A Primeva Morte De Uma Sacerdotisa Negra
Uma casa de natureza rústica próxima ao centro da cidade de São Paulo.
Vinte e duas horas.
Vinte e dois minutos.
Um recinto grande dotado de livros e aparatos mais antigos do que a própria cidade e o próprio mundo.
Uma Sacerdotisa Negra a ler o Pergaminho Sagrado de sua Mestra, uma das Grandes Senhoras Não-Nascidas.
"Deites Ao Solo As Angústias E Agruras De Um Mundo Fora De Ti E Em Eixos Quebráveis, Ouça O Sopro Do Sangue Da Terra Nas Veias Do Dragão, Escute O Lamento Da Deusa Em Vias De Noturna Expansão. Achegue-Se Ao Teu Templo Como Filhote Loba, Filhote De Ursa, Filhote De Leão, Filhote De Corvo E Filhote De Coruja. Aos Não-Nascidos, Aos Filhos Do Ventre Das Mil E Cem E Mais De Dez Mil E Uma Infinitas Presas, Resta Apenas Coroar-Se Na Janela Que Guardada Fica Pelo Guardião Da Soleira.
Diante Da Morte De Um Ser Que Tu Amas, Feches Teu Olhar E Não Nasças.
Diante Da Morte De Um Ser Que Tu Odeias, Feches Teu Olhar E Não Nasças.
Diante Da Morte De Um Ser Que Tu Ignoras, Feches Teu Olhar E Não Nasças.
Diante Das Mortes De Milhões Em Catástrofes E Guerras, Feches Teu Olhar E Não Nasças.
Mas, Se Tu Jamais Abristes O Teu Olhar Para Todos Os Que Morrem, Tu És Não-Nascido Dos Frutos Materiais.
Tu És, Então, Candidato À Primeva Morte Que Leva Ao Não-Aproximar Das Finitudes Materiais.
A Primeva Morte Te Fará Renascer Para O Infinito De Infinitas Imaterialidades.
A Primeva Morte Te Dará Nova Carne.
A Primeira Morte Te Dará Novo Espírito.
A Primeva Morte Te Dava Nova Alma.
A Primeva Morte Te Dará A Tua Verdadeira Vida.
Tu Serás, Então, Não-Nascido.
Tu Serás, Então, Consorte Da Eternidade."
Ana Lúcia Wickerman, cuidadosamente, fecha o Pergaminho e deposita sua mão esquerda acima dele, na pequena mesa de madeira de lei na qual escreve todos os seus Rituais. Seus olhos são mantidos fechados e as internas meditações acerca do que foi lido no Pergaminho acometem a sua mente, mente purificada das mazelas e dos distúrbios que muito perturbam as pessoas comuns. O peso da escrita do Pergaminho arredonda-se insistente e pulsante em seus Veículos, crescendo, nadando, voando, em suas mentais afirmações.
“Toda a natureza das minhas buscas me guiaram até este momento de Desprendimento Maior. Não tenho e não temo, não retenho e não pretendo, não vocifero e não grito, não aguardo e não libero, não alimento e não fomento. Desferi golpes em todos os meus antigos fundamentos, cheguei ao topo do Sacerdócio Negro, minha ciência me fez Compreender todas as Coisas Humanas e as Coisas Além-Das-Humanas. Fel absorvido, mel oprimido, A Bebida foi tragada, A Sede foi saciada, A Garrafa está conservada. Ela me ensinou toda a Métrica Da Poesia Negra, todo o Despertar Das Sendas Do Coração Sangrento. É o meu momento, meu douro momento, meu esperado espetáculo sem esfuziantes fúteis alegrias, de Desprendimento, Crescente Como Os Feixes Dos Raios Divinos Da Deusa Hecate.”
- Antes do Não-Nascer, mais uma prova, Filha Negra.
- Aguardo tua condução, Mestra.
- Como Se Conhece O Inferno?
- Conhecendo A Verdadeira Face Humana.
- Como Se Desconhece O Inferno?
- Não Deixando De Desconhecer A Verdadeira Face Humana.
- Quem Lucra Com O Sangue Humano Derramado?
- Os Filhos Comedores De Sangue Impuro.
