Jurandir.

O calor acima do normal, daquele ao qual que um paulistano está acostumado, o fez levantar-se antes do horário que havia planejado. Estava ensopado de suor e havia molhado o lençol da cama e a fronha do travesseiro ao contato de seu corpo. Lembrou-se de ter lido no jornal da véspera “temperaturas médias de 28 a 30 graus no final de ano paulistano”.

Pois bem então- pensou. Nada anormal.

Meio que dormindo ainda, levantou-se e foi à cozinha. Tinha algum tempo a mais. Abriu a geladeira, mirou uma jarra de água de vidro, com o liquido gelado, límpido, a olhá-lo de volta. Observou-a por um momento, os olhos embaçados tentando focar o objeto. Pegou a jarra e tomou quase o conteúdo inteiro, de um gole só. Estava em uma ressaca brava. Que noitada meu deus- pensou, feliz consigo mesmo- dois malas a menos no mundo, um pacotaço de bagulho para vender depois e uma graninha. Muito bom!

Jurandir era soldado da Policia Militar. Estava a doze anos na corporação e era considerado, principalmente por ele mesmo, um bom policial. Por ele mesmo por que, mesmo dentre seus pares, não eram poucos os que o temiam e o evitavam sempre que possível. Não era, pode-se afirmar, um exemplo de policial, daqueles que inocentemente as pessoas comuns, cidadãos civis, idealizam.

Na noite anterior, por exemplo.

Fora a um bar no centro de São Paulo, aonde já sabia haver comércio de drogas. Sabia tudo o que havia para se saber, sabia quem eram os traficantes, sabia seus nomes, sabia o que vendiam e estimava o quanto carregavam consigo. Sabia por que arrancara toda a informação de um cliente dos indivíduos, através de métodos nada ortodoxos. Essa noite o sujeito não iria lá fazer suas comprinhas. Estava em um hospital, arrebentado, há quilômetros dalí.

Não estava fardado, óbviamente. Vestia uma calça jeans velha, uma camiseta azul comum e uma jaqueta de couro preta surrada.

Sentou-se em uma mesa, pediu bebidas e ficou, pacientemente, horas e horas, bebericando, conversando com o garçom, cantarolando as músicas que tocavam na jukebox que ficava no canto do estabelecimento. Ele próprio foi até ela e escolheu umas quatro ou cinco músicas que julgou (e torceu para) serem do gosto dos seus dois alvos, sentados em outra mesa, mais na entrada do bar. Foi assim que começou...

Um dos dois rapazes disse:

– Ê irmão, essa é da hora heim?

-Pode crê irmão, Zeca Pagodinho é foda! Gosto pra caralho.- replicou- Cê curte também?

-Ô, o veio é nervoso memo truta- o rapaz devolveu. O outro não disse nada, apenas olhou para Jurandir, sério, mas sem sombra de desconfiança.

Jurandir falou então, sorrindo- Toma uma comigo aqui véio. Quem tem um bom gosto desses aí merece que eu pague uma breja.

Ele mordeu a isca. Levantou-se e foi até a mesa onde Jurandir estava sentado. O outro não se mexeu. Vendo que um deles não se levantou, Jurandir ainda disse- Chega aí irmão, vem senta pra cá. O rapaz, com um meneio de cabeça, negou o convite.

O rapaz que gostava de Zeca Pagodinho sentou-se na mesa à frente de Jurandir e ele, servindo um copo de cerveja pro rapaz, se apresentou:

- Satisfação irmão, Adalberto- e apertou a mão do outro.

Este replicou: - Satisfação, Alberto.

Ele sabia e o nome do rapaz, por este motivo é que havia escolhido “Adalberto” e prontamente disse: -Porra, é quase meu xará- e sorriu, o rapaz retribuiu um sorriso rápido.

O traficante gostara dele de algum modo. Não era raro isso acontecer com Jurandir. No alto de seus 34 anos era um cara simpático, bem apessoado, daquele tipo “boa praça”. Os olhos azuis tranqüilos, a boca pequena, as bochechas vermelhas e o queixo arredondado formavam um conjunto harmonioso, passavam a idéia de um sujeito bonachão, bacana, meio bobo até. Talvez fora isso o que atraíra o rapaz. Pensou em tirar um dinheiro fácil do bêbado otário que ali, tão gentilmente, se apresentava.

Normalmente, exercia através da conversa e de um certo magnetismo pessoal que possuía, influência sobre as pessoas e conseguia o que queria delas. Quando não obtinha o que desejava deste modo recorria à força, e o fazia muito bem. Se não desejasse não transmitia, sobremaneira, o perigo mortal que continha em si.

