Sepulcro do que é vivo

O chão estava sujo, coberto de poeira, restos de comida dentre outras coisas não identificáveis naquele cubículo escuro, onde sentado em meio a imundície estava um vulto que outrora tivera identidade. Tentava decifrar os sons que lhe chegavam oriundos do universo que estava além da porta. Antes desta porta, em quatro paredes estava contido todo o seu mundo, eternamente imerso em trevas. Suas refeições sempre chegavam enquanto dormia e aos seus olhos, parecia um milagre o surgimento daquilo que provinha sua subsistência e durante muitas vezes permaceu em vigília, aguardando o mágico momento em que comida simplesmente apareceria em sua frente, enchendo a caneca descascada e seu amassado prato de estanho, porém nunca conseguiu presenciar tal ocasião e terminava vencido pela fome.

Os dias se arrastavam de maneira que calendário algum poderia controlar. Noite e dia simplesmente se fundiam na contínua escuridão daquele cômodo, fazendo com que adormecesse apenas de exaustão mental após muito tempo desperto e ao mergulhar no domínio dos sonhos, aquele vulto sonhava com frases soltas e desconexas como "Seja feita vossa vontade." ou "Onde jantaremos amanhã?", porém desconhecia o significado destas frases e muitas vezes preenchia seu tempo repetindo-as mentalmente. Essas frases eram apenas alguns dos sons que ouvia junto à porta. Muitas vezes, os sons eram acompanhados por iluminação, o que lhe causava um enorme sentimento de curiosidade que lhe fazia deitar a cabeça, pondo a orelha de encontro ao chão e assim ficava a observar as sombras causadas pela claridade a dançar através do estreito vão na parte de baixo da porta. Oh, como gostaria de poder expressar seu contentamento perante aquelas curiosas aparições, porém, para sua agonia, não conseguia produzir ruído algum. Ao mesmo tempo em que sentia encantamento, também sentia terror e não ousava tentar aproximação com a porta, pois temia que esta pudesse de súbito abrir-se e lhe revelar coisas tão terríveis a ponto de fazer seu coração parar de medo. Então, limitava-se a a observar de um canto, com o corpo colado ao chão, ambos igualmente sujos.

Um dia, porém, chegou o momento em que sentiu-se gelar por dentro. Não de fome ou medo, e de maneira tão arrebatadora que sem permissão tomou conta de seu corpo e sua alma e nesse estado de abandono, apenas esperou e esperou o que jamais veio em seu resgate, sentido-se por fim aliviado por abandonar sua prisão de carne.

Delirium
Enviado por Delirium em 15/07/2008
Reeditado em 27/07/2008
Código do texto: T1081987
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