DIOCLÉCIO, O MARIDO
Tô muito preocupado. Ando ansioso, estressado. Comecei a tomar remédio pra dormir porque não tenho conseguido descansar direito. Tudo por causa das meninas assassinadas em nosso bairro. Elas desaparecem por uns dias e aí os pais surtam em desespero. Não demora muito, os corpos são encontrados nos rios ou na beira das praias.
Eu sei quem tá matando as crianças!
Sei sim. Não sou trouxa. Ninguém me tira da cabeça que é a Eulália, a minha querida esposa. Ela é muito esperta, a danada. Às vezes tenho medo dela e por isso durmo em quarto separado. Amo minha mulher, só que não vou dar mole pra ela, não. Você vê, a gente mora em cidade pequena e a polícia aqui é muito burra.
Quando perdemos a nossa bebê logo após o parto, uma linda menina, a Eulália entrou num rancor profundo contra o mundo. O ódio tomou conta da infeliz. Ela disse que ia se vingar. Disse que aquilo não ia ficar assim, não. Eu tentei acalmá-la, mas a minha esposa vem de família ruim, sabe? Tem doença na cabeça. Não sei bem como explicar, mas tem vezes que ela diz que é outra pessoa, muda até de voz.
Claro, descobri essa doença nela depois do casamento. Lá no hospital, naquela época, eu falava assim pra ela: “tu vai se vingar de quem, criatura? A morte da nossa bebê é coisa de Deus”. Ela não me dava ouvidos. Só me encarava enraivecida e me respondia: “estou pouco me lixando. Olha aí essas nojentas, olha só a soberba dessas vagabundas em dar de mamar. Por que elas podem ser felizes e eu não?”
Soberba, só pra você saber, é a mesma coisa que nariz empinado. E não adiantava nada eu falar que a gente podia fazer outra criança depois. O sonho da Eulália era ter uma filha. Não deu certo, fazer o quê? Acontece. Faz parte da vida. E, de mais a mais, ter nariz empinado também não é crime, é? Precisa matar alguém por causa disso?
Agora, eu tenho de tomar cuidado pra não falar besteira. Minha mulher diz que sou meio leso das ideias e, até hoje, não sabe o que levou ela a se casar comigo. O policial na frente da porta da nossa casa não parece burro, não! Esse aí vai incomodar. Vai querer saber, decerto, se ela tá indo no psicólogo pra ajeitar a doença da cabeça.
EULÁLIA, A ESPOSA
Era só o que me faltava. A polícia não tem mais o que fazer? Hoje é dia de faxina e o imprestável do Dioclécio não me ajuda. É um leso. O homem está sempre cansado, com sono. A criatura passa o dia todo dormindo, como se o corpo dele fosse só preguiça. Estou cansada de pedir pra ele levantar a tampa do vaso pra mijar, de deixar as coisas na geladeira em ordem, de ajeitar a cama quando acorda tarde, mas ele só sabe me encher a paciência pra ir no posto de saúde ver o Dr. Jota Alves.
Falar com o psicólogo é perda de tempo. Não tenho problema mental. Não sou louca! Sou estourada, sim. Desbocada, às vezes. Pareço rude porque não costumo engolir desaforo. Não sei lidar muito bem com as mulheres dissimuladas e soberbas que vivem pra cima e pra baixo exibindo as crias. São umas tolas. Acham que tem um rei na barriga. Parece até que os filhos cagam pepitas de ouro. Ahhhh, grande coisa!
— Ei, Eulália, ela tá aí? – o imprestável me sussurra, cauteloso, como se tivesse alguém dentro de casa xeretando a nossa conversa.
— Ela quem, Dioclécio? – pergunto de volta, mesmo já sabendo da resposta.
— A outra – ele murmura, olhando aflito bem nos meus olhos.
Pois é, o meu marido agora deu pra dizer que eu tenho outra pessoa dentro da minha cabeça. Quem devia procurar psicólogo é ele, não eu. Ahhh, mas eu não tenho tempo pra essas bobagens do Dioclécio. Preciso saber o que esse policial quer.
A OUTRA EULÁLIA
A Eulália tem medo de encarar a verdade. É bem isso aí. Matei a filha dela sem querer, admito. Assim que ela deu de mamar... eu... eu, não sei como, acabei dormindo por cima da criança. A culpa foi da enfermeira que demorou muito pra levar a menina novamente pro berço. E isso gerou muita raiva em nós duas. Passamos a odiar as mães soberbas e felizes.
A Eulália até que é bem controlada. É, sim, um pouco agressiva e arranja briga o tempo todo com as mulheres e seus filhos. Xinga, grita, amaldiçoa as crianças. Diz que, se pudesse, estrangulava os filhos pra ver a cara odiosa das mães chorando. Mas ela só sabe falar é da boca pra fora. Eu, não! De jeito nenhum! Eu preciso extravasar essa minha raiva.