A conversa entre os dois ficou animada. Jurandir gostava mesmo do artista que iniciou a conversa e não foi difícil para ele discorrer sobre as músicas, sobre um show que havia ido (e o rapaz também, por coincidência) e sobre fatos da carreira do cantor. Pediu mais cerveja e serviu ao traficante, era um rapaz novo, uns 17 ou 18 anos, e estava gostando de ser paparicado por aquele babaca.

Precipitou a falar de futebol, esperou o rapaz declarar o time de sua preferência e revelou também ser torcedor deste. Discorreu longamente sobre as contratações da diretoria, sobre o técnico da equipe e concordou com os argumentos do rapaz de que o atacante do time estava devendo para a torcida.

Durante toda a conversa, Jurandir dava a entender ao rapaz que era um cara bem de vida e que possuía bastante dinheiro ali consigo. Simulava estar mais embriagado do que de fato estava, falava alto, gesticulava e enrolava algumas palavras.

Via claramente, no rosto do traficante inexperiente, os sinais inconfundíveis da cobiça, os olhos brilhando diante da expectativa de ganhar dinheiro fácil. Como esses merdas são óbvios- pensou- duas ou três vezes, durante esse tempo.

Depois de algum tempo e de muitas garrafas de cerveja, intercaladas com doses de destilado, qualquer desavisado poderia pensar que eram dois bons amigos sentados à mesa, bebendo e divertindo-se juntos. Jurandir então resolveu dar o bote:

- Pô irmão, vô nessa! –tenho que ir até a área lá, fazer um corre.

O traficante achou que era a sua hora – Fazer um corre irmão? Qual que é?

- Ah mano, nem vou te falar. Cê é mó gente boa, pode ficar encasquetado comigo.

-Fala ai véi- O rapaz insistiu.

- Ah, quando tomo uns goró assim o diabinho cutuca manja?- sorriu pro rapaz, como quem troca uma confidência- Gosto de dá uns teco véio... Farinha.

- Só se for agora- O rapaz falou, rindo de volta- Eu tenho um baguio bom ai véi. Eu e meu primo ali fazemo uns corre aqui no centro.

-Puta mano, cê ta zuano- Jurandir falou, simulando surpresa. Por dentro sentia-se satisfeitíssimo, o predador pronto para matar a presa distraída- Tú caiu do céu então mano.

- É, temo que ganha a vida né não mano? - O traficante riu, imaginando o dinheiro que tomaria daquele trouxa. Gente fina, é verdade, mas um trouxa.- O mundo é dos espertos- pensou.

-Chega aí véi, vamos trocar idéia com meu primo ali.

Levantaram-se e, enquanto Jurandir foi ao caixa pagar a conta o rapaz foi até o outro que estava sentado e cochichou no seu ouvido. Jurandir sabia que os dois pretendiam assaltá-lo, sumir do bar durante um tempinho e pronto. Imaginou que, com a idéia que faziam agora dele, nunca imaginariam que ele pudesse voltar para protestar, fazer qualquer retaliação ou criar qualquer problema aos dois. Ele era só um otário, um otário com grana, que queria se drogar e caiu no lugar errado. Uma presa fácil. Viu quando o outro traficante que estava sentado assentiu com a cabeça e, olhando para ele, sorriu. Sorriu de volta, um sorriso mais ingênuo que podia dar. Teve a certeza do que imaginara. A satisfação estava estampada no rosto do primo.

Pensou então no próximo passo. Certamente nenhum dos dois estava armado ali, era arriscado demais. Eles deviam ter uma arma escondida ali por perto, em lugar seguro, aonde certamente também estaria a droga. Sairam juntos os três do bar, Jurandir conversando com seu mais novo “amigo”, o primo andando um pouco mais a frente. Caminharam durante um tempo e, em um lugar um pouco menos iluminado, em uma praça, o primo foi em direção a um coreto antigo que ali havia.

- É isso- Jurandir pensou- Esperou mais alguns segundos para ver exatamente onde estavam escondidas as coisas pelas quais estava ali. O rapaz chegou perto de um buraco na lateral do coreto e abaixou-se.

Agora!

Jurandir sacou a Taurus PT .40 S&W que estava alojada entre seu cinto e suas costas e disparou o primeiro tiro na rótula do joelho direito do fã de Zeca Pagodinho que encontrava-se ao seu lado. Antes deste cair, e do primo virar-se para ver o que acontecia, o segundo estampido, e a segunda bala disparada foi alojar-se na nuca dele, que tombou morto, com um baque seco.

