VERMELHO

VERMELHO

Kaleb é um cara feliz. Não é rico, não é culto, não é bonito. Tem 44 anos, saúde boa, forte pra caramba de tanto carregar caixotes na feira, montar a barraca, trocar pneu de caminhão. Tem mulher, dois filhos, mora em Ferraz de Vasconcellos, na grande São Paulo. Torce pelo Corinthians, ainda joga pelada domingo à tarde, depois da feira. Tem esse nome porque seu pai, lá na Bahia, teve onze filhos, seguindo as letras do alfabeto. Sendo a décimo primeiro ficou com a letra K. Tira uma boa grana com a barraca de verduras, vende tudo fresquinho, preço bom, dá presentes às freguesas, um repolho, salsinha, faz desconto, troca cheque. Acorda às 2 horas da manhã, se manda para o CEASA, carrega o caminhão com a ajuda do filho mais novo, Maicon. O outro filho, Cícero, já ajudou antes, agora está na Faculdade. Às 5 horas já está com a barraca montada, esperando a freguesia. Maicon já foi para a escola. Tem orgulho dos meninos, estudiosos, não usam drogas -ele acha- não são de dar trabalho. Sua mulher sempre diz: - todos os dias agradeço a Deus por esses filhos que nós temos ! Consuelo é filha de espanhóis, casaram cedo, deram duro. No início ela ajudava na feira, agora só cuida da casa. Tenho muita sorte nessa vida, pensa Kaleb, quase falando sozinho. Vejo cada coisa por aí.....

- Ei, cuidado com o vermelho !

A voz é abafada, estridente, vem não se sabe de onde. Kaleb olha para os lados, não vê ninguém. A essa hora a feira está quase vazia, seus colegas parecem cochilar, os passarinhos cantam nas árvores, ao longe passam alguns carros, o grupo da barraca de peixe conversa baixinho, o português das cebolas cantarola um fado antigo. Alguém está me sacaneando, pensa Kaleb.

- Cuidado com o vermelho !

Ouve de novo. Agora a voz parece vir do meio da barraca. Bem ali onde estão as alfaces. Será que estou ficando doido ? Olha debaixo das madeiras, nada. Levanta algumas caixas, nada.

- Não está me vendo não ?

Ele procura, procura, revira tudo, olha em cima, em baixo, dos lados.... De repente seu olhar se fixa numa alface, no meio das outras. Ela é diferente, no centro suas folhas parecem formar uma boca. Chega perto, põe o dedo.

- Achou !

Kaleb quase cai de costas. – O quê é isso ? Exclama. Vai ficando pálido, seu coração dispara, se apóia no balcão, ofegante. O português percebe, pergunta se está tudo bem, Kaleb disfarça, diz que não é nada, tentando se recompor. Olha de novo para a alface, ela parece sorrir. – Não, isso não é possível, eu devo estar ficando maluco mesmo, diz Kaleb entre dentes. Esfrega os olhos, vê se não tem ninguém olhando, todos estão entretidos em seus afazeres.

- Vai ficar me olhando aí com essa cara de bobo ?

- Quem é você ? aliás, o quê é você ? pergunta baixinho Kaleb.

- Não interessa, eu só vim te avisar: cuidado com o Vermelho !

- Que vermelho ? de quê você está falando ?

- Você vai saber na hora.

- Isso não é possível, alfaces não falam, pensa Kaleb. Pega uma garrafa de água, joga o líquido na cara, esfrega os olhos.

- Já está com calor ? pergunta o peixeiro.

Kaleb não responde, olha de novo para alface e nota que a forma de boca desapareceu. Pega nela, olha entre as folhas, parece uma alface comum. Deve ter sido uma alucinação, conclui. Mas o acontecido fica martelando na sua cabeça a manhã inteira. Vende a alface para alguém, nem repara para quem. Pensa que deve consultar um médico, mas como tudo parece correr normalmente, esquece.

No fim do período carrega o caminhão, desmonta a barraca e se manda para casa. Caminhos alternativos para escapar do trânsito são sua especialidade, conhece todos.

Pega uma estradinha estreita, mas vazia. Pensa na alface, mas que coisa mais maluca. Deve ter sonhado acordado ou coisa assim.

Ao longe vê crianças brincando na beira da estrada, jogam bola. Em sentido contrário vem um caminhão de combustível. As crianças se divertem no acostamento à direita. Que perigo, pensa Kaleb, do outro lado não tem acostamento, só o barranco. De repente a bola vai parar no meio da estrada. A bola é vermelha. Do outro lado vem o caminhão. Um menino corre para pegar a bola, não vê o perigo. Kaleb já está perto. A bola rola, o menino atrás. O outro caminhão se aproxima, o motorista buzina. Kaleb buzina, começa a brecar. O menino percebe e pára, estático, no meio da estrada. O outro caminhão também começa a brecar. O outro caminhão também é vermelho. Kaleb lembra da alface, a bola é vermelha, o caminhão é vermelho, o som dos freios rasga o silêncio da estrada. Kaleb vira o volante para a esquerda, o menino, como que despertando, corre para o acostamento e a bola vermelha desliza lentamente em direção ao barranco.

Leonardo da Cunha
Enviado por Leonardo da Cunha em 24/06/2008
Código do texto: T1049516
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