CRIME OU ACIDENTE

Dona Teresa é uma senhora distinta e roliça moradora das colinas de Santa Teresa, sua família de origem portuguesa habita as ladeiras do bairro desde que seu pai um comerciante português deixou a terrinha na virada do século XX.

Desde que ficou viúva do general Borges, e isso já tem dez anos, mora sozinha numa confortável casa em aprazível logradouro do bairro. A pensão do marido lhe permite uma vida sem preocupações financeiras.

Do alto de seus 80 anos resolveu encerrar sua obstinada vida de turista inveterada, passava quase metade de seu tempo em viagens, não tinha preconceito em relação ao destino, o prazer era o mesmo, não importando se o local escolhido fosse Alter do Chão, ou um cruzeiro em luxuoso navio pelas águas do Rio Nilo.

Dona Teresa era do tipo de mulher empreendedora, que só botou as manguinhas de fora com a súbita morte do marido. Além das vizinhas do bairro, também convivia com as esposas de colegas de farda do marido.

Passado o momento do luto, Dona Teresa resolver sair do casulo. Num primeiro momento começou a povoar sua residência em reuniões onde começou a trançar uma futura rede de convívio ativo.

Logo, estava à frente de um grupo de entretenimento cultural, contratou um vizinho, motorista aposentado que ainda mantinha uma van na garagem. Pronto, agora Paulão, um senhor de 60 anos passou a ser o condutor do grupo de senhoras, tanto para programação cultural vespertina, quanto a eventos noturnos. Fazia também viagens curtas, como um final de semana em Búzios para um festival gastronômico, ou um encontro de jazz na região serrana.

A empatia do grupo cresceu, e Paulão agora se transformou também no condutor internacional da turma idosa.

Dona Teresa se transformou numa espécie de agente de viagens do grupo, estudava cada detalhe da próxima viagem, se incumbia de tudo: da reserva das passagens aéreas promocionais, as estadias com desconto para o grupo, a van a ser conduzida pelo Paulão, roteiro turístico e o gastronômico.

Nas vésperas da viagem fazia sempre duas reuniões com a turma, adiantando detalhes do roteiro e na segunda abria a possibilidade de pequenas sugestões e onde entregava toda documentação da viagem. Gostava de uniformizar o grupo, com camisas que ela mesma mandava estampar em cores vibrantes, com roteiro da viagem, assim ficava fácil identificar alguém que se desgarrasse do bloco.

E assim passaram juntas, na palavra dela, os melhores anos da sua vida.

Numa tarde de verão em sua moradia passou mal, acionou o telefone para uma vizinha que prontamente atendeu e chamou o SAMU. Depois de passar pelo atendimento, chegaram à conclusão que o mal estar devia estar associado a pouca ingestão de água, fato corriqueiro no universo de idosos. Após receber o laudo e a indicação do mínimo de ingestão de água por dia, passou a seguir a risca as indicações do profissional de saúde.

Poucos dias depois novo mal súbito fez cair a ficha de Dona Teresa, precisava ter alguém por perto, e com certa urgência. O primeiro nome que lhe veio à cabeça foi Dona Mariquinha, também viúva e sua vizinha, que morava de aluguel nos fundos da casa ao lado da sua.

Dona Mariquinha, dez anos mais nova, aposentada pelo INSS, levava vida espartana e frequentava a mesma igreja católica fazia tempo. Feita a proposta, ela ainda pensou por uma semana, mas acabou aceitando o convite.

Agora, a tranquilidade enfim voltava a povoar a mente de Dona Teresa, que até apreciava aquela vida a solo, mas com o avançar da idade, já tinha pensado em contratar alguém para manter a casa harmônica.

Dona Mariquinha, agora sem custos do aluguel, das concessionárias e da alimentação, poderia finalmente fazer excentricidades, como comprar um tênis mais caro e confortável para suas caminhadas matinais pelo bairro.

Foi da noite para o dia que se descobriram quase como irmãs, Dona Teresa passou a acordar cedo e acompanhar Dona Mariquinha nas caminhadas. Na volta já compravam insumos para o almoço, que juntas elaboravam e logo em seguida traçavam avidamente. No pós sesta, se divertiam escolhendo um filme no Netflix. Mais tarde Dona Teresa lia, enquanto Dona Mariquinha não perdia um capítulo de sua novela na TV.

Dias e meses passaram nessa sintonia, às vezes Dona Teresa lamentava não ter feito essa proposta antes a querida vizinha.

Rita, moradora de Copacabana, irmã mais nova de Dona Teresa nunca dava notícias, era casada com Roberto, professor de história e tinham um filho, o Diego, que recentemente começou o curso de engenharia na UFRJ.

O distanciamento entre irmãs foi causado pela incompatibilidade social dos maridos, que remonta o período de exceção, quando romperam definitivamente a relação. Que nem a posterior morte do general foi capaz de restabelecer o vínculo.

Uma notícia trágica chegou a Santa Teresa, um acidente de carro tornou Diego órfão. As duas amigas compareceram ao velório e enterro do casal. Durante a cerimônia se prontificaram a apoiar Diego, abrindo inclusive a possibilidade de vir morar com ambas no histórico bairro da cidade.

Sem direito a nenhuma renda, Diego optou por alugar o apartamento de família e mudar para a casa da tia, assim conseguiria apenas estudar, sem precisar se preocupar com a parte financeira.

Em uma semana ele chegou com malas e cuias para Santa Teresa, houve um estranhamento inicial, pois ambas estavam desacostumadas a ter um homem em casa.

Mas logo, os ponteiros se acertaram, e a harmonia foi plenamente restabelecida, inclusive porque o cotidiano delas não sofreu alteração significativa, Diego passava boa parte do dia no Fundão. Ao chegar a casa se alimentava com o que sobrava do almoço das idosas. Em seguida se trancava no quarto, e só se comunicava novamente no dia seguinte.

Nos finais de semana migrava para a casa da namorada em Botafogo, só retornando cansado no final da tarde de domingo, isso se não houvesse jogo do Flamengo no Maracanã.

Na segunda-feira, tanto dona Mariquinha, quanto Diego supostamente despertaram assustados com a barulheira na escada que liga o andar térreo ao primeiro andar. Ao saírem de seus quartos ainda ouviram fracos apelos emitidos por Dona Teresa, antes de partir para outra dimensão.

O SAMU e a polícia foram acionados, o primeiro confirmou o óbito, já o segundo começou imediatamente a colher indícios do que teria acontecido. Afinal, alguém poderia ter interesse na morte prematura de Dona Teresa?

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 17/09/2024
Código do texto: T8153621
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