BEM ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA
Aquela manhã chuvosa, cinzenta e fria de julho transformara o calçadão de Copacabana num belo mosaico de pequenas pedras molhadas e brilhantes variando do branco ao preto que também combinava com areias plácidas, mar agitado e pesadas nuvens.
Essas imagens em preto e branco eram momentaneamente interrompidas pela passagem de algum veículo colorido, chamando para si a atenção momentaneamente, fora isso, tudo estava deserto, o que faz saltar à vista aquela contínua interseção entre a rua monocromática e a calçada desenhada, e desta com areias, finalmente delas com um mar que vai graduando sua paleta do branco da arrebentação, ao cinza chumbo das águas profundas no horizonte, onde se funde a nuvens da mesma tonalidade.
No posto seis, ali próximo a colônia de pescadores do bairro, a monotonia cromática está interrompida por luzes coloridas das viaturas do corpo de bombeiros e da polícia, além de um público que acorreu ao local atraído pelas forças policiais.
Nas areias molhadas da chuva, um corpo feminino bem vestido e desfalecido se mantém inerte sob olhares dos policiais, que providenciaram rapidamente um cordão de isolamento, e assim impedir uma maior aproximação do público.
No dia seguinte, a mídia já tinha mais notícias do homicídio, a vítima na realidade se tratava da mais bela travesti do pedaço, cortejada por empresários e políticos, e que sempre esnobou glamorosos convites, valorizando a relação estável com seu marido, o delegado Faria, titular da 12ª DP, ali na Rua Hilário Gouveia.
Seu badalado salão no Shopping Cidade Copacabana se transformou num caso de sucesso imediato, se num primeiro momento o público incluía basicamente a turma da prostituição, não importando a preferência sexual.
Não demorou muito para outros segmentos passarem a procurar o Salão da Marcela, que acompanhava de perto o trabalho de suas funcionárias, todas passavam por intensivo treinamento antes de efetivamente assumirem uma cadeira na requintada instituição.
Antes de começar o intempestivo relacionamento com Marcela, o delegado Faria foi casado com Nice por quinze anos e tem dois filhos Eduardo e Pedro, que tiveram pouco contato com o pai. Dona Nice criou os dois na linha dura, que tem em comum com a atual esposa do marido uma oficina de costura no mesmo shopping.
Não foram poucas as vezes que a exuberante Marcela levou roupas para pequenos acertos na loja da Dona Nice, isso antes do rompimento do relacionamento. Quando ocorreu a cisão do casal, sua loja também sofreu um baque no movimento, pois Marcela gostava muito do serviço da costureira, e passou a indicar sua loja para mais gente da noite, que sempre encontrou dificuldade com tamanhos femininos das roupas.
A costureira de mão cheia resolvia com certa facilidade as alterações necessárias à adaptação das roupas aos corpos que ainda guardavam resquícios da masculinidade escondida.
Na criação dos filhos Dona Nice foi bastante radical, o que acabou gerando dois homofóbicos de carteirinha, cresceram rejeitando o pai, e de tabela todo relacionamento que não fosse hétero.
Imagina como devia ser a cabeça desses dois, sempre moradores de Copacabana, bairro onde liberdade sexual e envelhecimento ativo fazem parte das características demográficas do bairro.
Como o homicídio ocorreu na área de atuação da 12ª DP, Faria sabia que a investigação cairia nas mãos do colega Gouvêa, um experiente, perspicaz e rechonchudo policial, que em seu histórico foram raros, ou melhor, apenas dois das dezenas de casos investigados não solucionados.
A primeira convocação para depor foi direcionada ao colega Faria, conversaram por mais de duas horas, e não foram poucos os momentos que o investigado se derramou em sinceras lágrimas de tanta tristeza, pela precoce partida da companheira.
Conversando com funcionárias da Marcela, entendeu que a proprietária tinha um coração acolhedor, sempre ajudou funcionárias e ainda abria o salão no primeiro dia útil do mês com todos os serviços gratuitos, e claro, muita gente se aproveitava dessa facilidade, para mudar o visual, da população de rua, exigia apenas que chegassem de banho tomado, se não tivessem como pagar pelo banho nos postos de salvamento da orla, ela mesma bancava.
O delegado Gouvêa teve noção da popularidade de Marcela pela quantidade de gente que em cortejo, partindo de Copacabana, compareceu ao enterro no Cemitério São João Batista em Botafogo.
Conversando com olheiros e pessoas que conhecia de longa data, teve acesso a uma pista contundente, muita gente sabia da aversão dos filhos de Faria por homossexuais.
Focando sua atenção para Eduardo e Pedro, acabou sabendo que tinham conseguido uma arma e munição com a turma do tráfico da favela do Tabajara. Afinal, o governo do capitão flexibilizou a compra desregrada de armamentos e munição.
O delegado chamou informalmente um conhecido do morro, para que levantasse mais detalhes da arma e da munição transacionada.
A balística comprovou que tanto os projéteis utilizados como a arma conferiam com a usada no crime. Agora seria a pior parte da investigação, encontrar os suspeitos e descobrir o destino da arma e da munição não utilizada.
Chamados a depor em separado, responderam as perguntas de forma que parecia ensaiada. Negaram tudo, mas o policial conseguiu um mandato de busca e apreensão, acabou encontrando o que tanto procurava. A camisa de Pedro, ainda na caixa de roupa suja, foi encontrado vestígios de pólvora.
Agora, seria uma questão de tempo a solução do crime. Depois de muita pressão em cima dos rapazes, contradições apareceram. Logo, entregaram o destino final da arma e também do restante da munição.
O local era de difícil acesso, pois tiveram o cuidado de alugar dois stand-up paddle no posto seis e dispensar as armas bem depois da arrebentação. Com uma lancha e dois mergulhadores dos bombeiros e um detector de metais em vinte minutos recuperaram o material procurado.