A morte trágica do bebê da Eulália foi por causa da enfermeira, só que ninguém vê isso! Essa é a verdade! Deviam é processar o hospital. As outras mães ainda ficam evitando a pobre coitada. Elas precisam sentir na pele a mesma coisa que eu e a Eulália sentimos até hoje.
O maior defeito da Eulália é achar que o marido dela é bobo. Nada disso! O cara sabe muito bem que eu estou escondida aqui junto dela há muito tempo. Mas o imprestável não tem firmeza, é um boca-mole. Não quer se envolver. Mas hoje estou decidida a falar poucas e boas para esse policial intrometido. Chega de enrolação. Ao invés de ficar xeretando a minha vida, ele que vá prender a enfermeira, isso sim.
O POLICIAL
Assim que a porta se abre, vejo uma mulher alta, cabelos desgrenhados e olheiras que demarcam um rosto de expressão agressiva, austera, quase de desafio. Ela cruza os braços e encosta o quadril no batente. Um cheiro desagradável vindo do interior da casa me invade os sentidos. Algo está errado aqui.
— Bom dia. Estou investigando o desaparecimento de Ana Lindeberg, que mora no final desta rua. Gostaria de fazer algumas perguntas à senhora.
— Não tenho nada a ver com isso — ela responde, mal humorada.
Ignoro a grosseria, o cheiro desagradável e, antes de continuar, faço questão de reparar o estado lastimável do seu jardim invadido pelo mato. Lanço olhares rápidos às paredes desbotadas da fachada. Avalio a situação com cara de desgosto pela falta de cuidado. Ela revira os olhos, impaciente.
— A senhora mora há muito tempo nesta casa?
— Sim, mas fiquei fora por um ano. Meu marido é um homem desleixado. Não cuidou da nossa casa como deveria.
— Tratamento psiquiátrico, não é?
— O quê?
— Tratamento psiquiátrico. A senhora ficou fora por causa de tratamento psiquiátrico.
Ela não me responde. Apenas me fuzila com os olhos.
— Obtive esta informação com as suas vizinhas – esclareço.
Observo a raiva aumentar nos tiques nervosos do seu rosto.
— Essas fofoqueiras deviam cuidar da vida delas, isso sim.
— Uma delas disse que a senhora discutiu com a mãe da menina desaparecida. Chegou a dizer que a filha dela devia morrer. Isso é verdade?
A mulher desencosta-se do batente da entrada e me encara com ódio.
— Você devia é procurar a enfermeira, e não ficar xeretando a vida dos outros.
Minha intuição grita neste momento. Há algo definitivamente errado aqui. O mal cheiro se intensifica como se algo estivesse apodrecendo, e me incomoda cada vez mais. Enfermeira? Resolvo mudar de estratégia.
— Posso conversar com o seu marido?
Ela hesita.
— Sei que ele está em casa, eu ouvi você dois conversando.
Depois de alguns segundos indecisa, sem se afastar da porta, ela se volta para dentro.
— Dioclécio! Vem cá! O policial quer falar com você!
A mulher, então, permanece imóvel por alguns instantes, de costas voltadas para mim, como se estivesse travada. O silêncio que se segue é incômodo, carregado de algo que não consigo definir de imediato, no entanto meus sentidos estão em alerta máximo.
Quando ela retorna, de frente, o que vejo me deixa sem reação. Os olhos, antes repletos de raiva, estão estranhamente calmos. A raiva desapareceu do rosto, dando lugar a traços mais suaves, em postura corporal quase submissa. O contraste é impactante. No entanto, o que mais me choca é a transformação da voz, que sai em tom rouco e masculino, quase como se ela fosse outra pessoa. E a ouço balbuciar:
— Minha esposa... a pobre coitada é doente, seu moço. Eu disse a ela que nariz empinado não é crime, mas ela não me ouve. Minha Eulália está matando as crianças, sim. Eu avisei que, se ela não parasse, eu ia contar tudo pra polícia.
O horror de tal confissão me paralisa por instantes. Fico chocado. Contudo, o meu treinamento e experiência falam mais alto. Saco a arma do coldre e a empurro para dentro de casa. Ela recua e cai sentada no sofá, em perturbadora indiferença.
Procuro nos cômodos o paradeiro de Ana Lindeberg. Fico tenso. Cadê o corpo da menina? Em um dos quartos, que parece ser o do casal, vejo em cima da cama um homem nu deitado com uma faca cravada no peito. É uma visão grotesca. A pele inchada e esverdeada, com manchas escuras espalhadas por todo o corpo, são sinais evidentes de decomposição avançada. O fedor nauseante me faz recuar
Da sala, a voz agressiva da mulher ressurge:
— Esse aí é o Dioclécio... o imprestável do meu marido.