- Qual A Causa Do Sangue Humano Derramado?
- A Causa É A Insanidade De Adormecer Em Toda Uma Existência.
- Por Que Despertar?
- Não Há Lógica Em Não Despertar.
- Por Que Despertar Uma Segunda Vez?
- Há Dualidade Lógica No Segundo Despertar.
- Por Que Despertar Uma Terceira Vez?
- Há Trindade Lógica No Terceiro Despertar.
- Por Que Despertar Uma Quarta Vez?
- Há Quadruplicidade Lógica No Quarto Despertar.
- Por Que Despertar Uma Quinta Vez?
- Há Quintuplicidade Lógica No Quinto Despertar.
- Por Que Despertar Uma Sexta Vez?
- Há Sextuplicidade Lógica No Sexto Despertar.
- Por Que Despertar Uma Sétima Vez?
- Há Setuplicidade Lógica No Sétimo Despertar.
- Por Que Despertar Uma Oitava Vez?
- Há Octuplicidade Lógica No Oitavo Despertar.
- Por Que Despertar Uma Nona Vez?
- Há Nonuplicidade Lógica No Nono Despertar.
- Queres?
- Não Quero.
- Sabes?
- Não Sei.
- Ousas?
- Não Ouso.
- Calas?
- Nunca Falei.
- Vês O Sol?
- O Sol Eu Sou.
- Vês A Lua?
- A Lua Eu Sou.
- Vês Vênus Refletida Em Tua Coroa?
- Sou A Reflexão Da Coroa De Vênus.
- Vês Marte Refletido Em Tua Espada?
- Sou A Reflexão Da Espada De Marte.
- Vês Mercúrio Refletido Em Tua Pena?
- Sou A Reflexão Da Pena De Mercúrio.
- Vês Júpiter Refletido Em Teu Trono?
- Sou A Reflexão Do Trono De Júpiter.
- Vês Netuno Refletido Em Teu Mar?
- Sou A Reflexão Do Mar De Netuno.
- Vês Urano Refletido Em Tuas Revoluções?
- Sou A Reflexão Das Revoluções De Urano.
- Vês Plutão Refletido Em Teus Subterrâneos?
- Sou A Reflexão Dos Subterrâneos De Plutão.
- Vês Ana Lúcia Wickerman?
- Vejo O Meu Não-Nascer.
- Vês Teu Pai De Carne?
- Vejo O Meu Não-Nascer.
- Vês Tua Mãe De Carne?
- Vejo O Meu Não-Nascer.
- Vês Teus Irmãos De Carne?
- Vejo O Meu Não-Nascer.
- Vês Tua Família Toda De Carne?
- Vejo O Meu Não-Nascer.
- Vês A Humanidade Toda De Carne?
- Vejo O Meu Não-Nascer.
- Vês O Teu Não-Nascer?
- Nunca Nada Vi.
A Mestra sorri para sua discípula e retorna ao Umbral Dos Não-Nascidos, pondo-se à frente dos Portões Das Não-Mortes, à entrada da Cidade Dos Eternos Desconhecidos. Ana Lúcia, com a calma de uma sábia de idades imemoriais em toda a compleição física que possui, direciona-se ao local, no mesmo recinto, onde concentra-se o seu círculo de meditações, todo rodeado pelos Símbolos Do Não-Nascer, todo povoado pelo Sangue Do Mil Dragões Não-Nascidos. A sua veste sacerdotal brilha em uma intensidade jamais presenciada por olhos humanos e seu rosto assume uma feição jamais vista por qualquer olho humano. Neste momento, os Portões Das Não-Mortes estremecem, Mais Uma Dos Não-Nascidos Não-Nascerá, Mais Uma Dos Eternos Desconhecidos Eternamente Ficará Desconhecido Para O Humano Mundo De Nascidos-Mortos. Ana Lúcia acende, dentro do círculo, as chamas em redor deste com uma simples manipulação do Fogo Serpentino, a Kundalini Não-Nascida, que, materialmente, aprendeu com sua Mestra Não-Nascida a manipular como perita exímia, perita esta que jamais a utilizou mortalmente contra um ser humano ou um animal, a Ética Dos Não-Nascidos é esta. Ela assume a posição de lótus no meio do círculo, nove vezes respira, nove vezes fica sem respirar, nove vezes fulmina seus chakras relembrando cada um dos seus Nove Despertares. Ela Desperta Nove E Nove E Nove Em Nove Vezes Mais, chakras abertos, chakras expandidos, chakras explodindo...
