Situação de clichê
A cabeça dói, as têmporas latejam, a boca está amarga, devo ter bebido além da conta, mas não me lembro. O sol entra pela janela do quarto, bate no meu rosto, me força a fechar os olhos, que ardem. Bocejo demoradamente, faço forças para sair da cama. Vou ao banheiro e me olho no espelho. As lembranças vêem a tona. Eu estava ontem à noite do bar do cassino Nautic`s, bebendo cerveja preta, só me lembro disso, um flash tímido de memória. Depois vim para este hotel. Apartamento 666. Estou esperando Susane. Ela disse que viria. Que horas são? Olho no relógio, 22 horas. Que estranho a data do relógio está adiantada uma semana. Que coisa. Mudo de 24 para 17. devo ter batido o relógio e algum lugar e desregulado o mecanismo. Bem, não importa.
Do apartamento 666 eu vejo apenas a garagem, carros velhos, paredes descascadas pelo tempo. Volto-me para o espelho, faço a barba sem pressa, poucos pelos, dispersos e grossos, um bigode ralo, oriental e desleixado. Penteio o cabelo, visto a roupa, passo perfume e desço as escadas em direção ao bar. Espero por Susane. Já faz alguns meses que não a vejo. Foi meu primeiro amor, coisa do tempo da escola, ainda sinto seu perfume, o toque de seus dedos macios, a rigidez de seus mamilos o gosto de champanha de sua boceta e por ai a fora . Droga, ela está atrasada. O relógio marca quase meia noite. O celular vibra. É Susane, diz que vai se atrasar mais alguns minutos. Talvez uma hora.
Paciência.
Vou para a sala de jogos. Muitos homens vestindo smokings, fantasiados de pingüins. Boa cena para um conto, imagino. Já vejo o conto se movendo, as palavras chegando, saltando na folha em branco. Eu uso uma velha Olivetti, uma das minhas mais antigas paixões. Mais antiga até mesmo que Susane. Droga, essa mulher que não chega nunca.
Mais paciência.
- Um uísque com gelo.
Sinto-me também um personagem de um conto, tal como os homens vestidos de pingüins. Bebo devagar. Uma moça se aproxima com um livro. Meu último livro.
- Poderia autografar para mim?
Ela me pede com um sorriso de derrubar o mais sádico dos carrascos.
- É claro, minha flor.
A moça se vai. Fico com meu uísque com gelo. Onde estará Susane? Se fosse outra mulher qualquer eu não esperaria, mas é Susane.
Meia noite.
Meia noite e meia
Nada de Susane.
Resolvo jogar pôquer com os pingüins. Compro fichas. Sento-me em uma das cadeiras vazias. Os minutos passam. Tenho um Straight Flush, logo na primeira mão, quem diria.
- O pôquer é um jogo do demônio.
Um dos meus personagens disse isso em um dos meus últimos livros, agora repito para os pingüins, mas me ignoram, acho que não leram o meu livro.
- Pôquer é um jogo para pingüins. - Digo para mim mesmo.
Saio da mesa e vou procurar alguma coisa pra fazer enquanto os ponteiros do relógio apostam corrida com o trêm bala.
- Ei Adam. - Me chama o cara do bar
Meu nome é Adam, mas não igual ao alter-ego do He-Man, sim como Adam Smith, o economista. Meu pai gostava dele. O admirava profundamente devo confessar, por isso me deu o nome. Meu pai concordava com aquilo que o economista disse sobre o padeiro e o dinheiro e aquela coisa toda sobre lucro e amor. Pois é. Meu pai não era economista, era padeiro mesmo. Vou até o garçom.
- Aquela moça deixou isso pra você.
Ele me entrega um envelope.
- Que moça?
- Aquela com o livro.
- A do autógrafo?
- Essa mesma.
Abro o envelope, há apenas um bilhete. Poucas palavras.
O marido de Susane descobriu tudo. Se quiser saber toda a verdade me encontre na esquina da K com a Ruiz as 3 dessa madrugada. Traga os originais do livro que está escrevendo, você e o livro correm perigo.
R.
Quem é R? não entendo nada. Então Susane é casada? Quem diria. E que história é essa de originais, que historia é essa que eu corro perigo? Quem seria a moça do autógrafo? Alguma criminosa? Com aquele sorriso
impossível, ou não? Uma da madrugada. Falta ainda duas horas pra pensar. Tentar entender o que está havendo.
Na sala de jogos os pingüins fumam charutos. Que coisa mais démodé. Tudo é um enorme clichê. Os pingüins, o pôquer, o uísque com gelo, esse parece ser o pior de todos, a não ser talvez o número do quarto, a referência ao perfume de Susane e ao toque de seus dedos e tudo o mais em relação a sua ausente pessoa. Até o meu próprio nome cheira a clichê neste instante. E o fato de ser escritor piora significamente a situação.
Essa é realmente minha vida, ou eu a estarei lendo em algum lugar? E se for assim quem terá escrito obra tão decadente e sem estilo, uma prosa piegas, o lugar comum que sufoca os personagens em clichês gritados de todos os cantos.
O que quer dizer o bilhete? E se não quiser dizer nada? Leio novamente, tem que querer dizer alguma coisa. Ninguém escreveria um bilhete que não quisesse dizer nada, ou escreveria? Uma e meia, acho que o trem bala está perdendo a corrida.
Como escapar de uma situação de clichê como essa? Olho ao redor e não acho resposta para nada.
Saio para a rua. Silêncio. O céu está escuro. Alguns minutos e a chuva desaba. Chuva, mais um clichê clássico.
Um carro pára na calçada. O motorista abre o vidro. Cigarro aceso, me chama.
- Sr. Adam, O escritor?
- Sim.
- Encomenda para o senhor.
O motorista então me entrega uma caixa, sai cantando pneus, lá vem clichê. Abro a caixa e dentro dela há uma um objeto embrulhado em seda vermelha, seda vermelha, chegamos ao fundo do poço com os clichês. De repente me sinto preso dentro de um conto mórbido, aonde as cenas vão se alternando sem lógica alguma, meramente ao sabor dos mais variados clichês. Enrolado na seda vermelha há uma arma, uma pistola semi-automática e um bilhete.
Leve isso junto com os originais. Você vai precisar.
