ATROPELANDO A LEI

Era ainda um início de manhã, bem cedinho, naquele final de primavera, quando o sol tenta dar uma amostra de como virá o verão que já se aproxima.

O bonde de Santa Teresa zigue zagueava pelos trilhos ladeira abaixo da Rua Joaquim Murtinho, como faz todos os dias, com poucos passageiros como agora, ou com sobrecarga nas próximas viagens da manhã.

Poucos veículos ainda circulando nessa via, que guarda surpresas para marinheiros de primeira viagem, pois combina simultaneamente uma perigosa equação envolvendo trilhos, paralelepípedos, curvas fechadas e se tiver chovido então, a aderência passa a ser uma característica descartada.

É nesse cenário atípico, que quem estava no bonde pode assistir praticamente em câmara lenta um atropelamento fatal para uma vítima, que desafortunadamente ficou imprensada entre o desgovernado carro e o muro.

O que a princípio parecia ser um atropelamento ocasional, ou seja, em linguajar técnico homicídio culposo, na realidade fora premeditado, ou seja, homicídio doloso, que apenas aguardou com relativa paciência, o momento correto para ser efetivado.

Com informações detalhada dos envolvidos no acidente, a polícia investigativa acabou descobrindo envolvimento indireto entre participantes.

Ao volante do veículo estava João Carvão, conhecido assassino de aluguel, que depois de espremido na cela por policiais, confessou estar a serviço do principal agiota do bairro, conhecido como Zé Bolada, que todo mundo sabia que dívida com ele, em pouco tempo se transformava numa bolada.

Para parceiros, confidenciava que: se o governo dava aval para bancos cobrarem juros escorchantes, como os que incidem sobre o cartão de crédito, porque ele, definido como fora da lei, não podia atrelar dívidas de seus desesperados clientes no mesmo padrão?

Sem contar com a lei, Zé Bolada sabia como poucos amolecer clientes, utilizando métodos de eficiência comprovada na solução de problemas envolvendo dívidas atrasadas.

Zé Bolada dificilmente se envolvia com o setor de cobrança de sua empresa informal, mas que gerava empregos diretos, e as vezes contratava consultores habilitados para serviços especiais, e terceirizava o processo de cobrança, com ameaças telefônicas, passando para o Whatsapp e fechava esse estágio com abordagens do tipo intimidadoras.

Se a metodologia fracassasse, mudava o patamar de pressão, a intimidação passava a ser pessoal, aumentando a carga sobre familiares e vizinhos, visando assim expor à intimidade do devedor à comunidade.

O próximo passo envolvia a violência física, em alguns casos com sequestro momentâneo de familiares. A partir desse patamar, o horizonte do infeliz devedor se acinzentava, com chuvas e trovoadas, se iniciava a apropriação forçada de equipamentos da casa, veículos, fechando o ciclo com a incorporação da moradia do cliente.

Contra Zé Bolada, a 7ª Delegacia de Polícia já dispunha de recheada ficha de denúncias, que por falta de fatos se mantinha inerte numa prateleira, junto a outros registros de pequenos crimes no bairro.

Sem que ninguém tomasse conhecimento, durante a madrugada, algum enviado de Zé Bolada conseguira entrar na delegacia e com silenciador na arma, disparou três tiros na cabeça do infeliz, que jazia banhado de sangue na cela na manhã seguinte.

Mais uma vez Zé Bolada apagava fatos, que poderiam encerrar seu monopólio da agiotagem no bairro.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 18/04/2025
Código do texto: T8312553
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