Devorador de sonhos
_ Perdoe-me padre porque pequei.
O reverendo Bruno estava sentado dentro do confessionário, isolado das pessoas que formavam uma pequena fila para se confessar. O confessionário era um pequeno cubículo de madeira de lei, muito bem trabalhado com detalhes eclesiásticos entalhados, o reverendo se assentava e fechando uma cortina grossa de um tecido aveludado púrpura, permanecia no escuro, apenas ouvindo, aconselhando e passando a penitência dos confessantes.
Quando aquela pessoa pronunciou tais palavras, não havia nelas nada de mais, exeto o fato de que nunca antes tinha se confessado com Bruno, o padre sabia quem costumava fazer confissões regularmente e até aqueles que só apareciam eventualmente. Mas este homem, de voz grossa e rouca ao mesmo tempo, nunca estivera diante dele para tal sacramento.
_ O que você fez?_ disse o padre.
O homem estava respirando de modo ofegante, parecia ter acabado de disputar uma maratona. Ele respondeu:
_ Não é apenas o que fiz, mas o que ainda faço e continuarei fazendo.
Desde que Bruno chegou ao município de Mesquita, nunca tinha se deparado com alguma pessoa que realmente tivesse feito algo grave, vindo se confessar; não que haja divisão ou peso para pecado ou erros em geral, na verdade ele sabia muito bem que todo e qualquer pecado tem exatamente o mesmo peso espiritual, e que desta forma encobre o rosto de Deus para que não ouça aquele que pecou.
_ Você pode se abrir aqui._ falou Bruno tentando saber do que se tratava.
O homem se ajeitou do lado de fora da cabine, como que buscando a melhor posição para prosseguir com o relato, e disse:
_ Você não vai contar a ninguém não é? Vai manter segredo não vai?
Ora, obviamente Bruno estava tratando de alguém que não pertencia a seu grupo habitual de paroquianos.
_ Tudo o que você disser vai permanecer em segredo para sempre.
O padre viu o homem repousar seus cotovelos sobre um pequeno apoio para os braços e só naquele momento percebeu que o sujeito estava usando um casaco com um capuz sobre a cabeça. Bruno sempre começava seus atendimentos com os olhos fechados, gostava de ouvir apenas a voz da pessoa, pois era possível constatar certas coisas através da voz. Ele às vezes conseguia perceber quando a pessoa estava nervosa, triste, com medo, com raiva e assim por diante; mas aquele homem de voz rouca não passava nada além de firmeza.
Quando o reverendo abriu os olhos viu, através da tela pequena e quadrada que os separava, o homem mantinha sua cabeça levemente abaixada, como se com vergonha de olhar para dentro da cabine onde o padre se encontrava, com isso o capuz lhe tampava a face.
_ Mas e quanto aquele livro que você escreve usando as confissões das pessoas que lhe procuram?
Bruno perdeu o chão naquele momento, ninguém sabia que ele mantinha um pequeno relatório das confissões. Entretanto nunca passou pela sua cabeça quebrar seu juramento, jamais revelaria quem disse cada um dos casos que contaria no seu livro.
_ Como você sabe disso?_ perguntou atônito.
O homem pareceu esboçar um sorriso, mas não ficou claro; podia ser um suspiro.
_Oh! Eu sei, sei de muitas coisas, sei de coisas de muitas pessoas, e é por isso que faço o que faço.
Esta resposta foi ao mesmo tempo estranha e sombria.
_ Mas então você sabe que eu nunca revelarei quem fez os relatos, meu intuito é apenas confeccionar um livro que mostre as formas como as pessoas cultivam sentimentos ruins, degenerativos, maldosos e mostrar que não é preciso conviver com eles, assim como aconselho a todos que me procuraram._ Rebateu o padre, ainda tonto pelo fato de ter tido um de seus segredos revelados por um estranho.
_ É verdade_ concordou o homem_ Mas não foi sobre você que vim falar, vim falar sobre mim.
_ O que você quer dizer?_ perguntou intrigado o reverendo.
Agora sim o homem sorriu levemente.
_ Quero dizer que tenho conhecido muitas pessoas com grande potencial para fazer o bem, porém jamais chegarão a tanto.
_ E por quê?
_ Porque eu as encontrei.
Bruno costumava se preocupar por pequenas coisas, e tinha em seu âmago o intuito de sempre ajudar aos que precisavam. Começou a se inquietar quando o homem disse que as pessoas nunca chegariam a fazer o bem.
_ Quem é você e o que quer?
_ Chamam-me por muitos nomes, já não sei qual deles é o verdadeiro, porém, posso dizer o que sou.
O estranho fez uma pausa claramente esperando que Bruno dissesse algo, mas isso não aconteceu e o homem continuou:
_ Sou um devorador.
Devorador; a palavra chegou a reboar na mente do padre sem que este soubesse o que falar.
_ Sou um devorador_ repediu o homem encapuzado_ Devorador de sonhos; é isso que eu faço.
_Meu Deus! Não é possível._ se Aquela coisa fosse procurar outro reverendo, provavelmente esse pensaria estar lidando com um indivíduo desequilibrado mentalmente, entretanto, Bruno já tinha visto coisas que fariam o mais cético dos homens temer.
_ Exatamente por isso procurei você_ recomeçou o devorador_ Conte-me seus sonhos, talvez você queira dar conta de proteger todas as pessoas que conhece, talvez você tivesse vontade de me ver face a face, ou quem sabe seu grande sonho seja provar para todos que nós realmente existimos.
Bruno ficou momentaneamente sem voz, mas seu inimigo havia acertado; o padre sempre teve vontade de provar para outras pessoas que suas vidas estavam sobre más influências.
_ O que você quer?
_ Ora padre, alguém já disse que o homem não morre quando deixa de viver, mas sim quando deixa de sonhar. É isso o que eu quero; quero acabar com seus sonhos um a um, tal como venho fazendo a muito, muito tempo.
_Mas não será tão fácil assim_ rebateu o reverendo.
_ Tenho observado de perto muitas pessoas que você conhece; como crianças jogando palavras ao vento, assim são vocês. Meu trabalho é atrapalhar somente; mato o sonho e deixo que vocês se frustrem sozinhos, o resto é deixar a natureza seguir seu curso.
_ Mas voc...
Bruno foi interrompido quando ia falar algo e sem opção ouviu as palavras finais do estranho encapuzado:
_Duas semanas padre, é o tempo que você tem para salvar um de seus conhecidos; o tempo antes da frustração se tornar depressão e a depressão se tornar...
As palavras cessaram sem mais nem menos, a figura parada frente ao confessionário simplesmente se desfez como uma mancha negra que escorre pelo ralo e um cheiro forte inundou todo o lugar. Bruno saiu rapidamente do lugar em que estava, abriu a cortina púrpura e se levantou, mas já sabia que não encontraria ninguém.
Não importava, pois agora seria uma corrida contra o tempo.