R.
R. de novo, quem seria? Que espécie de loucura seria essa? Aonde iriam me levar tantos clichês? Dever ser um sonho. Sim, só pode ser isso. Mas já que estou preso nesse manto de clichês cometo mais uma, acendo um Marlboro com meu isqueiro zippo americano.
Por que o original do livro? É uma história ainda no começo. Apenas a história de um escroque chamado Roberval. Jogador de pôquer, trapaceiro, vive de pequenos golpes, bebedor de uísques, conhaques, vodcas e pingas. Sim, muitas pingas. Pingas brancas, amarelas, das mais diversas cores e mais diversas misturas. Roberval não se veste de pingüim, mas também fuma charuto enquanto joga no pano verde, outro clichê. Ele usa suspensório. Parei na cena em que ele leva um tiro durante uma partida de pôquer em um cassino clandestino e barra pesada.
A placa da esquina marca K com a Ruiz. É bem aqui o lugar do encontro. Vim parar aqui sem querer, coincidência, não pretendia vir de fato a encontro nenhum, compactuar com uma loucura dessa, imerso em um banho gelado dos mais diversos clichês. Mas cá estou, então paciência. Fumo devagar, não poderia ser diferente, já que de alguma maneira inconsciente estou farejando uma trilha de clichês. Três horas. Um carro preto pára ao meu lado. O vidro se abre. A porta se abre. Sai um homem enorme, todo vestido de preto.
O homem me obriga a entrar no carro. Fico sentado entre ele e um outro homem também de preto, só que maior e mais carrancudo. No volante um homem magro e a seu lado, no banco do carona, uma loira de batom vermelho e olhos azuis.
Situação de clichê, não resta mais a menor dúvida.
- O que você sabe?
- Sobre o que?
- Sobre ele.
- Ele quem, meu Deus?
- Seu Deus não tem nada a ver com isso. O que você sabe sobre Roberval?
- Mas que é esse Roberval?
- Você está escrevendo um livro sobre ele.
- Onde estão os originais?
- Eu não trouxe.
- Vamos buscar.
O magrela ao volante faz o retorno na esquina, chega a subir na calçada, imagino que não podia ser de outra maneira. A chuva aumenta, as gotas enormes socam o teto do carro. Quando chegamos minha casa está toda revirada, as coisas jogadas no chão, os livros, os móveis, as gavetas vasculhadas, louça quebrada, e os originais do livro desaparecerem.
- Alguém esteve aqui.
- Parece obvio.
Situação de clichê. Parece um pesadelo. Faço força para acordar, mas não adianta, estou preso no sonho, se é que isso é realmente um sonho, um pesadelo, um delírio, já não sei o que pensar. Os homens enormes procuram alguma coisa no meio do caos que varreu minha sala, mas nada pode ser encontrado.
- Os originais foram roubados.
- Quem teria feito isso?
- Roberval, provavelmente.
- Mas ele é somente um personagem.- Eu digo.
- Você não sabe de nada.
Os dois gorilas me arrastam para fora da casa. O magrelo tira do porta-malas do carro dois galões com algo que presumo ser gasolina, no melhor dos clichês dos filmes de gangster, e joga sobre a bagunça da sala, derrama sobre os moveis, molha tudo o que vê pela frente até que os galões ficam completamente secos e o cheiro de gasolina invada tudo, inclusive meus pulmões.
- Onde está seu zippo americano.- A loira me pergunta.
- Não tenho.
- Claro que tem. Zippo é um clichê clássico.
O mais forte dos dois brutamontes tira o isqueiro do meu bolso e joga para a loira. Ela tira uma cigarreira dourada de dentro da bolsa. Acende um Free e traga profundamente. Acende a chama do isqueiro mais uma vez e então o atira pela janela aberta. Sou arrastado para dentro do carro enquanto o fogo avança e destrói o meu lar.
- A noite vai ser longa.- Diz a loira ainda fumando lentamente seu Free.
Free é mesmo cigarro de mulher, ou seria apenas mais um dos incontáveis clichês dessa madrugada?
- E agora como vou fumar sem o meu zippo?
Na verdade eu deveria estar mais interessado em onde e como vou morar, já que minha casa foi incendiada por um bando de malucos em um carro preto, que estão a procura de uma cara que só existe, até que me provem o contrário, dentro do meu ultimo livro, e que pra piorar o tal livro, ainda inacabado foi roubado. Esqueci algum dos clichês e acontecimentos bizarros das últimas horas?
- Pare de fumar. Cigarro faz mal pra saúde, nunca te falaram isso?
Diz o maior dos brutamontes enquanto explode um uma gargalhada que só pode ser comparada a risada de uma criança, uma menina de oito anos, loira e com os cabelos presos com lacinhos, para ser mais exato.
- Me fale sobre a história. - Pede a loira.
- Que história?
- A história que está escrevendo.
- É um faroeste moderno, sabe come é, uísque com gelo, pôquer, charuto, moças loiras, sem alusões as pessoas presentes. - Neste ponto pisco para ela, que faz uma careta que desencoraja a fazer qualquer outra piadinha. - A história é cheia de putas, cafetões, cabarés, cawboys, escroques, como é o caso de Roberval, ele é traído pelos amigos, que não são tão amigos assim pelo que se vê, parceiros de carteado, atiram nele durante uma partida de pôquer.
- O que mais?
- Por enquanto só. Parei nessa cena da traição.
- Mas como termina.
- Eu não sei. Vou escrevendo sem premeditação.
- Ao sabor dos clichês?
- Mais ou menos.
- Li seu último livro. - Diz o maior dos brutamontes.
- Espero que tenha gostado.
- Obrigado, admiro os leitores sinceros e sensíveis.
- Tem cavalos no seu faroeste moderno? - A loira quer saber.
- Não.
- Motos?
- Sim.
- Estamos chegando. - Diz o magrelo ao volante.
- Vocês destruíram minha Olivetti.
Ninguém diz nada. Só então me lembro de Susane. O que terá acontecido com ela?
- O que aconteceu com Susane?
- Está escondia em um lugar seguro.
- O que ouve?
- Roberval descobriu tudo.
- O que tem a ver Susane com o personagem do meu livro?
- Eles são casados. Susane e Roberval.
