A Ordem do Mundo
“O mundo não tem ordem”, o monge que movimentava os sessenta e quatro discos de bronze refletiu.
O ritual era simples: no início dos tempos, quando o mundo havia sido criado, todos os discos foram colocados na primeira de três hastes, os maiores na base, os menores no topo, uma torre cônica; sempre existiu um monge com a tarefa única de movimentar os discos, o objetivo era transportar todos eles para a terceira haste, porém nunca, mas nunca mesmo, um disco menor poderia ficar abaixo dum disco maior.
Por mais simples que isto pudesse parecer, jamais alguém havia conseguido perfazer a tarefa. Segundo as profecias, no dia em que todos os sessenta e quatro discos fossem alocados na terceira haste, o mundo acabaria.
Estes mesmos monges estudaram as relações entre vogais breves e longas nos versos e estabeleceram uma seqüência métrica para composição, conhecida como matrameru.
Tanto o ritual quanto a métrica almejavam a perfeição, o supremo ideal, para os monges.
Certa manhã, Vidyacharan, após sonhos inquietos, chegou àquela conclusão: “o mundo não tem ordem”.
Não raro ele tinha pesadelos com os discos brônzeos e com o ato automático de movê-los rumo à completude. Nestes sonhos, Vidyacharan vislumbrava o fim dos tempos, mas também tudo que ocorreria antes disto.
Num destes sonhos, ele havia sido um sábio grego obcecado com o conceito de máxima generalidade, “o ser enquanto ser”; noutro, um matemático italiano, autor duma obra intitulada Liber Abaci, ou “Livro de Cálculo”, na qual ele apresentava ao mundo ocidental a importância de se adotar o sistema numérico arábico, incluindo o algarismo zero, e também a seqüência numérica inspirada nas descobertas métricas dos monges. Em outra noite, Vidyacharan era um pintor de afrescos, devastado pelo fracasso e pela busca da máxima perfeição e da mais precisa harmonia. Em outra ainda, um matemático francês que resgatava algumas descobertas do “Livro de Cálculo” e que implementava suas próprias conclusões e uma nova seqüência, através da qual obtinha, manualmente, o maior número primo conhecido.
Nas noites mais recentes, o monge havia sido um enxadrista cubano, à procura pelo adversário ideal para a realização da partida perfeita; numa bodega, conhece um marinheiro genovês que o desafia; após apenas poucos movimentos de abertura, o enxadrista se levanta, estende a mão e propõe empate. Aquele poderia ser o jogo perfeito, porém, um único deslize, uma única distração por parte dos jogadores o arruinaria. Para o enxadrista, melhor era viver a possibilidade do jogo perfeito, do que a ruína desta possibilidade.
Ele também havia sido um músico húngaro e, o mais inusitado, um autor português, que compunha livros como se fossem fórmulas matemáticas, e escrevia frases como se fossem linhas melódicas duma sinfonia, mas atormentando pelos enredos irrealizáveis que ele mesmo se propunha.
E, na noite anterior, Vidyacharan havia sido um físico americano que tentava compreender o caos e buscar ordem no aleatório. Foi então que a revelação — “o mundo não tem ordem” — o assolou.
Ele se sentou diante dos discos de bronze e, com mãos trêmulas, movimentou um deles. Toda sua formação o havia preparado para aquela tarefa, mas as visões noturnas minavam sua crença. “Seriam vislumbres de vidas futuras?”, ele se indagava.
Aterrorizado com quais sonhos as noites vindouras trariam, Vidyacharan deixou a esteira na qual tentava adormecer, adentrou o templo e acariciou os discos. Depois atou-os a seu corpo e mergulhou no rio sagrado, para sonhar o último sonho no colo de Brahma.
“O mundo não tem ordem”, pensou o monge, fundeando nas águas turvas do rio. Fechou os olhos. E constatou, para seu desespero, que estava errado, havia sim algum tipo de ordem, não compreensível, não mensurável, imprevisível, mas que unia todas as pontas dispersas, todas as perguntas sem respostas, todos os atos sem sentidos, todos os futuros não realizados, e presente nos astros, nos Vedas, nas paixões humanas e, até mesmo, nos discos brônzeos que afogavam Vidyacharan.