Romance policial (V)

1

Há deuses da Peste em Salvador? Claro que trata-se de uma explícita referência ao brilhante filme do cineasta Rainer Werner Fassbinder.

2

Um detetive chamado Hebert acabou indo a fundo dessa questão quando imergiu na favela de Cosme de Farias para entender o que havia por trás do assassinato do amigo de infância. Ele teria ouvido que a morte do amigo foi “necessária” para que mais vidas fossem salvas. Achou a tese esdrúxula e acreditava obstinadamente que o amigo foi vítima por causa de motivos banais e nada nobres.

Primeiro, Hebert ficou sabendo da notícia do assassinato. Por estar enfiado no seu escritório ferrado e morando em outro lugar, ele acabou se alienando dos vizinhos e velhos amigos. Assim, ficou chocado quando perguntou a uma senhora sobre o destino de seu amigo Jonathan, o Jon Mão de Cola, chamado assim por causa de suas habilidades de bater figurinha.

“Jonathan morreu há 1 mês”, disse a senhora secamente.

“O quê?!”, perguntou Hebert, que se sentiu estonteante e precisou se segurar na grade do portão da casa dela. “Mas como!?”

“Nunca soube dos detalhes, porém acredito que tenha sido porque um massacre estava prestes a acontecer.”

O cara havia sido morto há um mês. Hebert não sabia, não foi ao funeral, sequer prestou condolências à família.

“Você é detetive”, afirmou a senhora. “Tenta descobrir.”

Detetive. Contudo, mercenário. O mote de Hebert é: “só investigo se me pagarem.” Saber da morte de Jon foi doloroso e devastador. Ainda assim, o dinheiro continua sendo o mais importante. Pensou em procurar a família de Jon. Talvez ela o contratasse para descobrir a “verdade”. Ou pode ser que ele se comova com a tristeza gerada pela perda de um rapaz jovem e promissor e isso o faça a desconsiderar a grana.

3

Em resenha publicada em 1977, o crítico de filmes do New York Times disse que o filme alemão Deuses da Peste é “o filme de gangster americano por excelência se o filme de gangster americano tivesse sido adaptado e atualizado para acomodar um bando de pequenos bandidos de Munique para quem o assalto a um supermercado suburbano bastante comum é ‘o grande trabalho”. Neste misto de crônica e conto, o que eu pretendo é adaptar o enredo de filme alemão de gangster para acomodar favelados em Salvador, Bahia. Qual o ‘grande trabalho’? O leitor poderá concluir o que quiser depois que terminar esta história.

4

Hebert se decepcionou com a família do amigo. Todos estavam convencidos pela seguinte “verdade”: a morte de Jon foi necessária para evitar um massacre ainda maior. Portanto, não iriam desembolsar um único centavo para que Hebert investigasse. Mas será que sua decepção era por causa da suposta falta de vontade da família em saber da “verdade” ou por que ele não iria receber um único tostão que o motivasse a ir a fundo nos becos e vielas?

Hebert procurou o primo de Jon, Eduardo, outro amigo de infância. Ele achou que encontraria uma abertura que pudesse utilizar para convencer a família. Enganou-se.

“Hebert, esquece isso”, disse o primo. “Não há nada para investigar.”

“Você acredita na conversa do ‘morto para salvar vidas’? Eu não acredito!”

“Você não é obrigado a acreditar. Só esquece esse assunto. Nada vai fazer Jon voltar dos mortos!”

Eduardo se tornou uma pessoa mais austera depois da morte do primo, que ele via como irmão. É como se o homicídio matasse a sua personalidade, deixando-o como uma casca vazia até outra personalidade, um tanto diferente da anterior, ocupasse o seu interior. Ele era um garoto brincalhão, depois um homem divertido. Agora ele só sorri em ocasiões muito especiais. Hebert notou isso. No entanto, desconfiava que não era a morte de Jon em si que o mudou, e sim a “verdadeira” razão do assassinato.

“Desculpa, eu não acredito. Para mim, é mentira!”, afirmou Hebert, apontando o dedo para Eduardo, que por uns segundos fechou o punho bem forte, como se ele estivesse com muita vontade de dar um soco no amigo.