- Isso é loucura.
Nada disso pode estar acontecendo. Deve ser um pesadelo. Inexplicável situação de clichê.
- Quem são vocês, afinal? - Eu quero saber.
- Estamos à procura de Roberval.
- E o que eu tenho com isso?
- Você é o contato.
Insuportável situação de clichê. Isso só pode ser um sonho, ou um filme velho emperrado dentro da minha memória, uma daqueles clássicos de suspense ainda em preto e branco, não sei. Talvez um filme de Antonioni, mas se fosse não haveria esses clichês. Um clássico qualquer de Kubrick, cheio de situações inusitadas, talvez, mas onde está o estilo marcante do grande cineasta? Não, Kubrick não é. Uma história de Kafka, quem sabe? Não, também não. Tendo por a cabeça em ordem. Como foi que tudo isso começou? Com o telefonema de Susane. Depois o uísque com gelo, não devia ter tomado aquele primeiro clichê. Mas tomei, paciência.
- Para onde estão me levando.
- Logo vai saber.
Então me lembro da arma. Não me revistaram, a arma ainda está na minha cintura. Sinto, de repente, todo o frio de seu aço contra a minha pele. O bilhete dizia que eu ia precisar. Mas quem teria escrito aquele bilhete. Quem seria R.?
De repente o carro pára.
- Chegamos. - Diz a loira.
Vejo uma casa enorme. Não, não é uma casa, é uma igreja. Uma escadaria enorme. Sou arrastado degraus acima. O maior dos godizilas entra chutando a porta da igreja. Um padre fuma charuto sentado no púlpito, pernas cruzadas, cavanhaque, óculos e mais um ou dois clichês de rotina na vida dos padres, que, aparentemente, são vilões de histórias bizarras, como essa parece ser até agora.
- Atrasados. - Diz o padre.
- Os originais foram roubados.
- Merda! - Diz o padre.
- Este é o padre Salvador. - Diz a loira.
- Salvador?
- Sim, posso salva-lo do fogo do inferno, meu filho. - O padre ri.
Fico sem saber o que dizer. Mas o que poderia dizer diante de tamanho clichê?
- Fuma charuto?
- Os vilões fumam charuto, isso é um clássico.
- Meu filho, isso não é um conto de Rubem Fonseca, é a vida real. E na vida real só a um vilão; o tempo. Já deve ter ouvido falar.
- Sim, já ouvi, isso faz de você um plagiador.
- Literatura. Somente literatura nada mais que isso.
O padre gargalha como um bom vilão de filme B. Engasga com a fumaça.
- Querem beber alguma coisa?
- Não temos tempo. - Diz a loira.
- O que vão fazer agora?
- Falar com o Sr. X.
Neste instante essa situação de clichê atinge um estado crítico, se tudo fosse uma bomba explodiria neste exato momento. Senhor X? Esse é o cúmulo do piegas. Já não é mais clichê, beira ao ridículo. Só pode ser um pesadelo, não há outra explicação.
A loira então beija o padre na boca. Tudo pra mim vai perdendo o sentido, perdendo as cores, os sons. Sinto que vou perder os sentidos. Tudo fica escuro e imóvel. Desmaio.
* * *
- Acorde Adam.
Alguém bate no meu rosto. É Susane. Acordo e me encontro completamente nu em meio à nave da igreja. O padre Salvador está caído a alguns metros.
- O que houve Susane?
- Não sei direito.
Minhas roupas desapareceram. Caminho até o padre Salvador. Ele está morto em meio a uma poça de sangue. A arma que eu trazia está jogada a alguns metros do corpo. Há uma batina sobre o púlpito. Visto-a. Está frio. Ouço a chuva batendo no teto da igreja. Apanho a arma. Susane está fumando Free, igual a loira.
Situação de clichê. Ou será apenas coincidência?
- Por onde você andou?
- Fui pega e me obrigaram a ligar para você.
- Que diabos está acontecendo?
- Não sei.
Ela caminha em direção a porta.
- Aonde vai?
- Quero descobrir o que está acontecendo.
- E como vai fazer isso?
- Sei para onde foram.
- E como sabe?
- Ouvi uma conversa.
- Vou com você. Preciso encontrar os meus originais.
Susane entra no carro. Monza preto. Mais um carro preto. Sento-me no banco do carona.
- Me dá um cigarro. - Peço.
- Free?
- Não é cigarro de mulher?
- Isso é um clichê ordinário, só isso.
- Sei.
- Como veio parar aqui?- Ela pergunta.
- Fui agarrado na esquina da K com a Ruiz.
- O que aconteceu na igreja?
- Não sei direito. Desmaiei quando a loira beijou o padre.
- Que nojo.
Trago o cigarro e também me engasgo com a fumaça.
- Não viu quem o matou?
- E aquela arma?
- Era minha.
- Sua? Nunca soube que você tinha uma arma.
- Não tinha. Entregaram-me em uma das esquinas entre o hotel e a K com a Ruiz.
- Quem entregou?
- Um cara num carro preto.
- Muito estranho.
- É, pois é, é uma situação de clichê.
- Como assim?
- Não percebe Susane, nada disso pode ser real. Você é casada?
- Sim.
- Como se chama seu marido?
- Roberval, por quê?
Minha cabeça começa a girar, não é possível, nada disso pode estar acontecendo, sinto que vou desmaiar de novo. Vontade de vomitar.
- Pára o carro, Susane.
- Ela freia. Abro a porta a tempo de vomitar na calçada. A cabeça gira, sinto que vou mesmo desmaiar.
- Calma Adam, respira devagar.
Não, não pode ser real, é só isso que consigo balbuciar antes de sentir a visão se embaçando e o escuro profundo de aproximando cada vez mais.
- Não desmaie, Adam.
Silêncio, profundo e gutural.
Acordo com o carro já em movimento. Estou deitado no banco de trás. Há uma moça de cabelos vermelhos, sentada no banco do carona, ao lado deSusane, masca chicletes ruidosamente.
- Acordou Cinderela?
- Não era a Cinderela que dormia, era a Bela Adormecida.
- Bah, tudo igual.
- Essa é minha amiga Natacha.
- Você é puta? - Pergunto para Natacha.
- Sim, como sabe?
- Deduzi, clichê clássico.
