DE SONHO A PESADELO

Nosso cenário é a Penha, tradicional bairro da zona norte que dispõe de um ícone para chamar de seu, assim como o Cristo Redentor se impõe como principal referência da zona sul carioca, esse subúrbio da Leopoldina conta com um atrativo para chamar de seu, a popular Igreja da Penha, estrategicamente posicionada no alto da colina mais alta da região.

Foi nesse cenário que vieram ao mundo os irmãos gêmeos univitelinos José Maria Corrêa e José Carlos Corrêa, que cresceram soltos numa Penha de poucos carros, vários terrenos baldios e muitos campos de várzea, que aos domingos se transformavam em atração para apreciadores do futebol, sem as amarras imposta pelos clubes da vizinhança, que disputavam o badalado campeonato carioca de futebol.

Nesses confrontos, além de curiosos, meninas em busca de namorados atléticos, e claro, olheiros dos clubes de futebol da região, o Bonsucesso e o Olaria, que na época serviam de trampolim para um dos seis grandes ( América, Bangu, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco da Gama) que disputavam o campeonato do então Estado da Guanabara.

Por falta de traquejo com as pernas, os gêmeos só conseguiam participar das peladas, na então desprestigiada função de goleiro.

Já na escola, ambos se destacavam, definidos como CDF muitas vezes exigiam de seus vizinhos de carteira, alguma recompensa pela cola passada durante as provas, normalmente se tratava de um lanche, em badalada lanchonete local.

Mais adiante ambos passaram para a carreira de direito da UFRJ, antes mesmo de concluírem o curso, foram aprovados no BANERJ, o banco do recém criado Estado do Rio de Janeiro, em substituição ao Banco do Estado da Guanabara – BEG.

Aquela história, de quem começa a trabalhar cedo, se aposenta também em idade ativa, foi assim para os dois irmãos, que com 50 anos estavam de novo na pista, a procura do que fazer, até porque ambas esposas foram bem objetivas, efetivamente não queriam a presença deles em casa, assistindo televisão o dia inteiro.

Ambos, com muita experiência burocrática bancária não conseguiam sair da inércia, então o acaso se apresentou, durante o enterro do pai de um amigo próximo. Naquele clima não daria mesmo para conversar sobre negócios, mas Ernesto veio confessar para os irmãos não saber o que fazer com a distribuidora de gás de botijão, que até então, o pai tocava sozinho, deixando claro que não queria continuar com o negócio.

Marcaram um almoço para o dia seguinte, onde poderiam conversar com mais calma e sem interrupção de condolências. Se acertaram rapidamente, e dois dias depois o depósito abria sob nova direção, para alegria generalizada de todos, aí incluídas as companheiras dos irmãos José.

Em pouco tempo sentiram que o serviço poderia ser expandido para área maior, e para tanto, se livraram do caminhão velho que vivia dando problemas mecânicos, atrapalhando a expansão dos negócios. Compraram três caminhões menores e novinhos em folha. Agora teriam mais agilidade e poderiam repetir o trajeto mais vezes dentro da semana.

Logo, abriram mais dois depósitos em bairros próximos e ampliaram a frota e área de atendimento. Criaram um disk gás rápido, com entrega por motocicleta, com preço e demanda diferenciados, estamparam propaganda da empresa em outdoors da região e na camisa do time de futebol do Olaria.

Como moradores raiz da região, se sentiam na obrigação de patrocinar festas e competições esportivas locais, acredito que se candidatassem a algum cargo público conseguiriam muitos votos, função da popularidade local.

Mas assim, como muitas localidades próximas a grandes complexos de favela, a violência passou a fazer parte do cotidiano dos irmãos, inicialmente marcada por assaltos aos veículos, com sequestro da carga. Logo, recebeu a visita de um desses adolescentes, que servem de aviões do chefe do tráfico.

Nas mal traçadas linhas vinha uma mensagem assustadora, exigia vinte por cento do faturamento em troca de segurança para os dez veículos da empresa e dos três depósitos. E para mostrar conhecimento do que estava solicitando, vinha o valor expresso em reais, que deveria ser pago em espécie a cada nova virada do mês.

Os irmãos entraram em parafuso, sabiam de antemão que nesse tipo de proposta não existe negociação, é pegar ou largar. Nem pensar em acionar a polícia, pois já sabiam de comerciantes assassinados por não aceitarem imposições dessas facções do crime.

Com a proximidade do final do mês providenciaram a primeira mensalidade para não dar margem a alguma ação mais radical do grupo. Zé Maria queria se livrar da empresa imediatamente, Zé Carlos ainda duvidava da veracidade da mensagem.

Coincidentemente naquele outubro nenhum veículo ou depósito passou por qualquer tentativa de assalto. Zé Maria propôs ao irmão uma divisão dos próprios, para fechar a sua parte e vender tudo ao primeiro pretendente que aparecesse.

Aí apareceu a ganância de Zé Carlos, que se propôs a comprar a parte do irmão, se lhe oferecesse um deságio de 40% do valor venal dos bens.

Zé Maria não titubeou, aceitou de imediato o negócio, não tentou alterar uma vírgula da proposta. No mesmo dia, procurou uma dessas empresas que trabalha com aluguel de imóveis, e fez a solicitação de uma cobertura em Copacabana.

Como sempre morou em casa, não queria ninguém morando em cima, ao mesmo tempo em que manteria seu hábito de apreciar o céu à noite, preferência para as noites de lua nova.

Três meses depois veio a notícia que não gostaria de ouvir, o sequestro e posterior sumiço do irmão, que intempestivamente subiu o morro na tentativa de negociar alterações no contrato redigido naquela fatídica mensagem, que encerrou uma convivência diária de tantas décadas com o irmão.

Agora nem corpo para ser enterrado restou a Dona Zulmira, a viúva.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 01/11/2024
Código do texto: T8186968
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