelou: uma grande multidão de espíritos de pessoas feridas, mutiladas, sangrando, trompegando e se arrastando caminhavam por aquela avenida depredada. Muitos estavam com ferimentos na cabeça, outros com sangramentos nas pernas, sem braço ou completamente irreconhecíveis, mas ainda assim se locomovendo. Haviam automóveis em chamas destruídos na avenida, muitos deles com indivíduos dentro, queimando silenciosamente enquanto observavam Pedro passar por eles.

-Quem...? - dizia ele, assombrado.

-Aqui é a avenida Washington Soares. Muitos aqui à chamam de Rota dos Mortos. Durante longos anos, devido à falta de infraestrutura dessa avenida, muitas pessoas morreram aqui. Muitas. Após incontáveis mortes, os vivos decidiram reestruturá-la, de modo a diminuir as mortes, mas já era tarde demais: tantos haviam morrido aqui que atraíram forças além do controle deles. Agora, a própria avenida se alimentava de sangue.

Pedro olhou-o em dúvida. - Como...?

-São as almas. As diversas almas que morriam aqui em acidentes canalizam suas forças espirituais para causar mais acidentes ainda entre os vivos. - o guia apontou para vultos negros que percorriam a avenida, planando a pista depredada como grandes sombras de morcegos gigantes. -Vê aquilo? São espectros, assediando motoristas vivos. Os carros estão invisíveis para nós, agora, mas não para eles. E à cada acidente que ocorre aqui, eles vão se tornando mais e mais fortes, e a massa de mortos cresce mais e mais. Aqui, a película entre o mundo dos vivos e dos mortos é bastante fina, mestre, e, em momentos especialmente propícios, é possível muitos desses acidentados manifestarem-se no mundo dos vivos para assombrarem com pouco ou nenhum esforço... Vamos continuar... Não queremos ser vistos pelos Espectros...

*

A caminhada parecia bastante estranha para o jovem cigano. Aparentemente, eles haviam cruzado toda a cidade apenas caminhando, mas não parecia em nada cansado, como se tivesse, de algum modo, se transportado espiritualmente no meio da viagem. O olhar do guia era impassível àquela situação, como um servo que apenas executava seu trabalho. Eis que Pedro notara uma mudança no ambiente: o céu, antes esverdeado, agora era negro e acinzentado, como se nuvens de chuva, fumaça e fuligem se misturassem acima de suas cabeças. O terreno tornara-se ainda mais decadente, embora estivesse escasso de casas e prédios. Uma sensação de ansiedade extrema tomava conta do cigano. Agah parara de andar e passara a observar aquele cenário, para então virar-se para Pedro.

-Ali é a favela Pôr-do-Sol. O território de um dos Senhores das Trevas de Fortaleza, Mordekhan. Ele disputa Fortaleza com outros Senhores das Trevas, mas aqui... Aqui, mestre, ele reina supremo.

-Porque você me trouxe até aqui? - indagou Pedro.

O espírito olhou-o com uma expressão fria, porém, curiosa. -Mestre, você me trouxe até aqui. - então a mente de Pedro retrocede até sua chegada à Fortaleza, e percebe que realmente Agah nunca fora seu guia naquela empreitada. Ele sabia todo o caminho desde o começo e sequer percebera isso. Os laços que o uso das drogas trouxeram-lhe para com o Senhor das Trevas, imbuídos da forte intuição e os dons de Pedro levaram-no até o local. O esconderijo de seu algoz. Pedro olhou atentamente para o conjunto de casebres depredados à frente. Eles se aproximaram com passos lentos. Pedro percebera que a realidade à sua volta parecia mudar e Agah parecia visivelmente desconfortável com aquilo. Ele estava intuitivamente evocando sua feitiçaria espiritual. Quanto mais se aproximavam, mais podiam distingüir as figuras presentes por entre os casebres. Eram seres de sombras e presas, garras e ódio. Eram espíritos sádicos, demoníacos, presos sob o julgo do Senhor das Trevas à seu domínio. Eles estavam ali para proteger o lugar. Os olhos do cigano se estreitaram. Seria uma dura batalha até encontrarem Mordekhan.

-'Tá procurando alguma coisa, mortal? - eis que uma voz, mais parecida com um rugido, soa profunda e gutural pelas costas do cigano e seu guia. Ambos viram-se. Era um homem de altura mediana, pele bastante negra, musculoso, cabelo curto e bem cortado, vestindo uma camiseta amarela, uma calça leve e tênis. Seus olhos eram de um negrume profundo, onde se destacavam somente íris de um vermelho forte.

-Tu veio atrás de mim, né? - um sorriso demoníaco repleto de dentes afiados deformou seu rosto.

-Você... Você me enganou! - engasgou Pedro, percebendo que aquelas eram as únicas palavras que conseguiria dizer naquele momento. A criatura lentamente recobria-se de alguma substãncia viscosa que lhe dava nova forma, criando garras em seus dedos e esporas em seus cotovelos. O Senhor das Trevas balançou seu dedo indicador numa negativa brincalhona. -Não, não, não, não... nosso pacto foi tão preciso quanto tua evocação, mortal. Teus gemidos de prazer foram tua aceitação. - E, antes mesmo que Pedro pudesse conseguir palavras para confrontar aquela alegação, uma explosão de sombras foi expelida da criatura, tomando solo, ar e céus. As nuvens se abriram numa tormenta de trovões e ventania, criando um furação de proporções colossais. Pedro olhou tudo aquilo aterrorizado com tamanho poder. A criatura agarrou-o por trás numa velocidade indescritível, mas logo após assumiu uma lentidão manhosa, como uma pantera que já pegara sua presa e agora brincava com ela.

-Eu sabia que tu viria até mim, mortal tolo. Eu sabia. Eu vi nos teus olhos a arrogância no momento que pisei no mundo de carne. Eu sabia como te provocar. Eu sabia como te dar prazer. - o Senhor das Trevas aproximou-se do ouvido de Pedro e cochichou - Eu sabia como devorar tua alma.

Então, ele virou o cigano de frente para si e olhou-o nos olhos. Naquele momento, Pedro percebera, enquanto fitava o abismo profundo que olhava de volta para ele, que não tinha nenhuma chance. Sentiu recair sobre si mesmo um peso enorme, uma sensação de perda e culpa que só sentira quando sua prima havia morrido por culpa dele. Então, aquele Dratvoz percebeu de onde vinha aquela culpa: ele acabara de morrer. Mordekhan riu.