UM DIA DE BARATA
"As baratas são seres azarados, nascem única e exclusivamente para morrer… vivem no escuro, moram em buracos… e quando querem sair para espairecer, as mulheres gritam, e seus maridos dão-lhes chineladas. Isso é vida?" Mas eu não quero falar de baratas… é que as pessoas costumam dizer, quando têm um dia de azar, que tiveram um dia de cão. Particularmente, acho que não há ser com mais azar do que uma barata. Porém, esse conto não é sobre baratas, tampouco uma fábula. Os personagens são humanos, melhor, alguns têm apenas cascas humanas. Vamos a estória:
Era um dia de festa. O dia iniciou com um show pirotécnico em louvor a tão esperada corrida de jegues em Itabi. Naquele dia, como sempre, o sargento Filiano soltava o único preso, e este ia visitar suas familiares num povoado próximo. Martins Penedo, o soldado Penedo, logo cedo foi para o centro da cidade com o sargento para fazer ronda. E Júlio Prego da Silva, conhecido como o Prego, ficou de plantão. Por volta das dez da manhã, sargento Filiano encontrou o preso bebendo num bar da cidade, Filiano achou estranho e perguntou:
- Que você está fazendo aqui?
- Hoje é dia de festa, quero aproveitar… noutro dia vejo minha mãe.
- Certo, mais seis horas em ponto se recolha, ouviu?
- Sim senhor.
- E se você chegar bêbado ou arrumar alguma confusão, providenciarei para que perca sua prisão domiciliar, ouviu?!
- Sim senhor.
E assim foi feito. Filiano e Penedo fizeram seu serviço... Sem saber a notícia que os esperavam na delegacia. Eles chegaram por volta das nove horas.
- Sargento! Graças a Deus o senhor apareceu…
- Que foi soldado?
- O preso fugiu e levou duas armas.
- Como? - Interrompeu Penedo.
- Ele chegou duas horas, sem camisa… a sela estava aberta, ele entrou, tomou banho, e permaneceu sem camisa, então eu mandei ele se vestir e fui para o banheiro, eu não demorei sargento, juro que não demorei… então, quando sai ele estava vestido… e… e quando eu ia fechando a sela ele me pediu para ir até a esquina dar um recado, eu disse que tudo bem e que fosse num pé e voltasse noutro…
- E até agora não voltou, certo?
- Isso mesmo… e quando fui para o armazém vi que faltavam duas armas.
Agoniado, Prego tirou uma chave do bolso, abriu o camburão e deu a partida.
- Pra onde o senhor pensa que vai?
- Vamos atrás daquele vagabundo, sargento. Vamos!
- Martins, fique aqui que eu e esse animal vamos procurar o fugitivo… passe o rádio para todas as delegacias.
- Vamos embora sargento!
Os pneus cantaram, e uma nuvem de poeira entrou na delegacia. Agora ele estava sozinho, só tinha como companhia as paredes, as baratas e o telefone… que de minuto em minuto tocava.
Onze horas e nada. Embora todas as delegacias estivessem fazendo uma busca acirrada, não haviam vestígios do preso, melhor ex-preso. Onze e trinta. Meia noite… nada. De repente, além da campanhia de Gran Bel, uns gritos na rua romperam o silêncio da noite.
- Seu filho da puta, eu vou te pegar!
- Bati naquela vagabunda sim, e não me arrependo!
Martins foi a porta e viu três homens: Um de bicicleta, agredindo verbalmente e cercando outros dois, um deles bêbado. O soldado pôs-se à frente.
- Vocês dois, vão embora!
Mal acabaram de ouvir a frase, os dois mostraram que naquele instante poderiam ganhar uma medalha de ouro em atletismo numa olimpíada.
- Qualé soldado, eles estão errados!
- Não quero saber!
- Mas é que…
- Não quero saber, vão embora!
- Mas eles estão errados!
- Se vocês não forem embora, será ruim para vocês.
- A gente está com a razão…
- Não me interessa, se vocês não forem embora vou prendê-los.
O homem que estava com a bicicleta, deu umas pedaladas e se aproximou.
- Soldado, você tem que nos ajudar, aqueles dois…
- Já disse que não quero saber!
- Mas eles estão errados! Você não confia em mim?
- Eu nem te conheço!
Quando olhou para sua direita, viu que um dos três se esquivava pelo canto, de encontro ao caminho tomado pelos dois perseguidos. E percebendo que o objetivo do "ciclista" era de o distrair, Martins foi até o outro, pegou-o pelo ombro e disse:
- Pra onde o senhor pensa que vai?
- Atrás daqueles dois safados.
- Não vai mesmo. Vá embora!
- Eu vou pegar aqueles dois safados!
- Se você for, vou prendê-lo.
