Panos de Prato Encantados
Panos de Prato Encantados
É de aparência vibrante a sala com sofás e poltronas alegres cobertos com tecido estampado ,as flores bem dispostas nos vasos das folhagens que caem do teto como as diversas almofadas espalhadas em reveria calculada no assoalho de tábua. .As ondas do mar quebram em frente da varanda no velho chalé de madeira, musicando o ambiente.
Sílvia deixa de lado o espelho satisfeita .Olha em volta e tudo combina .Larga o corpo magro e malhado na poltrona , levanta os cabelos louros e lisos em um coque com um prendedor para não suar até a hora do Chá de Panela ou “Champagne de Panela”. Põe se a pensar. Restam trinta minutos para chegarem as cinco velhas amigas. Resolve lembrar de todas e as visualiza na memória. Fixa o pensamento , raciocina, e começa a relembrar:
Cinco rostos a encaram . Sílvia se incomoda. Aumenta o campo de visão para dar corpo àquelas faces intrigadas .As imagens se tornam cada vez mais nítidas e verossímeis. Beiram o real .Sílvia olha firmemente . Reconhece os nomes e as idades . Classifica as segundo seus critérios : primeiro a sua feminilidade e após a situação da vida atual de cada uma.
“Letícia das cinco é a mais bela e a mais apagada , inexpressiva mesmo. Nutricionista formada , fala com voz sempre pausada , jamais comunica as emoções e, desagradada ou alegre, mas sempre controlada nunca altera o tom de voz . Tem quarenta e dois anos , um casal de filhos e um casamento que ela chama de “controlado” .” Sílvia sorri irônica rapidamente, e põe em ordem as lembranças.
“Jessica , advogada católica fervorosa e mãe de família numerosa está com cinquenta e três anos .É um tipo mignon , socialite, colunável, conservadora e, dentre elas, a mais antipática, arrogante, infantil mesmo. Esconde os defeitos atrás de uma simpatia hipócrita com todo o talento. Suspeitam que assim conquistou o bonitão milionário com quem vive. Todos compreendem a escolha dela e todos duvidam da escolha dele. Engana quase todos, à exceção de Sílvia.
“Beth , cinquenta e dois anos , é uma gorducha fofoqueira tão maliciosa que chega a ser maldosa. Anima as festas e provoca a conversação . Dizem que faz um mudo falar. Foniatra , tem dois filhos .É divorciada . O marido a abandonou fazem três anos . Optou por uma menina de dezessete .Sílvia sempre se pergunta se o motivo de Felipe não foi a boca fofoqueira, burguesa e fútil da mulher que o afastou.
Amanda , a quarta,é uma viúva entusiasmada e riquíssima , mulher de muitos conhecimentos e muitos amantes .Tem um filho de vinte e três anos e ela cinquenta e cinco Executiva , se formou em Administração . Administra as empresas que herdou do marido. Tudo em Amanda tem nota A quando se trata dela. E quando se trata de outros?-questiona se Silvia ,em silencio.
Natalie, é uma mulher queridíssima e cheia de vida. Adora crianças e bichinhos de estimação, nunca ,porém, teve filhos. Ao que tudo indica, apesar de ter inspirado grandes amores nos homens, por estas ironias da vida ,ela amava um que não a queria. Suspeitava que esta fosse a razão pela qual Nat não casou e teve filhos. Vive de uma pequena renda, é fotógrafa amadora. Tem cinquenta e quatro anos e parece trinta e dois. É magra, flexível, tem seios e colo belíssimos e um cabelo maravilhoso que, entretanto, ela usa curto, à la garçonne. Sempre alegre, vibrante com todas, às vezes deixa escapar um sorriso tristonho. --É, Nat tem algum segredo,- conclui Silvia Simone.
Olha as horas impressionada com o tanto que pode pensar em tão pouco tempo; havia relembrado todas de uma maneira geral , superficial mesmo . Conhece detalhes íntimos da vida de cada uma , pois frequentavam o mesmo clube, o mesmo colégio, e a mesma praia. Muito tempo se passou desde o último encontro, e curiosa ,quer ver as mudanças dos anos em todo o grupo.
Recosta se no divã. A mais desconhecida e misteriosa para todas, é Nicole . Sabem o desgosto que sofreu mas desconhecem as razões intimas que a levam a permanecer solitária, ou melhor, negam. Elas mesmas a isolaram. É a mais interessante e inteligente , e também a mais sofrida .Tem quarenta e nove anos . Sofreu uma tortura no passado que até hoje as faz encher os olhos de lágrimas, quando lembram o que aconteceu durante e depois. Passou três meses em uma solitária com mínimas condições de vida e ao sair foi apontada pelas ruas como “aquela”. A mídia caiu em cima , atormentou , não deu sossego, não deixou esquecer. É uma mulher bonita com uma forte personalidade além de idéias e opiniões próprias. Escreve e nunca publica. Jamais leu um livro de sua autoria. São escritos intimistas , misteriosos. Formada , nunca exerceu a profissão. As outras passaram dificuldades na vida mas tinham ganhos , prazeres e momentos de felicidade. Nicole foi “a campeã” da infelicidade .
