O BANQUETE DOS ANJOS
Dezoito horas dum domingo frio e a cidade ainda acontecia sob a garoa.
A névoa acabara de baixar no horizonte do céu poluído, e o horário já estimulava alguns pedintes pelos semáforos bem como os dormitórios pelas calçadas.
Naquela esquina as lojas abaixavam suas portas indiferentes ao entorno, e os camelôs recolhiam suas quinquilharias para o turno do próximo dia.
E a cena estava lá, nua e crua, no meio fio, aonde eles haviam passado a noite anterior envoltos nos jornais de notícias podres, a compartilhar do calor de seus corpos esfomeados.
Catara papelão durante todo o dia, e pelo volume da carroça, tive a impressão de que fora um bom faturamento, aquele suficiente para o pão de cada dia.
Mas me enganei.
Dessa vez brigavam explicitamente pela sobrevivência.
Ele e seu "melhor amigo". O melhor entre o único..
E único também era aquele pedaço de carne preso à boca do cão, que o homem violentamente tracionava, para tentar satisfazer a ânsia da sua fome.
Perdeu a luta, como tantas outras que já perdera no chão daquela calçada..
O cão saiu pelo asfalto, ruminando a proteína que prometia refazer seus músculos atrofiados que expunham a sua caquética carcaça.
Ele, entornou um gole de aguardente, acendeu alguns gravetos para aquecer sua carne trêmula e não diferente da do amigo; ajeitou-se entre os jornais e foi sonhar com o banquete dos anjos...
Mais um semáforo se abriu, e a cidade seguiu, como sempre segue, alheia a tudo...e a todos.
Nota do autor:
Embora "cotidianamente" verídico, julgo e classifico esse meu conto como surreal.