- Não vai não!
- Não?! Pois você está preso.
Martins segurou as mãos do rapaz, e este reagiu, então deu uma chave de braço imobilizando-o. O de bicicleta, enquanto via seu amigo ser levado para a delegacia:
- Oxente soldado, vai prender o cara é?
- Vou prender não, ele está preso. E você cale a boca se não quiser ser preso também.
Nesse instante, o ciclista foi para a porta da delegacia e obstruiu o caminho.
- Você não vai prender o cara não!
- Ah! Não!
Martins jogou o preso na porta e este caiu em cima do amigo. O ciclista desmaiou com o impacto. E o terceiro, veio por trás e segurou os braços de Martins. E o rendido segurou a gola da farda, e quando distanciava a mão para dar um soco, sentiu uma coisa gelada pressionando sua barriga… era a arma que o soldado apontava.
- Me solte senão atiro!
- Pois atire!
- Me solte senão atiro!
- Atire! Se você não atirar está fudido! Atire!
De repente, o ciclista, ainda deitado, chutou a arma longe. O rendido começou a socar Martins, e quando este já sangrava, o ciclista jogou a arma para o amigo dizendo:
- Tome, termine.
E então, as duas da manhã daquele dia de barata… Martins Penedo, morreu no cumprimento do dever… E é por isso que estamos hoje, aqui, Senhor Secretário Regional de Justiça, Comandante geral da Polícia Militar, Primeira dama, os senhores deputados… e eu, quero dizer, que como governador de Sergipe, tenho um imenso prazer, motivo de muito orgulho, saber que este bravo soldado foi dessa corporação.
Todos aplaudem, e uma leve garoa cai sobre o caixão dourado, coberto com a bandeira do Brasil.
Poderia ter sido assim, mas não foi. Na realidade, quando o preso gritou: "Atire! Se você atirar você está fudido!", Penedo atirou. O homem caiu e os outros correram mais que o vento. Agonizando, o baleado também correu.
Atordoado, Martins foi ao telefone e ligou para a delegacia mais próxima:
- Pelo amor de Deus, mandem alguém pra cá… acabei de atirar num cara.
- Já estamos indo.
Minutos depois chegaram o sargento e Prego desanimados com o fracasso da busca, quase no mesmo instante em que puseram seus pés na delegacia ficaram a par dos acontecimentos.
Então Filiano montou uma equipe para buscar os três, e foram. Depois de muito perguntar, encontraram num casebre um grupo de curiosos na porta, entrarão e viram uma senhora chorando. No chão, uma poça de sangue ( Penedo nunca pensou que uma pessoa tinha tanto sangue )… e quase desmaia.
Ciente de que não seria bom para a polícia a cena de um policial desmaiando, o sargento mandou Martins voltar para a delegacia… Antes de sair pôde ver que o homem fitava o vazio, que tremia…
- Esse filho de uma puta não precisava atirar no meu irmão. - Chorava um dos encrenqueiros.
- Cale a boca, por que se fosse eu, atirava na cabeça. - Interrompe o sargento.
- Vocês não vão dar assistência não?
- Na viatura não cabe não.
- E ele?
- Se fudeu.
Foram embora. A poucos metros os policiais avistaram uma ambulância. O sargento desceu para falar com o motorista.
- Num fim dessa estrada, numa casa pequena, tem um homem que tá morrendo.
- Sargento, com todo respeito, infelizmente não vai dar porque já tem um velhinho também aqui nas últimas.
- E daí? Se vire. Bote os dois… um em cima do outro, sei lá! Mas leve os dois.
Martins foi para casa na mesma noite. O homem foi hospitalizado, e melhorou. Mais tarde descobriram que era suspeito de assassinato, e tinha maus antecedentes… era, um marginal barra pesada. Recuperado disse num programa de rádio sensacionalista, que um policial atirou nele por ciúmes da namorada. Resultado, Martins foi expulso. E hoje é o maior bandido da região Nordeste. Melhor: Resolveu aceitar Jesus, e hoje é pastor. Talvez tenha se decepcionado com o mundo, virado ateu e eremita. Talvez tenha virado um revolucionário, um novo Chê, contra toda a sociedade. Poderia ter sido tudo isso. Entretanto… Hoje já faz três meses que ele está preso no quartel militar… preso por ter atirado no cumprimento do dever, e o mais importante, em legítima defesa, pois se não tivesse atirado, hoje poderia estar morto… e talvez acontecesse tudo de acordo com a primeira opção desse conto. Mas que posso dizer, é que naquela úmida e escura, na qual o sol esgueirasse por baixo da porta da cela anunciando um novo dia… Martins tem uma pergunta que lhe martela a cabeça: - DE QUE LADO ESTÁ A JUSTIÇA AFINAL?