A FALÁCIA DA BALA PERDIDA

O plantão daquela tarde de uma quinta-feira do acalorado janeiro no Hospital Municipal Souza Aguiar, Centro do RIO, estava tranquilo, permitindo aos profissionais de saúde zapear pela mídia social preferida.

Ninguém na instituição de saúde sabia que naquele exato momento, no outro lado da cidade mais uma batalha urbana ocorria no Complexo da Maré, na insana estratégia que o governo estadual insistia em manter.

Para um leigo que chegasse ao teatro do confronto ficaria até difícil entender a desproporcionalidade dos armamentos utilizados para embates que aconteciam a poucos metros de distância entre invasores do território e forças lá há muito estabelecidas.

Imagine entrar em território inóspito, onde prevalecem becos estreitos, às vezes fazendo curvas irregulares, para vencer a topografia intrincada do trecho. Acrescente-se ao fato uniformes escuros, grossos e sobrepostos por coletes de proteção, tudo isso sob torturante sol, que em muitos dias supera a casa dos quarenta graus centígrados, e ainda carregando um fuzil que chega a pesar seis quilos e medir um metro e dez centímetros.

Do outro lado, moradores que nasceram e cresceram na comunidade, ocupando pontos estratégicos, que se vestem de forma despojada e o melhor, usando equipamentos mais modernos, principalmente depois que o capitão/presidente liberou geral o acesso de interessados em adquirir armamentos pesados, além de farta quantidade de munição, permitindo aos soldados do tráfico treinar tiros, praticamente sem limite, um contraponto à limitação de uso da munição dos PMs.

Um cachorro partiu latindo em direção a dupla de PMs, não titubearam, passaram fogo, não se deram conta que uma criança corria atrás do pet, os disparos mataram o cão caramelo e feriram gravemente sua perseguidora, uma menina de quatro aninhos.

De cima de uma laje, um soldado não conseguiu assistir a tudo e não reagir, disparou uma sequência de tiros certeiros nos assassinos. Esses disparos acionaram o estopim da batalha que se estendeu até o início da noite, com baixas mais numerosas entre o grupo policial.

Uma viatura da polícia se posicionou próxima ao local do suposto confronto, dois soldados sobrepuseram o corpo dos policiais no banco traseiro da viatura, e já iam partir sem levar a menina. Sua mãe levada ao desespero implorava para que transportassem também a pequena vítima para o hospital.

Conseguiu o intuito, e foi sentada naquele compartimento reservado a presos. No local da barriga onde o projétil entrou Dona Taiana, a mãe, improvisou uma espécie de tampão com a blusa da menina, esperando que a pequena chegasse ainda com vida ao hospital.

Na entrada da emergência, rapidamente duas macas apareceram para levar os policiais feridos. Teriam esquecida da filha de Dona Taiana novamente, não fossem seus berros, e batidas na lataria da viatura.

Quando abriram a porta do compartimento. Ela foi logo exigindo atendimento prioritário para a menina, já que os dois policiais, na realidade tinham assassinado Bolinha o cachorro da família e ainda acertaram a pequena Maria.

Mais uma vez veio à tona a versão da bala perdida, quando na realidade todo mundo sabe onde o projétil vai parar.

Sensibilizados, médicos que atendiam aos policiais, interromperam tudo quando souberam dos fatos e se dedicaram a tentar manter viva a pequena vítima.

Passados alguns dias, jornais informaram nome dos policiais entre as baixas do confronto da Maré, e mesmo assim receberam honras militares, com salvas de tiros durante a cerimônia de enterro.

A menina ferida passou por cirurgia e ainda se encontra internada em recuperação no Hospital Municipal Souza Aguiar.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 28/11/2024
Código do texto: T8207287
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