Jurandir sabia instintivamente que não precisava incomodar-se mais com aquele. Fora um tiro perfeito. Olhou então para o “amigo” que fizera a pouco e sorriu, pela primeira vez, como o predador que era, os olhos de sangue, olhando para a presa. O rapaz estava pasmo, como que não acreditando no que estava acontecendo. Berrava de dor. Jurandir percebeu que ele compreendeu o erro de julgamento que cometera e ficou especialmente satisfeito com isso.

Caminhou até onde o primo caíra e, abaixando-se na direção para onde este ia, descobriu um buraco com um pano enfiado o tapando. Retirou o pano e viu que tinha razão. Lá estavam um saco plástico com diversos papelotes de cocaína e ao lado um revólver velho, calibre 38, com fita isolante enrolada na coronha e a numeração do cano raspada. Colocou o saco plástico no bolso interno da jaqueta e, com a arma dos traficantes ainda na mão, caminhou até o corpo do morto. Revirou seus bolsos e retirou o dinheiro que havia, uns R$800,00 ou R$1.000,00 em notas de R$50,00, calculou por cima, mais uma porção de cédulas de R$10,00 e de R$20,00.

Bom- pensou.

Andou até o novo “amigo” que não podia mover-se e, durante este tempo todo, havia gritado com a dor lancinante que o afligia. Olhou para o joelho estourado, o traficante caído como um boneco, sobre a própria perna, dobrada para trás.

Como não desmaiou esse puto?- Pensou. Chegou perto dele e disse:

-Sou tira, seu puto... Tira! E deu um chute em cheio no rosto do rapaz, sentiu o maxilar deste deslocar-se ao impacto. O rapaz deu um gemido horrível. Chorava copiosamente, balbuciando – Não senhor, não. Me deixa viver.

- Temos que ganhar a vida filho da puta, não é isso? – disse, rindo, feliz de ver a miséria e a aflição do rapaz aos seus pés- Hora de nanar vagabundo.

Com a própria arma dos traficantes deu dois tiros na cabeça do suplicante que ainda levou as mãos a frente, como que buscando se defender dos projéteis. Em cheio. O rapaz tombou e fez-se silêncio. Jogou o .38 no colo do morto e pôs-se a andar para longe dali, em júbilo. Sentia-se excitado, estava vivo, como nunca. Foi para casa e ainda deu conta de quase meia garrafa de whisky enquanto contava o dinheiro dos traficantes e pensava quanto valeria as drogas que tomara.

Agora, de manhã e sentindo os efeitos desagradáveis da ressaca, lembrava-se destas cenas enquanto preparava seu desjejum. Pegou 04 ovos brancos e quebrou-os numa tigela. Acrescentou leite e os bateu com um garfo até ficarem espumosos, enquanto acrescentava sal e pimenta do reino com a outra mão. Acendeu o bico do fogão aonde pôs uma frigideira e uma colher de manteiga para derreter. Sem que a manteiga estivesse completamente derretida, lançou à frigideira 03 grossas fatias de bacon defumado.

Após alguns minutos, com o bacon crocante e o os ovos já cozidos, mas ainda macios, retirou a mistura do fogo colocou-a em um prato e foi sentar-se à mesa.

Comeu vagarosamente, com calma e método. Enquanto fazia isto, foi sentindo progressivamente a melhora de seu estado. Os ovos mexidos, insossos no começo da refeição estavam tomando sabor. Sentia o gosta do suco de laranja. Estava indo bem. Preciso apenas de um bom banho agora- pensou.

Terminou a refeição, levantou-se, colocou o prato e os talheres dentro da pia na cozinha estilo “americana”, e dirigiu-se ao banheiro. Despiu-se, observou-se no espelho. Os frios olhos azuis observaram a imagem no espelho durante alguns segundos. Não pensou nada acerca de si mesmo (isto está bem, isto não, tenho que emagrecer, etc..), não possuía vaidade física, não tinha preocupações com esses assuntos. Era magro, esguio, porém forte, e sentia-se satisfeito consigo mesmo.

Entrou sob a água e lavou-se de maneira precisa durante meia hora. Barbeou-se minuciosamente no banho, com a ajuda de um espelho anti-embaçante, pendurado dentro do Box do chuveiro. Enxugou-se. Sentia-se bem agora, novo em folha.

Bem, mais um dia de trabalho- disse em voz alta, para o quarto vazio.

Vestiu sua farda. Estava pronto.

Saiu.

L>K