Romance policial (IV)

No Brasil, não é tão incomum a contratação de detetives particulares para flagrar a traição ou adultério do cônjuge. Em Salvador, João Marcello é um desses investigadores privados que ganham dinheiro fuçando a vida alheia.

Ao contrário do que possa parecer, é um trabalho modorrento. Em tantos anos de prestação de bons serviços a maridos e esposas “chifrados”, foi sempre a mesma coisa. Ou seja, fotos de beijos, carícias e até mesmo de sexo entre os amantes. Ele jura que não julga. “Sou apenas um espectador imparcial”, ele diz. “Meu negócio é tirar fotos e mostrar ao contratante. Nada mais”.

É uma tese discutível. Um teórico do jornalismo certamente diria que a escolha de quais fotos mostrar, do local onde tirar a foto e até mesmo a escolha do ângulo e da lente refletem um posicionamento de Marcello. Suas preferências interferem no seu modo de tirar fotografias. Com isso, já não existiria mais imparcialidade. Suas fotos são recortes, construções sociais que espelham seus valores e referências.

“Mas meu trabalho não é jornalismo”, ele diria. E eu não conheço teóricos da investigação particular para saber o que eles diriam. Não sei nem se existem. De qualquer modo, houve um dia em que a monotonia foi abruptamente interrompida.

Tudo começou quando João Marcello recebeu a visita de Fred, um músico de Jazz que conseguia a proeza de mesclar calma e afobação.

“Eu nem gosto de fotografias”, disse Fred, com a cabeça voltada para o chão.

“E por que está me procurando?”, perguntou João, com um cenho que expressava desconfiança.

“Uma dúvida está me perturbando”, respondeu Fred. “Só estou aqui porque não tem outro jeito.”

Ah, a dúvida, aquela forma de contaminar a alma do homem e torná-lo possessivo. A nova aventura de João Marcello, tudo indica, será uma missão machadiana.

“Então fala logo o que é, homem”, afirmou Marcelo.

“Preciso que siga minha esposa Alice”.

“Já imaginei. Ninguém nunca me procura para tirar fotos de um possível crime”, disse Marcello.

Fred mostrou fotos de Alice, uma mulher ruiva belíssima. Indicou como João Marcello poderia encontrá-la e segui-la. “Melhor que você faça isso à noite”, disse Fred.

Antes de Fred ir, João perguntou: “Por que você não gosta de fotografias?”

“Acho que a lembrança precisa ser guardada na memória que há na nossa cabeça, e não na forma de fotos.”

João quase ficou perplexo. Pensou em rebater Fred, mas optou pelo silêncio.

Com as informações, João foi ao lugar, onde ficou de tocaia em frente ao local de trabalho de Alice, um imenso salão de beleza que ficava nas proximidades de Ondina.

Na hora em que o salão fecha, Alice enviou a Fred uma mensagem: “vou beber com Marlene e as outras”. De fato, João viu Alice e três mulheres entrarem num carro que parou em frente ao salão. Não dava para ver se o motorista era homem ou mulher. Naturalmente, o detetive particular seguiu o veículo.

O carro com Alice e as outras pararam em frente a um casarão que ficava na região de Amaralina. Desta vez, deu para ver que dirigia. Era um homem. Alto, musculoso e com blusa de botão. Todos entraram na casa. Era a parte mais difícil do serviço. Mas João era experiente. Ele analisou bem a residência. Teria que subir, dar um jeito de chegar ao telhado ou a um lugar que possa tirar fotos de dentro do interior da casa.

“Meu trabalho não é jornalismo”. Essa frase agora faz ainda mais sentido. João não está preocupado com o interesse público. Apenas com o interesse do seu cliente. Isso o leva a ter menos escrúpulos. Ele está disposto a tudo, inclusive barafustar na privacidade alheia, para tirar fotos. Aliás, o âmago do seu trabalho era exatamente isso.

João finalmente chegou de um local onde poderia ver parte do interior da casa. Uma árvore que estava no quintal. Ele subiu até a altura desejada. Dentro da residência, ele vê as outras mulheres conversando. Contudo, o seu foco (sem trocadilho) está em Alice. Nota-se uma postura imponente nela. O seu interlocutor parece intimidado. Sua câmera a segue até um quarto, onde ela conversa com um homem, que não era o motorista. Ao ampliar a imagem até o rosto de Alice, João vê seus olhos viçosos e, de certo modo, assustadores. Era como se ela pudesse ser capaz de ter o homem que quisesse.

Ela e o homem seguem conversando e o tempo passa. Ficam só no papo. Durante 1 hora e meia. Não acontecia nada. João achou que ele poderia estar sendo vítima do “Trabalho de Blue”. Blue era o personagem de “Fantasmas”, romance de Paul Auster, que precisava ficar de olho em Black. Ele estava sempre na expectativa, pois Black nunca fazia nada de suspeito.

João tirou várias fotos que não sugeriam nada mais do que uma conversa entre amigos. No entanto, o galho da árvore onde ele estava em cima partiu e ele acabou caindo no quintal.

Isso chamou atenção dos seguranças. O detetive tentou explicar em vão. Os caras espancaram ele e quebraram a câmera. Voltou para casa todo arrebentado e não disse a Fred que não viu a esposa traí-lo. No outro dia, ainda se recuperando, lembrou da fala de Fred sobre as fotografias e a memória. João não tinha foto alguma daquela noite. Estava tudo na memória dele. Ele poderia cobrar Fred por isso, aí ia saber se o que ele dizia sobre guardar na memória era legítimo. Será que ele pagaria por lembranças na cabeça de João ou só pagaria pelas fotos?

De qualquer modo, a fotografia não era a única maneira de preservar lembranças. O formato escrito também era uma maneira. João sentou na sua mesa e começou a digitar no computador. Escreveu tudo que viu naquela noite. No fim, não sabia se era conto, crônica ou um gênero híbrido.

Mais dias se passaram, quando terminou o conto, desceu à cozinha para pegar o café e o jornal. Tomou um susto quando viu a cara de Fred embaixo de uma das manchetes: “Músico de jazz mata e esquarteja a esposa; polícia suspeita que o motivo foi ciúme”.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 22/07/2024
Código do texto: T8112538
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