Observa o grupo espalhado, sentado e descansado pelas almofadas , sofás e poltronas. Conversam , riem ,comem e bebericam trocando idéias com alegria genuína pelo encontro após tanto tempo. Trazem todas pequenos pacotes curiosamente iguais e embrulhados de maneira semelhante em papel azul .São presentes para ela,Sílvia, que casa depois de muita relutância e insistência . Nicole permanece a solitária da turma . Franze o cenho ao a olhar : sempre destoa , parece uma estrangeira entre elas .O rosto é grande, eslavo e estranho As outras são caracteristicamente brasileiras de Riocomprido (índio e português) Ela tem olhos redondos azuis brilhantes e enormes ,uma boca pequena ,nariz quase grego, cabelos finos , acobreados, e um corpo bem torneado, cheio ..Sorri pouco com os lábios e muito com os olhos expressivos que dispensam palavras. Mostram neste momento descontentamento e curiosidade pelo cenho franzido de Sílvia . Encara a fixamente e, rápida , esboça um sorriso:
- Penso ,interesseira que sou ,na razão pela qual não tens um pacote azul como todas as outras,- diz Silvia.
- Jessica me dispensou porque nunca casei .Disse até que dá azar receber um pano de prato de uma celibatária como eu.
- Logo tu Jessica? Religiosa como és ,não devias ter superstições. Falando nisto, estou desconfiada destes panos de prato .Afinal , vocês todas reunidas já me deram uma linda coberta de mesa , para que mais presentes e porque panos de prato ?Acaso sou condenada à cozinha, hein ,Amanda?
- Ao contrário , Sílvia , nossa mensagem através destes panos de prato é muito otimista. Pertencem a nós desde que casamos e nunca foram tocados ,sinal que os preservamos do terror do fogão e panelas . Além do mais ,quando nos reunimos pensamos em te dar algo muito afetivo ,algo envolvido com nosso casamento ,nosso convívio ao lado de um homem e como todas nós chegamos a conclusão que fomos felizes um tempo...oito anos foi o mínimo vivido pela Beth ...resolvemos te dar uma lembrança do nosso tempo de amor , de descobertas quando éramos jovens, algo intocado e também usado para lembrares o que deves evitar e que nós todas sem combinação prévia descartamos , por isto ficaram intactos, por isto todas tem panos de prato .Vê o que te trouxe :é bem branco, todo pespontado ,tem umas pombas nas pontas . Foi feito pela mãe.
- Eu não vou te dever, Silvia,- diz Natalie, risonha,- não casei mas ganhei um enxoval pronto do vovô e vou te dar um dos meus panos de prato intocados. Vovô era francês, vês? A pequena Torre Eiffel, bem aqui? Toma, é teu e junto vai a promessa de que eu vou me casar! E Natalie solta uma gargalhada que contagia a todas.
- Sílvia ,olha o meu ,- disse Jessica se aproximando - é cheio de cruzinhas formando um ponto em cruz .Este é de linha bordada e ganhei das irmãs do nosso colégio ao casar. Recordas a irmã Ambrósia que vivia a bordar? Pois foi ela...Deu certo comigo e ao contrário de vocês os usei, pouco, é verdade , pelo prazer de usar , mas acho que dá sorte .Afinal ,superstições e religiões não são inimigas...
- -Recordas como Jessica era ligada e puxa saco das freiras?- ,interrompeu Beth ,recordando a antiga fofoca e trazendo em mãos seu pano de prato a falar-, este é pintado repara ,tem uma mulher aqui embaixo cobrindo as partes íntimas com o pano de prato . Serve até para mini saia Sílvia! Vê , vê , que mulherzinha envergonhada se tapando toda !E dizer que fui eu quem fiz !
- Certamente ninguém desconfia olhando -diz Leticia , que estende um pano de pratos branco e sem graça para a amiga, enquanto faz uma alusão seca ás costumeiras bandalheiras de Beth-, mas este que te trago ,querida , é bem simples ,não tem nada de enfeite .É ,porém, prático como eu , e não se tem medo de usar pois não há o que estragar. Ganhei pilhas deles de minha madrinha de casamento e todos foram usados pelas empregadas, só ficou este.
Sílvia tem o colo coberto com as lembranças .Pousa o olhar verde sobre os panos de prato e encara Nicole, captando em sua expressão uma espécie de dor ,como que um pedido de desculpas, que logo vem:
-Trouxe te um poema de amor, feito com muito carinho e, estendendo a mão ,passa um pedacinho de papel amarrotado .Assim me recordas como alguém que não pode ainda experimentar este sentimento de amor a ponto de querer casar- Nicole desajeita , se constrange, quer se esconder, acaba rindo . Toma um gole de champagne e serve os copos das outras.