Ela não diz nada. Susane não diz nada. Então só me resta dizer alguma coisa.
- Quem é o Sr. X? - Pergunto.
- Ninguém sabe. - Diz Natacha.
- Como assim? Alguém tem que saber.
- É um mito, uma lenta, é como um fantasma. Controla o jogo daqui até Manaus, a prostituição, tem cassinos clandestinos, corrida de cavalo, de cachorro, rinha de galos, é uma espécie de Capo italiano.
- Meu Deus. - diz Susane.
A mim nada mais surpreende, um clichê a mais um a menos, se ela me dissesse que era Victor Corleone em pessoa, que motivos eu teria para duvidar? Estou, à uma hora dessas, preparado para tudo.
- Como se encontra ele?
- Você não o encontra, ele te encontra.
Eu devia saber. Que inocente eu sou pra fazer esse tipo de pergunta para uma puta de cabelos vermelhos em uma noite absurda, cheia de cenários pitorescos, cheia de diálogos roubados de um gibi do Dick Traice, inundado de clichês tão ordinários quanto solados de um chinelo velho ou de uma novela mexicana cheia de personagens com nomes compostos. Avançamos cada vez mais, ou melhor mergulhamos cada vez mais nesse abismo surreal e mórbido, nos inveredamos ainda mais nessa situação de clichê, que a muito já saiu de qualquer controle.
O que terá os originais do meu livro a ver com tudo isso? Quem é Roberval, afinal? O que todos estes homens de roupas pretas, carros pretos, querem comigo e com meu livro? Quem é R.?
- Pra onde estamos indo?
- Calma, já estamos chegando.
Olho no relógio, quase quatro da madrugada e ainda está chovendo muito, as gotas estão enormes, surram o pára-brisa do monza. Sinto os olhos arderem, estou com sono, não deveria ter saído daquele quarto de hotel.
Susane pára o carro, ruas escuras, mulheres seminuas nas esquinas, por todos os cantos, travestis, o cheiro do mar se alastra carro a dentro, invade minhas narinas, a maresia invade meu cérebro e embrulha meu estomago. Desço do carro e vejo um bar aberto, caminho na chuva, preciso comprar cigarro, fumar Free é como não fumar nada, embora fumar nada resolveria alguns problemas de saudade como por exemplo um câncer de pulmão eminente. Compro cigarro, tomo uma dose de vodca. O bar está deserto, apenas eu e o cara que me atende, a TV está ligada, chuviscada, chiando feito uma panela de pressão ou como um lutador de boxe no final do ultimo assalto, não consigo diferenciar, mas consigo entender o que o âncora do telejornal diz.
Âncora-
O crime se deu nessa madrugada, por volta das três da madrugada, testemunhas que estavam de passagem pelo local afirmam ter visto um homem vestido de padre, saindo da igreja, acompanhado de uma mulher alta. Ao vivo direito da cena do crime está o nosso Roberto Ernesto Garcia.
A imagem corta para a fachada da igreja para onde eu fui arrastado pelos dois gorilas, pelo magrelo e pela loira, alguns curiosos estão na frente da igreja, uma pequena aglomeração e alguns carros da policia. O repórter enche a tela, bombástico, como todo repórter em cena de crime.
Repórter-
Estamos ao vivo direto da igreja de Cosme, no Largo do Bloco, onde o padre da paróquia, Salvador Resende e Souza, foi assassinado brutalmente e a queima roupa, com um tiro na nuca. Segundo a polícia trata-se de uma execução ou queima de arquivo. Testemunhas que passavam na área na hora do acontecido, entre 3 e 3 e meia, dizem ter visto um homem vestido de padre, saindo com uma pistola nas mãos, acompanhado de uma mulher alta, os dois deixaram a cena do crime em um monza preto com placa de Santos.
A câmera mostra o padre sendo retirado pela policia em um daqueles sacos pretos e colocado dentro do carro da funerária.
Repórter-
Há uma suspeita da policia de que o criminoso em questão se trate do escritor Adam Smith, que parece ter sido reconhecido por uma das testemunhas. Mas o que levaria esse conhecido escritor de nossa literatura a cometer tal crime e quem seria a moça que o acompanhava. Vamos falar com uma das testemunhas. Senhor Astolfo Ribas o que realmente o senhor viu?
Astolfo Ribas-
Vi o homem saindo da igreja junto com uma mulher muito gostosa, alta, peituda, desconfio que aquilo seja silicone. Mas o homem eu reconheci, mesmo vestido de padre, era o tal escritor Adam Smith, li um livro dele uma vez e dei uma olhada na foto da contracapa pra nunca mais ler nenhuma das porcarias que ele escreve.
No momento que dou as costas e saio para a chuva a TV está mostrando uma foto minha. Essa situação de clichê está ficando cada vez pior, agora além de tudo sou suspeito de ter assassinado um padre. Era só o que me faltava acontecer.
As luzes amarelas e pálidas dos postes denunciam o lugar, estamos no porto. Vejo as dezenas de centenas de conteners espalhados para todos os cantos, de todas as cores, azuis, vermelhos, verdes, amarelos, brancos. Susane está fumando encostada no carro. Natacha está falando com um travesti debaixo de um poste na esquina.
- Estou na TV.
- Como assim?
- Alguém nos viu saindo da igreja. Viram-me com uma arma. E teve um babaca que me reconheceu.
Natacha se aproxima com o travesti, seus cabelos vermelhos escorrem água, a chuva está muito forte, não sei como o cigarro de Susane não se apagou, mistérios do clichê, fumar na chuva é um dos mais mágicos.
- Essa é Claudia. Ela conhece tudo por aqui. - Diz a ruiva.
Claudia, eu devia saber.
- Quem é o padre?
Ainda estou de batina, somente agora me dou conta, a situação é mais ridícula do que eu imaginava. Um clichê a mais ou um a menos já não faz diferença alguma a uma altura dessas da madrugada.
- Ele não é padre. É uma longa história.- Esclarece Susane.
Claudia está de salto alto, saia de borracha, meias calças, uma coisa, cabelos presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça, parece aquele ser do filme Quinto Elemento que gritava Meu homem! Com uma voz de taquara rachada.
- Já sei onde fica o armazém. - Natacha diz para Susane.
