O ACASO ACONTECE, QUANDO MENOS SE ESPERA

Dona Úrsula, era daquelas senhoras que o passar do tempo não lhe causou problemas estéticos, e assim, se manteve de bem consigo mesma. Agora, que acabara de completar suas sessenta e cinco primaveras, vinha a cada dia se tornando radical, logo ela, que aprontou poucas e boas ao longo da sua agitada vida, nesse momento não suportava mais assistir comportamentos sexuais explícitos da comunidade gay.

Esse tipo de sentimento veio à tona a partir do momento que passou a ser frequentadora assídua da igreja batista, locada ali pertinho de sua residência, no Flamengo. Ela que fora por tanto tempo uma pessoa das mais liberais em seu grupo de convivência, muitas vezes chegou a assustar amigos, seu próprio marido e filhos com posições de vanguarda.

Agora, depois da perda do grande conselheiro de boa parte da vida, não sei se insegurança, ou qualquer destas fraquezas, que se abatem sobre uma pessoa, quando perdem um ente querido muito próximo, principalmente quando o fato ocorre em idade avançada.

Repentinamente essa distinta senhora se transformou numa carola, daquelas que seguem ao pé da letra, tudo que o pastor preconiza em seus longos sermões. Antigas seguidoras do pastor, que há anos davam suporte à igreja, agora ficaram relegadas a um segundo plano, Henrique só tinha olhares para o discreto charme de Úrsula, sempre de bom humor, bem vestida e perfumada.

Foi depois de uma longa campanha visando à modernização da igreja, entenda isso como, climatização do ambiente acompanhada de novos equipamentos de som e imagem, que enfim trariam mais conforto aos fieis, e maiores possibilidades midiáticas para o culto.

Henrique tomou coragem, e conseguiu se sentir a vontade para convidá-la para um jantar romântico, em aconchegante restaurante na Praia do Flamengo.

Que maravilha, a felicidade até tarda, mas não falha, enfim chegou à vez de Henrique, pela primeira vez ter alguém bem próximo, para ajudar a discutir e receber subsídios para minimizar problemas, que cotidianamente caiam sobre seu colo. Ele até dispunha de um grupo de conselheiros, mas só os usava para casos mais simples, os complexos, que exigiam mais atenção, acabavam ocupando o tempo que deveria ser dedicado ao ócio.

O casório foi rápido, e restrito a poucos convidados. Quando se deram conta, já dormiam diariamente sob o mesmo teto, naquele amplo, panorâmico e bem iluminado apartamento de Úrsula, bem de frente para o Aterro do Flamengo.

E ainda dizem que a dita terceira idade é um ocaso de tudo, do que um dia tinha sido tão bom, esse casal era a contra prova viva dessa teoria furada. Agora, traçavam o roteiro para uma temporada na Europa, e como isso mobilizava o tempo do casal de pombinhos.

Mas a vida que tinha sido tão generosa com ambos, nestes últimos anos, estava prestes a armar uma situação, que mudaria em definitivo o rumo de suas histórias.

Foi num bar em Laranjeiras, que a trajetória do casal começou a desandar, e o pior, por motivos dos mais fúteis. Tudo começou com a chegada de um casal masculino inter-racial de homossexuais, que optaram por se sentar numa mesa ao lado. Não demorou muito para que ambos começassem a se agarrar, com beijos calientes e mãos ágeis a se tocar de maneira grosseira para um ambiente público.

Ao invés de pedir a conta e abandonar o local, afinal ainda vale aquele ditado que afirma com todas as letras: “incomodados que se mudem”. Mas não, Úrsula incomodada, insistia para que Henrique tomasse uma atitude, afinal isso não são modos para dois marmanjos barbudos se portarem em um bar.

Da inércia dele, para a violência dela foi um pulo, completamente fora de si, ela partiu com um sapato de salto alto em cada mão, para agredir os rapazes, que desprevenidos, embalados que estavam pela excitação mútua, sentiram algum objeto pontiagudo penetrar na fina pele de seus rostos.

O que não faltou foi sangue na mesa do casal, a dona do bar imediatamente acionou a polícia, que por incrível que possa parecer, ainda pegou os ânimos exaltados no ambiente. Veio a voz de prisão para o grupo. Já saíram do local algemados e encaminhados para a 9ª DP, ali no Catete.

O Delegado Protásio, demorou um pouco para atender o grupo, quando enfim, um escrivão os encaminhou para a privativa sala do delegado, o clima continuava quente. Conciliador, e conhecedor do rigor da lei para casos como o ocorrido, que envolve racismo e homofobia, chamou o pastor para uma conversa ao pé do ouvido. Explicou a gravidade da situação, pois este tipo de crime é inafiançável, e o bicho ia pegar para sua esposa, provavelmente com sobras de coadjuvante para ele.

Agora, chegou à hora do pastor usar todo seu carisma, e convencer as vítimas aceitar alguma compensação financeira, para não levar adiante o processo.

De nada adiantou a lábia do pastor Henrique, ambos os rapazes irredutíveis, clamavam por justiça, e não quiseram discutir cifras.

O delegado então encaminhou os rapazes ao IML para fazerem o exame de corpo delito, logo em seguida liberados, o delegado ainda lembrou que ambos poderiam mover uma ação de perdas e danos contra o casal homofóbico, mas eles se contentaram com as consequências para a destrambelhada agressora.

Úrsula foi encaminhada do IML diretamente para o Complexo Penitenciário do Gericinó, mais especificamente para uma cela especial do Instituto Penal Santo Expedito, já que esse tipo de crime, geralmente não é bem vinda às celas.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 16/07/2024
Reeditado em 16/07/2024
Código do texto: T8107950
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