Todas estão caladas numa tristeza muda e cúmplice à exceção de Sílvia que baixinho, murmura o poema .Ao terminar levanta os olhos brilhantes que combinam com o sorriso aberto, compreensivo e iluminado:
- Mas é uma beleza Nicole! Que dom !Que talento tens aí escondido!- move se , tocada e suavizada com os versos . Um dia vais saber o quanto me comunicas e me atinges com esta poesia, um dia bem próximo...
- Esqueces que sou boa observadora ,notei logo que apreciaste o meu presente . Só te olhar já inspira , pois andas toda iluminada Sílvia. Pareces uma menina um anjo ou uma fada , e sonhadora como uma púbere inexperiente.
- Mas não é no René que penso...
- Ah ,já tem outro! - Beth quebra o diálogo , leva o assunto para a brincadeira , alivia o ambiente e desanuvia as lembranças :
- Eu também! Só espero a hora de contar para vocês a novidade. Tenho novo namorado e foi por computador! A vantagem é não nos vermos e nos imaginarmos. Já sei que desaprovas ,Jessica, não precisa fazer este trejeito, diz Natalie.
O grupo ri ,bebe , conta piadas ,brinca. Conversam assuntos gerais. Evitam a dor das lembranças de anos atrás. Nicole participa da brincadeira e contribui com opiniões pessoais sobre todos os assuntos : ginástica , internet, namoros virtuais, chats de conversação moda e tratamentos rejuvenescedores.
Sílvia está em silêncio Ela observa . Procura se manter sóbria. Pensa em como os grupamentos humanos tendem a fugir da dor. É natural no homem. O assunto Nicole veio à tona. Todas sabem, negam ,escapam de enfrentar as emoções e nada fazem para a sedar. .Foi aceita no grupo já de maneira contrafeita pela Jessica, que comentou que se desgosta com a simples presença dela .O egoísmo fala mais alto. Pudessem , além de não ajudar , rejeitam e a deixam isolada de vez. Como é a humanidade!. Volta a olhar os panos de prato, retorna ao grupo e , em voz baixa, suavemente, como quem não quer ferir os ouvidos faz uma colocação de maneira firme no exato momento em que anoitece em Rochas Salgadas, quando as primeiras estrelas começam a colorir a noite ,quando as amigas se levantam para sair, na hora em que o vento começa a chorar pelas janelas das venezianas, voando através das frestas e janelas e esfriando os corpos semi vestidos que se encolhem arrepiados
-Antes de saírem, quero que vejam o sexto pano de prato , é este! - e mostra o pedaço de juta de linho com pequenas estrelas azuis dispostas em intervalos como bainha-, este eu fiz. Vou somar aos quatro de vocês para dar a uma pessoa especial , que merece tanto estes amuletos quanto seguir o meu caminho, o caminho do amor. Só quem tem muito amor escreve um poema como este. Fico com a lembrança do poema como se escrito por vocês, pois é um verso sobre o amor e todas me deram uma dose grande de carinho hoje , uma dose suficiente. Vou entender tua poesia como o amor de todas .É para ti que vou deixar e chamar a sorte ,que já não preciso, deixo te com estes panos de prato que são todos recheados de desejos de felicidade encantados , Nicole.
Com os olhos embaçados Nicole quase não vê a mão das amigas que se estendem para entregar o simples presente. Sente se tocada , são mãos de fada naquele momento, mãos que dão, que acariciam, que compreendem ,que se desculpam e que desejam sorte. Em pé as beija e se desculpa porque não pode falar. Em um ato desapercebido, usa os panos de prato para enxugar as lágrimas.
É Sílvia quem levanta. Abre a porta com uma expressão doce e misteriosa . Comenta :
- Que sirvam para enxugar tua felicidade , doravante e vida afora...
Todas entendem o diálogo. Evaporam se pela porta leves como a neblina feita pela maresia que se forma defronte da janela , onde Sílvia se recosta com um pequeno papel embrulhado e amassado na mão,uma poesia.Pensa muito esta noite depois que as amigas saem. Sente se atrapalhada em meio a escuridão , suas emoções pedem respostas , estão confusas e se remexem. Pouco a pouco chega a uma decisão interna que a ilumina e clareia a noite por um momento.
"- Então a solução era mesmo esta .Estou certa em ter feito o que fiz. A solução para curar Nicole é muito amor e ela mesma sabe disto ,razão pela qual me deu o poema. Que os Panos de Prato encantados lhe tragam toda a sorte que não teve no passado. Quanto as outras, elas vão entender e vão se encarregar de fazer a felicidade de Nicole, vão começar a ajudar de todas as maneiras."- diz em voz baixa, quando vê a noite se fazer dia.
Entra no quarto e se olha no espelho. Despe as roupas humanas. Reflete se espelhado o contorno quase invisível de uma figura platinada com grandes asas e envolta em um manto brilhante . Desprende uma luz que se espalha mar afora e serena o sono daqueles que dormem neste dia na noite de Rochas Salgadas, cantarolando um certo poema:
Seis meses depois Nicole conhece um editor estrangeiro com quem casa e vai para bem longe do local de seus sofrimentos passados.A expressão tristonha se vai e na maleta,carrega com ela seis panos de prato encantados.
Suzana Heemann