A partir daí começamos a nos esgueirar por toda extensão das docas, um verdadeiro labirinto de construções faraônicas e tão antigas quanto a própria pirâmide de Queóps, restos de barcos, por um momento me sinto preso dentro da Guernica, aquele quadro de Picasso que é uma bagunça dos infernos, dizem que ele quis representar a batalha de Guernica, importante episódio da guerra civil espanhola, mas no muito representou um acidente de carro na Marginal. Na neblina se vêem tratores, guindastes, alguns bêbados, algumas putas, que cumprimentam, de quando em quando nosso guia, o cheiro do mar vai ficando cada vez mais forte, embrulha cada vez mais o meu estômago.
Claudia de move como um esquilo, é um exercício digno de atleta olímpico segui-la nessa neblina, se embrenha pra e pra cá, parece se tratar de um verdadeiro labirinto úmido e escuro e como a madrugada é de clichê não me espantaria muito dar de cara com o Minotauro.
Chegamos, até que enfim, ao tal armazém. Uma construção enorme, com janelas pequenas e bem altas, de onde vaza raios de uma luz pálida, o prédio é todo feito de tijolos a vista, liquens cobrem a maioria das paredes.- É aqui. - Diz o travesti.
- O cara na TV disse que seus seios são silicone.
- Mentira, tudo original de fabrica.
- Silêncio. -Sussurra Natacha.
O que estamos fazendo aqui? Que loucura é essa, afina? Onde Susane está com a cabeça, para nos meter em uma situação dessa, sem pé e nem cabeça? Claudia faz sinal para que a sigamos, ela se esgueira ao redor do prédio, até chegar a uma porta mais ao fundo. O cheiro do mar envolve tudo ainda mais e começa a enferrujar meus movimentos e entorpecer ainda mais os meus sentidos. A porta está destrancada, como alias não poderia ser diferente, já que a situação é de clichê. Destrancada como toda boa porta dos fundos de um armazém infectado de vilões de um filme velho da Sessão da Tarde. Quem serão os vilões dessa trama, a espreita dentro desse armazém? O vilão é o grande ícone da literatura pop, desde os romances de épocas remotas à telenovela brasileira exportada para o mundo inteiro, todo mundo quer ver seu fim trágico, querem que o vilão termine preso, morto, louco, que ele pegue fogo e todo o destacamento do Corpo de Bombeiros esteja de férias no Caribe, sei que é um clichê, mas também desejo isso.
Entramos em silêncio, fila indiana, Claudia na frente, atrás dela Susane e logo depois eu. Tudo escuro, centenas de caixas empilhadas, pilhas que vão quase até o teto, mais um labirinto escuro e úmido. Estamos ensopados, minha batina pinga água, deixa um rastro atrás de mim, quase uma enxurrada. Ouvimos vozes vindas além de uma porta fechada. Claudia experimenta a maçaneta e a porta está destrancada. Presto atenção nas vozes. A TV está ligada, espio, um filme em preto e branco, quase azulado invade a tela, jogando uma luz opaca por todo o cenário, onde dois homens estão sentados em cadeiras espreguiçadeiras.
De repente, lá fora, um ruído metálico, um cantar de pneus e logo em seguida o som de portas de carro sendo fechadas com extrema violência. Os dois homens se levantam de um único salto, sacam suas armas e ficam alertas de frente para uma porta em uma das extremidades do cômodo.
A porta se abre e a loira entra, a mesma que fumava Free, o cabelo está molhado, o vestido negro está colado ao corpo, desenhando uma silhueta perfeita, como se fosse um manequim de vitrina de butique de roupas da Prada , logo atrás dela o magrelo entra também segurando uma arma, entram também os dois gorilas arrastando um homem da mesma forma deselegante e truculenta como faziam comigo a mais ou menos uma hora atrás. Os dois homens que assistiam TV abaixam as armas e voltam para suas cadeiras.
- O assassinato do padre já saiu na TV. - Diz um deles, já reconfortado em sua espreguiçadeira.
- Culparam o escritor.- Emenda o outro.
- Ótimo, melhor que a encomenda. - Diz a loira.
- Amarre-o na cadeira. - Diz o magrelo para os dois King Kong`s.
Eles amarram o homem na cadeira.
- É Roberval! Eles o pegaram. - Cochicha Susane no meu ouvido.
- Vamos ficar escondidos aqui? - Pergunta o travesti.
- Vamos esperar. - Diz Susane.
- Merda de chuva. - Diz a loira vestindo seu Prada molhado.
- Por quê mataram Salvador? - Pergunta um dos homens sentado em sua espreguiçadeira.
- Ele estava muito mal vestido. Um crime de moda. Não merecia viver. Onde já se viu, batina e óculos escuros. Um horror. - Diz a loira.
Todos gargalham menos Roberval, que está amordaçado e amarado na cadeira, parece meio grogue. Ouço passos, um estalido seco e uma insuportável dor na nuca. Tudo escurece.
* * *
Acordo. Ainda estou meio tonto. O estomago roda, as têmporas latejam. Um tapa estala com força no meu rosto, isso faz com que eu acabe de despertar. A dor aviva minhas sensações, aguda, visceral e corrosiva. Estou amarrado a uma cadeira, ao meu lado está Roberval e mais para a esquerda o travesti além dele está Susane, ainda desmaiada, amarrada em uma outra cadeira. Os dos homens agora estão de pé, já que suas espreguiçadeiras foram usadas para amarrar Susane e o travesti mais confortavelmente.
Começo a entender o que houve, fomos surpreendidos em nosso esconderijo, o que é um clássico clichê. Mais alguns homens estão ao nosso redor, além de todos aqueles que já se encontravam no armazém. Além dos dois godizilas, os dois que estavam nas espreguiçadeiras, além da loira e do magrelo. Pelo menos mais seis homens a mais.
Ainda chove lá fora.
-Acordou Fernando Pessoa? - Diz a loira, tentando ser sarcástica.
Ela não consegue, quando no muito consegue ser desagradável, mas isso não beira aquele sarcasmo piegas que os vilões dos filmes B despejam sob os mocinhos, quando estes estão amarrados em cadeiras espreguiçadeiras e cercados por gangster por todos os cantos em um velho armazém abandonado nas docas. De modo que a loira deve estudar um pouco mais de arte dramática. Ela poderia ter citado qualquer um, então por que logo Fernando Pessoa? Por quê não Loyola ou Sabino?Além de péssima atriz a loira parece não ser dada a grandes leituras.