SAHASHARA
Eu, Sacerdotisa Vital.
AJNA
Eu, Sacerdotisa Devotada.
VISSOEDHA
Eu, Sacerdotisa Conhecendo.
MANIPOERA
Eu, Sacerdotisa Transformada.
ANAHATA
Eu, Sacerdotisa Equilibrada.
SVADISTHANA
Eu, Sacerdotisa Recebida.
MOELADHARA
Eu, Sacerdotisa Encouraçada.
KUNDALINI
Eu, Sacerdotisa Serpentina.
KUNDALINI
Eu, Sacerdotisa Não-Nascida.
E Ela Cresce. E Ela Vem. E Ela Assume. E Ela Grita. E Ela Consome. E Ela Agita. E Ela Agiliza. E Ela Espera. E Ela Aguarda. E Ela Elabora. E Ela Planta. E Ela Acolhe. E Ela Adora. E Ela Rejeita. E Ela Ignora. E Ela Investe. E Ela Reveste. E Ela Retoma. E Ela Abandona. E Ela Alcança. E Ela Corre. E Ela Inerte Fica. E Ela Transtornada Fica. E Ela Calma Fica. E Ela Ignorante Fica. E Ela Sábia Fica. E Ela Agita Bandeiras. E Ela Queima Bandeiras. E Ela Grava Na Madeira Muitos Nomes. E Ela Queima Na Madeira Muitos Nomes. E Ela Rasga Os Livros Desconhecidos. E Ela Escreve Livros Que Não Serão Lidos. E Ela Lê Ondas De Fogo E Água E Terra E Lama. E Ela Relê Os Pingos D'Água Chuva Que Cairam Todos Em Seu Corpo. E Ela Se Alimenta De Poucos Nadas. E Ela Passa Fome Com O Todo Em Muitos Todos. E Ela Toca A Viola Dos Perigosos Devaneios. E Ela É A Nota Maior Da Melodia Do Desespero. E Ela É A Afogada. E Ela É A Suicida. E Ela É A Assassina. E Ela É O Estuprador De Crianças Órfãs. E Ela É O Enforcador De Prostitutas. E Ela É O Opressor De Milhões De Subjugados Pela Sua Tirania. E Ela É A Pacificadora De Muitas Almas. E Ela É A Enfermeira De Todas As Almas. E Ela É A Doença De Todos Os Seres. E Ela É... E Ela É... E Ela É... E Ela É... E Ela É... E Ela É... E Ela É... E Ela É... E Ela É...
ONTEM: NÃO-NASCIDA!!!
HOJE: NÃO-NASCIDA!!!
AMANHÃ: NÃO-NASCIDA!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NOVO SANGUE!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NOVO OLHAR!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NOVO OLFATO!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NOVO PALADAR!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NOVO TATO!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NOVA AUDIÇÃO!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NOVO SER!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NOVO NOME!!!
NÃO-NASCIDA!!!
NENHUM NOME!!!
As chamas consomem toda a casa rústica de Ana Lúcia Wiseman, em questão de segundos. Não encontrarão, no entanto, o corpo dela, seus vizinhos; vizinhos que sempre a chamaram de “Ana Sem Vida”, pois silenciosa, entristecida e solitária, na visão deles, ela era. Mas, ela, que foi Ana Lúcia Wiseman na Terra, em seu corpo de carne, agora é mais uma das Sacerdotisas Não-Nascidas, como a sua Mestra, na Cidade Dos Eternos Desconhecidos. E, enquanto seus vizinhos tentam achar-lhe o corpo, após a contenção do incêndio, que destruiu todo o material doutrinário e de valor infinito para os que Sabem, material que não podia cair em mãos profanas; enquanto isso, ela, Sacerdotisa Não-Nascida, se ajoelhava e beijava a mão esquerda da Soberana Eterna da Cidade, Amalya.
Inominável Ser
NÃO-NASCIDO