FESTANÇA ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA
O grupo de amigos guardava uma característica pra lá de especial, todos tocavam algum instrumento desde muito jovens, e tanto nas peladas das quarta feiras à noite, como nas de sábado pela manhã, transformavam a resenha do pós jogo num momento de prazer para todos.
Depois de muito correr atrás da gorduchinha, finalmente chegava à compensação: cerveja gelada, tira gosto fresquinho e bate papo com colegas, que servia para diluir pequenos atritos, que ocorrem no calor da disputa, e se não amenizados, acabam carregando problemas futuros dentro das quatro linhas.
Depois da bem saboreada hidratação inicial de cerveja, ânimos serenados, os quatro iam até o estacionamento e voltavam cantarolando e tocando improvisadamente seus instrumentos, aí sim, ficava completa a trilogia do prazer sedentário: cerveja gelada, quitutes variados e sambinha raiz.
Nas noites de quarta feira tudo rolava com mais de moderação, afinal o dia seguinte era quinta feira, portanto exigindo sair da cama cedo, e ainda rolava certa paúra de cruzar com uma Lei Seca no trajeto de volta.
Agora, no sábado a jornada se alongava, todos paravam de jogar as dez, e dali prá frente, se podia gozar de uma liberdade, comparada apenas aquela desfrutada na adolescência, com responsabilidades diminutas, enquanto o tempo ainda permanecia com uma elasticidade tamanha.
Esse grupo de batuqueiros não restringia de apresentar sua arte apenas na nossa resenha semanal, todos tinham sua profissão, mas não cobravam suas apresentações apenas em dois momentos de pura paixão pelo futebol, no fim das nossas peladas e durante os jogos do Botafogo, onde engrossavam a barulhenta torcida jovem nas arquibancadas do Maracanã, e posteriormente migraram para o Engenhão.
Como todo grupo musical que se preza, este também tinha um líder, o Joca, um negão de um metro e noventa, que constantemente precisava abaixar a cabeça, quando entrava em veículos coletivos, mas que também impunha respeito, não só pelo tamanho, mas também pelo vozeirão de tenor. Além da natural liderança, tocava cuíca, fazia papel de puxador das músicas e empresário da banda.
Como todos tinham suas profissões, suas apresentações se caracterizavam pelo improviso, e o mais bacana, os resultados não podiam ser melhores. Adoravam começar uma música com um único instrumento, sabe aquela máxima do bolero de Ravel que vai incorporando outros instrumentos, eles se esmeraram nessa estratégia, que incorporava assovios e vozes aos instrumentos.
O público constantemente se surpreendia com essas práticas, enquanto eles se divertiam incorporando novos arranjos para músicas invariavelmente conhecidas de uma maneira padrão.
O que a princípio servia como complementação salarial, foi ganhando corpo, e cada um há seu tempo foi abandonando sua antiga profissão, para se dedicar exclusivamente a música.
A coisa ia tão bem, que resolveram comprar um micro ônibus, para assim facilitar seus deslocamentos dentro da cidade, que logo expandiu suas apresentações para cidades da Baixada Fluminense, e também para o outro lado da baía da Guanabara.
Todos artistas desse mundo especial, sabe das paixões que despertam no público, ênfase para o segmento feminino, e claro, com eles não foi diferente. Logo, já tinha sido criado um fã clube, que os seguia apresentação, após apresentação.
Não foram poucos os momentos especiais, com público e contratante repetindo o pedido de bis, ao final da apresentação, com direito a elogios do prefeito da cidade. Em outros shows, empresários faziam questão de conhecê-los e presencialmente entregar-lhes o cachê em espécie.
A coisa ia tão bem, que muitas vezes não apareciam nas peladas de sábado, fruto das noitadas de sexta-feira. Mas as quarta-feiras foram preservadas, não só pela atividade física, mas principalmente por saberem que ali era onde tudo havia começado.
O ocaso da banda ocorreu numa apresentação contratada pelo chefe da milícia de Rio das Pedras, aliás, o berço da milícia na cidade. Ao completar 40 anos, o ex-policial Motinha, resolveu comemorar em grande estilo, no campo de futebol da Praça Rio das Pedras montou um palco e liberou chope e salgadinho para a comunidade a partir de meio dia, quando a banda estaria no palco para entreter o público por quatro horas consecutivas.
Tudo transcorreu como o planejado, a banda tocou por duas horas, houve uma parada para hidratação e alimentação, você bem sabe que no Rio de Janeiro em fevereiro nesse horário tem carnaval e a impressão é que o sol quer também participar das festas.
No camarim climatizado, enquanto faziam a merecida pausa foram apresentados solenemente ao chefe da milícia e sua primeira dama, ambos trajando novas camisas rubro negras e muito ouro pendurado no pescoço, braços e orelhas, curiosos por melhor conhecer os componentes da banda, se decepcionaram quando tomaram conhecimento da torcida jovem de seu desafeto rival.
Mesmo com o marido presente, Natasha a louraça não tirou os olhos de Joca, que constrangido, puxou companheiros logo de volta para o palco.
Tudo foi bem até o fim do espetáculo, onde atenderam o já protocolar pedido de bis. Nem passaram pelo camarim, Joca temia por alguma atitude impensada da mulher do chefão.
Partiram direto para o Micro ônibus, que o motorista manteve o motor acionado para manter climatizado seu interior. Uma surpresa desagradável aguardava Joca ansiosamente, ele se assustou com a presença enquanto subia os poucos degraus do coletivo. Fez meia volta para não dar a menor chance ao erro. Infelizmente já era tarde, algum olheiro de Motinha soara o alarme de mais uma escapulida de Natasha.
O chefe da milícia estava escoltado por dois guarda costas armados até os dentes. Houve uma tentativa de explicação por parte de Joca, visando acalmar ânimos, em vão.
O veículo com janelas escuras servia agora para ocultar qualquer suspeita do que ocorria em seu interior, veio à ordem para o motorista seguir viagem, enquanto Motinha pessoalmente prendia algemas ligando braços e pés de bancos, de cada um dos passageiros.
Terminada a tarefa, seus acompanhantes começaram a derramar gasolina sobre tudo, não poupando sequer os passageiros acorrentados. O forte cheiro de gasolina já começava a causar náuseas em todos. Motinha quase em êxtase, repetia freneticamente o grito de guerra da torcida alvinegra: “FOGO, FOGO, FOGO!!!!”
Para surpresa de todos, e sobrevivência da banda, algum morador traíra relatara o ocorrido à polícia, que logo conseguiu identificar o coletivo, passando segui-lo à distância.
Quando tudo parecia perdido, policiais cercaram o veículo e exigiram que todos descessem desarmados, assim que pisaram na deserta rua de terra, se ouviu o confronto simulado, seguido de um silêncio sepulcral.