Batem na porta.
- Quem é?
Ouve-se uma tosse cavernosa, seguida de pelos menos uma dúzia de espirros violentos.
- Essa tosse e esses espirros. Só pode ser ele. - Diz o magrelo.
Um dos gorilas abre a porta. Um homem muitíssimo parecido com um ursinho game entra, acompanho de mais trogloditas. Os trogloditas reunidos nesse armazém, figurantes dessa cena clássica de cinema ruim, juntos já formariam um time de futebol americano. Todos eles vestidos de preto. Se montássemos um time o problema dos uniformes já estaria resolvido. Todos fazem silêncio enquanto o ursinho game entra. Pela cara dele me parece se tratar do Bronquinha.
- Aqui está o homem , chefe.
- Ola Roberval, quanto tempo.- Diz o ursinho game made in China.- Você me fez sair de casa na véspera do natal. Isso é muito grave.
Do que esse homem está falando? Ainda falta uma semana para o natal. Ele deve ter batido a cabeça e desregulado algum mecanismo igual aconteceu com meu relógio. Ou será que o relógio não estava desregulado e hoje é véspera de nata? Não, não é possível. Seria loucura até mesmo para uma situação de clichê, como é o caso em questão. Sendo assim para onde foi a semana que falta entre dia 17 e dia 24? Mas já é mais de meia noite e se fosse o caso já seria natal. Quando bobagem. Com certeza o ursinho game deve estar bêbado.
- Daqui a pouco é natal e eu estou aqui.
Situação de clichê cada vez pior. Pior que um conto ruim. Apenas um quadro perdido entre a falta de sutileza do cubismo e anemia do andaluz. Um apanhado de acontecimentos inusitados e confusos. Um filme de ruim de Kubrick, embora não me conste em lugar algum tal coisa.
- Onde está o original do livro?
- Foi roubado.
- O código está desaparecido.
- Está inda dentro da cabeça de Roberval.
- Não está mais. - Diz Roberval.- Quando passei para a cabeça do escritor tive o cuidado de apagar da minha mente.
O que está acontecendo? Que história é essa? Do que estarão falando todos esses malucos?
- Quem roubou o livro?
- Não sabemos.
- Está na cara que foi Roberval.
- Não roubei nada. Não me serviria de nada, pois o livro ainda não está pronto.- Diz Roberval.
- Você está mentindo. - Esbraveja a loira.
Os homens de preto começam a esmurra-lo por todos os lados. Ele continua a negar que esteja com os originais do livro. Não entendo nada do que está acontecendo. Susane ainda está desmaiada. Roberval cospe uma enorme poça de sangue no chão. Sinto que vou desmaiar mais vez, os estomago começa a ficar embrulhado, não suporto ver sangue, e aqui já tem sangue suficiente para fazer um filme de guerra. Todo mundo está louco, que história é essa de colocar coisas na minha memória, apagar coisas da mente de Roberval, que história é essa de originais do meu livro, por que o querem, que história é essa de véspera de natal, afinal hoje é dia 17? Eu faço todas essas perguntas de uma única vez, ao final do ponto de interrogação me sinto completamente sem ar.
A loira ri dentro de seu xerox em preto e branco de um Prada.
- Não se lembra, não é mesmo? - Ela diz entre guinchos de sua risada esnobe e tão falsificada como seu sarcasmo.
Os godizilas param de bater em Roberval, ele ainda sangra, agora, faz companhia para Susane do distante país dos inconscientes.
- Não sei do que vocês estão falando. O que tem meu livro a ver com tudo isso? Não entendo o que está havendo. Não sei o que estou fazendo aqui, o que tenho haver com tudo isso e com vocês.- Seu livro tem os códigos. - Ela diz.
- Códigos do que?
- Senhas de contas em bancos suíços.
Pronto. Eu devia estar à espera disso, de modo que não me surpreendo de todo, filme de gangster, assassinato de padre, roubo de livro, códigos, contas na suíça, travesti usando saia de borracha, mulher peituda fumando Free, chuva, carro preto, loira, magrelo, homens de preto, Sr. X, uísque com gelo, pôquer, pistola semi-automática, prostituta ruiva, armazém nas docas, será que esqueci alguma coisa. Receita perfeita para fazer um filme ruim.
- Que loucura é essa?
- Conte a ele Madalena. - Diz o magrelo
Madalena? Por que será que eu não me surpreendo com essa também?
Ela fica me olhando, parece tentar ler meus pensamentos, se pudesse fazer isso garanto que não continuaria com esse sorriso de vilã de novela do canal 13.
- Vou contar como você entrou nessa história.
A história contada pela mulher loira, Madalena, péssima atriz de sorriso debochado, vestindo sua imitação surrealista de Prada, será por mim narrada em primeira pessoa. Minha pessoa, já que a pessoa dela me parece um tanto canastrona demais para executar um monólogo, como o que vem a seguir. Não que eu queira evidenciar aqui um dos mais celebres clichês, o de que as loiras são intelectualmente afetadas longe de mim cooperar com tal conspiração. Mas vamos direto aos fatos.
Olhei para a TV, a imagem límpida do canal 13 mostrava mais uma dessas tragédias que a mídia converte em comercial para as multinacionais da alimentação. Os repórteres, sempre sujeitos com roupas engomadas e cabelos impecáveis, falando direto do local da tragédia, ou do assalto, ou do terremoto, ou fosse do que fosse, estão sempre lá, perfumados e bem passados. Tirei os olhos do monitor e olhei ao redor, senhoras vestindo longos pretos, sapatos de salto alto, sorrisos de botox, um desfile sem lógica, uma vida sem lógica.
Estou esperando Susane e por um momento me sinto aliviado por saber que ela aparecerá vestindo calças jeans, tênis e camiseta esporte, uma espécie de alienígena aos olhos das outras mulheres. Susane é alta, da minha altura. Lábios vermelhos e grossos, como se houvesse acabado de levar um murro, cabelos claros e longos, seios enormes e firmes. Ela já está atrasada.
