Duckman

Everton não recebia proposta para trabalhar há alguns meses. Parou de frequentar o escritório e demitiu Estela, sua secretária. Ele agora estava desfrutando do Seguro-Desemprego. Sua rotina resumia-se a dormir no sofá, encher o cu de cerveja, ler livros do Dashiell Hammett, caminhar pelas ruas de Brotas, de vez em quando, e comprar bilhetes vermelhos só para desafiar a moral e os bons costumes. Um dia, seu cotidiano foi invadido por um fato não programado.

“Everton, sou eu, Carlos!”, disse a voz do outro lado da linha.

“Se você me ligou, então deve ser serviço”, Everton expressou um relativo ânimo.

“Tenho, mas não da forma como você pensa.”

“Ah, meu Deus… Cara, eu estou aceitando até que esposa ressabiada me mande seguir o marido. Tudo que eu quero é tirar a poeira do escritório. Qualquer coisa diferente disso é desagradável”.

“Não vai nem querer saber do que se trata?”

“Ok. Diga o que é.”

Carlos explicou que um cineasta de Salvador teve a ideia de fazer uma adaptação incomum: transformar o desenho animado “Duckman”, sobre um homem pato desprezível e sem escrúpulos que seria um “investigador particular”, em um live-action. A carreira de Everton seria útil para ele servir de consultor do filme.

“Dinheiro fácil para você!”, afirmou Carlos.

“Você tem razão. Mas preciso pensar.”

“Se o filme der certo, você pode ganhar muito dinheiro.”

“Oferta sedutora…”

“Para com esse idealismo. Quer voltar à ativa ou não?”

“Você chama isso de ‘voltar à ativa’”?

“Para mim, é.”

“Ok. Me dê algumas horas.”

Depois do telefonema encerrado, Everton deitou e dormiu no sofá.

Algumas horas depois, foi ao notebook e baixou episódios de Duckman, só para saber se o trabalho poderia ser interessante. Assistiu dez episódios seguidos. O desenho era puro humor surreal, o que cativou Everton. Ele achava que Duckman, o personagem homônimo, era “bosta” com “algumas qualidades redentoras”. Cornfed, o companheiro de trabalho Duckman, era o verdadeiro “fodão” da série. Não demorou para fazer analogias com sua própria vida e carreira. Cornfed seria o “detetive ideal”, o cara que sabe fazer tudo, o cara que Everton queria ser; Duckman era o fracassado, o cara perdedor que se achava o máximo. Everton se via mais em Duckman do que em Cornfed. Como detetive, ele não era lá essas coisas, talvez seja por isso que esteja sem clientes. Mesmo assim, conseguia superar os imbróglios e desvendar mistérios. No desenho, Duckman derrotou o supercomputador. Na vida real, Everton desmascarou Ricardo, o cara que envenenou a esposa. Depois dessa reflexão, viu mais episódios de Duckman.

Os dias foram passando e Homem Pato estava cada vez mais entranhado na sua vida. Não lia Hammett, não caminhava, não usava do bilhete vermelho. A essa altura, ele já havia aceitado o trabalho de consultor. Por isso, foi ao estúdio onde o filme seria gravado. O nome do cineasta era Henrique, conhecido por adaptar personagens e séries em live-actions extravagantes que beiram ao ridículo.

“A real é que você vai precisar pouco dos meus conselhos”, disse Everton a Henrique.

“Por quê?”

“É uma produção surreal e humorística. Uma paródia do gênero detetive.”

“Estou querendo fazer uma adaptação séria.”

“Adaptação séria? Mas como…”

“O Duckman real será sequestrado e substituído por uma versão melhorada dele. Logo os amigos e a família perceberão isso e tentarão salvá-lo, menos a Bernice, a cunhada que odeia ele.”

“Não vai ficar caricato e ridículo?”

“Venha ver.”

Os dois se dirigiram ao set. A cena mostrava o ator que interpretava Duckman amarrado numa cadeira dentro do escritório. Cornfed e os filhos de Duckman o interrogavam. O Homem Pato continuava razoável apesar das ameaças e do humor negro. Em um momento, o personagem Cornfed disse:

“Isso aqui é a cena mais maluca do filme.”

Everton sabia que Cornfed costumava fazer comentários metaficcionais no desenho. Quando a gravação encerrou, “Cornfed” foi até ele.

“Você é o consultor?”, perguntou o ator que faz o papel de Cornfed, enquanto mastigava um salgadinho.

“Sim. Você tem uma fala monótona igual à dublagem em inglês.”

“Isso é um elogio?”

Os dois riem.

“Essa é a cena mais engraçada deste conto.”

“Como assim? Conto?!”

“O bom de interpretar Cornfed é a capacidade que você ganha para… deixa para lá. Acho que você vai achar que sou louco.”

“Tarde demais. Eu já acho.”

“Você é bom de sacada. Acho que você seria um bom Duckman.”

“Não sou ator.”

“Mesmo assim, você se sairia bem. É como se você fosse o próprio Duckman. De corpo e alma.”

“Isso é um elogio ou outra fala enigmática sua, Cornfed?”

“Meu caro, eu sou adepto de uma teoria. Acho que você nunca ouviu falar. Teoria da Ipseidade.”

“Você tem razão.”

“Lendo Heidegger, eu…”

“Cara, você é o Cornfed mesmo!”

“Obrigado… Enfim, Heidegger escreveu que a nossa capacidade de compreender profundamente o ser nos permite afirmar nossa própria identidade…”

“E daí?”

“E se pudéssemos manipular essa capacidade e assumirmos o ser que quisermos ser?”

“Isso é bobagem.”

“Talvez você tenha razão. Bem, vou voltar a ler o script.”

Quando chegou em casa, Everton pensou nessa conversa, que ele considerou a mais estranha que ouviu na vida. Não conseguiu dormir. Pensou na figura enigmática do ator que faz o papel de Cornfed. Seu instinto de detetive o mandou investigar o cara. Everton relutou no começo, mas não resistiu. Queria voltar a ser investigador, mesmo que seja sobre algo que não levava à nada e não traria nenhum lucro.

Voltou ao set de madrugada, quando não havia ninguém. Queria procurar documentos, qualquer coisa que leve a Cornfed. Vasculhou camarins e o escritório de produção. Encontrou xerox de documentos. Entre eles, estava uma cópia do RG de Cornfed. O susto gelou o espírito de Everton.

“Só pode ser brincadeira.”

O nome na identidade: “Cornfed” apenas. Nenhum sobrenome.

A foto: Cornfed fantasiado de Cornfed.

Everton pegou a numeração e a coisa só ficou ainda mais estranha. Poderia ser uma brincadeira, mas quando ele colocou os números no sistema computacional viu que o cara estava registrado como Cornfed e as fotos nos documentos eram sempre ele com a fantasia do personagem de Duckman. E ninguém achava estranho. Tudo normal. Que diabos era isso? Realismo mágico? Então, Everton lembrou da “Teoria da Ipseidade”.

“Não… Sem chance!”, pensou alto.

Não dormiu de madrugada. Na manhã seguinte, ligou para Carlos:

“Manda ele procurar outro consultor.”

“Mas Everton…”

“Estou fora, porra!”

Everton tentou voltar à rotina. Pouco a pouco ele foi conseguindo. Apagou os episódios de Duckman. Mas será difícil apagar a surreal experiência.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 04/09/2024
Reeditado em 05/09/2024
Código do texto: T8144422
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