“Essa é a nossa verdade. A verdade de todos que moram aqui. Você tem a sua verdade, que difere da nossa”, afirmou Eduardo, com o punho frouxo. Em seguida, ele vira as costas e vai embora.

O dinheiro já não parecia ser o mais importante. O enigma acabou gerando um fascínio. Hebert saiu perguntando pelas ruas sobre o caso e sempre dizendo a todos que não acreditava no que seria a motivação para o crime que ceifou a vida de seu amigo. Todos, porém, insistiram “que a nossa verdade é essa”. O detetive resolveu ir atrás da única pessoa que poderia lhe dizer algo diferente.

5

Duas mulheres possuem papéis fundamentais em “Deuses da Peste”. Aparentemente elas ajudam a formar um “triângulo amoroso” em que o protagonista está no centro. Entretanto, a aparição do personagem Gunther deixa tudo mais complexo, pois sugere-se que o triângulo pode ser mais complicado do que parece.

6

Hebert foi a uma lanchonete em Cosme de Farias. Não estava querendo lanchar. Seu objetivo era outro. Maria trabalhava nesse local.

“Hebert!”, ela disse.

“Não vai me dizer que ficou espantada em me ver”, afirmou Hebert, rindo.

“Já tem algum tempo…”

“Que horas você sai?”, ele perguntou, interrompendo-a.

“Às 22 horas.”

No horário, ele estava lá. Os dois foram até a casa dela. Um barraco dentro de um beco estreito. Não conseguiram segurar nem cinco minutos e se entregaram àquilo que a natureza ensina. Maria parecia expressar uma alegria contida. Seu cenho estava diferente de quando ela estava na lanchonete. Ela era uma moça trabalhadora, de caráter forjado no fogo - esfaqueou um namorado abusivo da mãe. Namorava Jon quando ele foi assassinado. No enterro, os óculos escondiam os olhos vermelhos. Quando recebia as condolências, sua postura ficava estoica.

Quando Hebert tocou no assunto, ela explodiu de repente, chocando o detetive.

“Porra! Eu estou tentando deixar isso para trás!”

“Eu só quero saber o que há… e não acredito naquela baboseira que repetiram para mim!”

Maria começou a chorar silenciosamente.

“Desculpa, eu não queria…”

“Deixe-o descansar em paz.”

“Sei que você vai me contar…”

“É aquilo que você ouviu…”

“Porra!”

“Houve um assalto no supermercado…”

“O quê? Maria, por favor…”

“Só sei disso. Me deixa em paz!”

“Está me dizendo que a morte de Jon tem a ver com o assalto…”

“ME DEIXA EM PAZ, CARALHO! VAI EMBORA!”

Hebert foi embora. Contudo, a reação de Maria não o entristeceu. Só uma coisa importava: acreditou que tinha uma pista em mãos.

7

Deuses da Peste é um neo-noir distinto. As convenções do gênero ainda estão lá. Há polícia, mulheres, cadáveres e tiroteio. Mas a ideia do “grande trabalho” ser o assalto a um supermercado expõe o caráter paródico do filme.

8

Hebert descia as escadarias que levavam ao beco onde Maria morava quando foi parado por dois caras. Eles usavam boné e estavam armados.

Um dos caras disse: “você tá perguntando demais. O que você quer saber?”

Hebert não disse nada. O outro cara lhe deu uma coronhada.

“Deixa eu te dizer. Seu amigo morreu para evitar um massacre. Essa é a verdade que nós queremos que seja. E eu não quero mais ver a sua cara por aqui. Agora, suma!”

Depois de chutes, pontapés e coronhadas, Hebert entendeu o recado. “É a verdade que nós queremos que seja”. Para mudar isso, Hebert teria que ser mais forte que os algozes de Jon. Ele preferiu ir embora do bairro. Estava intransigente sobre o motivo da morte do amigo. Mas nada como uma arma na cara para convencer qualquer um.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 24/07/2024
Reeditado em 01/11/2024
Código do texto: T8114021
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