Ponho-me a folhear o jornal do dia. Caderno 2. Crítica literária. Algumas menções ao meu último livro, recém lançado. A primeira e de um tal de Alicio Carlos, nunca ouvi falar.
O livro mais parece uma daquelas bulas de remédio amargo. Não se sabe o que quer dizer, não se entende onde quer chegar. Não serve para nada, a não ser, talvez, para encosto de uma mesa ou geladeira com as pernas tortas.
Ele ia adiante com muitas outras palavras que eu não quis saber. Havia mais abaixo uma outra crítica assinada por uma mulher. Fátima de Queiroz. As mulheres geralmente são mais sensíveis a literatura.
Adam Smith está cada vez melhor no quesito literatura ruim. Tão ruim quando seu contemporâneo mais celebre. Pelo menos Smith ainda não se denominou Mago, ponto a seu favor e a favor de sua literatura de gosto duvidoso.
Quem disse que as mulheres eram mais sensíveis? Bobagem. O jornal é tão inútil quanto o noticiário do canal 13. bebo cerveja preta. Espero Susane que já está atrasada quase meia hora. Só então reparo no homem ao meu lado no balcão. Está olhando para mim de forma insistente. Aproxima-se.
- Por acaso você não é Adam Smith, o escritor?
- Sim, sou eu mesmo.
- Está ocupado?
- Espero uma pessoa.
- Poderíamos tratar de um assunto que seria de seu interesse. Tomará apenas alguns minutos.
- Do que se trata?
- Poderia me acompanhar até uma mesa.
Vou com ele para uma mesa onde já há um homem sentado, está todo vestido de preto.
- Sou Roberval.
Diz o sujeito que acompanho. Ele apresenta o outro.
- Esse é meu sócio Raphael. Temos uma proposta para você.
- Já leu as críticas literárias, imagino?
- Já. Quem sabe faz, quem não sabe critica. O que querem comigo?
- Um livro.
-Não entendi.
- Temos uma história que daria um romance que te transformaria em um best seler.
- Por que não escreve o livro você mesmo?
Raphael está olhando fixamente para mim. Balança o copo de uísque lentamente. A pedra de gelo vai batendo nas bordas do copo. Um estalido mecânico do choque vai entrando por meus ouvidos. Não consigo me concentrar na voz de Roberval, que está falando sobre gangster`s, máfia, prostituição, lavagem de dinheiro, corrida de cavalos, contrabando, falsificação.a única coisa que consigo prestar atenção e no cubo de gelo se movendo dentro do copo. Os olhos ficam pesados.
Ouço Raphael estalando os dedos. Roberval está calado, mas já não mais me lembro do que falava.
- Temos que ir. Obrigado pela atenção senhor Smith.
Eles se vão. Fico sem entender nada, ainda ouço lá no fundo da memória o tic tac do gelo batendo no copo. Volto para o balcão. O canal 13 exibe mais uma tragédia. Tomo o resto de minha cerveja preta. O barman desliga a TV, liga o rádio, All the Way de Frank Sinatra invade o bar, a voz cristalina me faz esquecer o ruído do gelo.
Susane está atrasada. Olho no relógio. Meia noite. O tempo passou rápido demais. Definitivamente é tarde demais para Susane vir ao meu encontro. Acabo a cerveja e saio. No meu quarto, deitado na cama de casal eu ouvia o tic tac do relógio sobre o criado mudo, tinha alguma coisa querendo sair da minha memória e não sabia como. O tic tac, se parecia com alguma coisa, mas eu não me lembrava com o que. Lembrava-me apenas de um homem chamado Roberval. Bom nome para um personagem.
Foi ai que tive a idéia para um romance. A historia de Roberval, um escroque, que vivia de pequenos golpes com cartas e dados em cassinos clandestinos e barra pesada.
* * *
A história da loira é confusa, mas ela explica tudo direitinho. Eu fui hipnotizado por Raphael, enquanto Roberval me fornecia informações para que eu escrevesse um romance. Mas ainda há algumas coisas que não fazem sentido nessa bizarra situação de clichê. Por que queriam que eu escrevesse um livro?
- Isso que não entendíamos no começo. Mas depois tudo começou a fazer sentido. Que ligação haveria entra o livro e Roberval?
Pergunta a loira para si mesma, em um clássico momento de sua atuação provinciana, soltando a fumaça do Free para o alto. A chuva está cada vez mais forte. Susane já está acordada, embora ainda atordoada. Seus olhos vagueiam pelo cenário. Os trogloditas estão todos parados como peças de xadrez que esperam um movimento, uma participação na abertura ou no gambito. Roberval ainda está desmaiado, Claudia tem os olhos atentos a tudo o que se passa. Somente então percebo que a prostituta de saia de borracha não está em canto algum.
- Roberval roubou códigos de acesso a contas no exterior. O objetivo del era que você inserisse tais códigos em capítulos do livro. De modo que depois era mais seguro. Depois que passou as informações para você Raphael, por meio de hipnose fez com que o próprio Roberval esquece de tudo. Acreditava ele,que assim se manteria seguro.
- E o que foi que deu errado? - Pergunto para a loira.
- A mulher dele descobriu tudo.
- E quem é ela.
- Susane.
Estava demorando muito para que tudo ficasse de cabeça para baixo mais uma vez.
- Na verdade foi Susane quem teve toda a idéia. Foi ela quem o atraiu para o Cassino Nautic`s, para um encontro em que não compareceu.
De repente as coisas começam a fazer sentido para mim. A sucessão de encontros e desencontros. E todo o resto de fatos insólitos. Com exceção de alguns mais absurdos. Mas isso é uma questão de clichê, por isso é preciso dar um desconto. É como uma daquelas comedias de besteirol americano, onde um diretor já de saco cheio do mundo, da vida e, provavelmente, com a cara cheia de algum uísque falsificado resolve satirizar dúzias de filmes que nem ao menos assistiu, e o resultado é isso. É essa noite. É essa minha história com a máfia do jogo, ou da prostituição, já nem sei direito o que é o tal de Sr, X, além é claro de um celebre personagem de desenho animado antigo, ursinho game.
Eu era o cara errado no cenário errado, com a maquilagem errada, com o script errado, falando as falas erradas. Triste sina para um escritor, já medíocre, segundo a critica literária mais recente. Bem, eu estava lá, havia um maluco saído de um filme do James Bond, com uma maldita senha secreta de uma conta nas ilhas Caimãs ou na Suíça, à uma hora dessas, esse é apenas um detalhe geográfico sem muita importância. E quis o destino, ou o tremendo azar que devo ter, não é possível, que eu estivesse tendo um caso com a mulher do tal sujeito e essa por sua vez, com uma mente cheia de historias da Agatha Christie concebesse uma trama miraculosa envolvendo hipnose e o escambal. Eu estava surpreso.
A loira parecia se deliciar com minha reação, lambia os beiços entre uma tragada e outra. Eu estava tentando digerir toda a história. Afinal onde haveria ido parar o livro? Por quê a morte do padre? Por que logo nesse armazém úmido e fedorento? Uma pergunta de cada vez. A loira coloca um chiclete na boca e masca da mesma maneira que a prostituta fazia. Onde estará a prostituta? Quem é R.? quem era a moça do autografo? Outra pergunta. Céus, quantas.
Penso sobre o que a crítica acharia desse livro que mal acabei de escrever e já foi roubado. Onde estaria os originais da história de Roberval? Incrível essa história de escrever sob efeito de um transe hipnótico, sempre fui um cético a respeito dessas coisas. No entanto, lá estava eu acordando de uma noite mal dormida, cheio de idéias, uma história de gangster e máfia que depois de tudo foi ao poucos de tornando real, ou ao menos parecido, embora com mais clichês do que eu houvera escrito, pelo menos imagino eu, embora nesse momento tenha a certeza de que a crítica literária daqui até a Patagônia discorda disso.
Durante alguns segundos um silêncio tão profundo que chegava a ser incômodo, ninguém dizia nada, a risada da loira parecia ter morrido dentro de sua garganta, somente as respirações, e o ursinho game bufando feito uma panela de pressão cozendo alguma daquelas iguarias da cozinha afro-brasileira. Quando os sons vieram, foram todos de uma única vez, passos, tiros e sirenes da policia. Correria para todos os cantos, tiros, senti uma dor incrível na perna e depois no ombro. Senti que tudo iria escurecer mais uma vez, eu estava sangrando. As vozes ficavam cada vez mais distantes a sirena cada vez mais fraca, quase que somente um zumbido.
* * *
Acordei com Susane acariciando meus cabelos, tive a impressão de ouvir o som das pedrinhas de gelo batendo nas bordas do copo, mas eram apenas os sons dos aparelhos hospitalares. Eu havia levado dois tiros, um no ombro e outro na perna direita. Desmaiara quando a policia chegava e invadia o armazém. Eu ainda não entendia muita coisa. O que Susane vazia ali, se fora ela quem arquitetara todo o plano? Eu ainda estava com muito sono. Sedativos, com certeza. Susane então me contou todo o resto da história dada depois de meu desfalecimento.
Quando a policia chegou nas docas, levada por Natacha, que de alguma maneira havia conseguido fugir antes de sermos capturados pelos asseclas do Sr. X, o tiroteio começara eu baleado em dois pontos do corpo havia desmaiado em meio ao caos. Sr. X conseguiu fugir, mas a loira e o magrela foram presos, junto com Roberval.
Roberval contou toda a história dos códigos secretos, que eram senhas de contas no exterior, que eu havia colocado nas iniciais dos capítulos do livro, sobre a as aventuras do escroque Roberval. Mas muitas das coisas acontecidas na madrugada não tinham explicações, os clichês que impregnaram o cenário já piegas dos acontecimentos, acredito que tenha sido mais acaso do que obra de um roteirista de Hollywood. A morte do padre foi esclarecida e as suspeitas sobre minha pessoa afastadas, mas é claro que terei que comparecer a delegacia para prestar declarações.
O médico entra no quarto, sorriso do tamanho de um tênis de jogador da NBA, estetoscópio pendurado sobre o jaleco branco. Diz que estou pronto para sair do hospital, numa cadeira de rodas é claro, por causa da perna de onde foi retirada um projétil calibre 45.
Susane vai empurrando a cadeira. Na recepção há um embrulho somos parados por uma enfermeira uniformizada.
- Deixaram esse embrulho para o senhor. - Ela diz.
- Obrigado. - Digo pegando o embrulho que ela me estende.
Susane me empurra para a rua. Antes de entrarmos no carro resolvo abrir o embrulho.
Um pacote branco com apenas algumas palavras escritas em tinta dourada e letra redonda.
Aos cuidados de Adam Smith.
R.
Dentro do envelope os originais do romance e uma carta. Pus-me a lê-la.
Caro Sr. Adam Smith, depois de muito refletir sobre o ocorrido na semana passada no bar do Cassino Nautc`s, em cena que fomos protagonistas maiores, cheguei a conclusão de que o hipnose não pode ser usado de forma ilícita. Por isso me interpus no desfechos dos acontecimentos dessa última noite. Primeiro quis evitar que os originais caíssem nas mãos do Sr. X ou de Roberval, para isso pedi para que a moça do autografo deixasse um bilhete para o senhor, mas tive imprevistos, que agora não vem ao caso, e não pude comparecer ao encontro na K com a Ruiz. Vi-me então obrigado a invadir sua residência e roubar o livro para que não caísse em mãos erradas. Peço desculpas pelos transtornos causados.
Atenciosamente Raphael.
Susane empurra a cadeira de rodas através do corredor, atravessamos uma enorme porta dupla toda em vidro e um saguão enorme se abre a minha frente, cheio de acentos de acrílico e pessoas com expressões cansadas. Sinto uma enorme vontade de fuma. Susane me estende um Free, mas dessa vez sei que não é apenas um clichê de algum roteirista de Hollywood, simplesmente é o cigarro que ela fuma e pronto. Sinto uma enorme falta de meu zippo americano. Para onde irei já que minha casa foi totalmente destruída em meio aos acontecimentos dessa última madrugada?
Susane abre o enorme guarda chuva, algumas gotas ainda caem no papel e varias outras se chocam contra o meu rosto. Parece que essa chuva ainda vai demorar a parar.
Junqueirópolis, janeiro de 2008