A matriz dos mundos paralelos
Rick estava enfastiado em seu escritório. Ele tem entre 40 e 50 anos. Sua face é bela e fria. Tem um corpo atlético. Sua personalidade é austera. Durante sua vida e trabalho, sempre lidou com fatos programados. Ele não gosta de imprevisibilidade.
Um membro da Inteligência britânica apareceu. O cidadão deu “bom dia” e jogou uma pasta em cima da mesa. Mas por que alguém ligado à atividade da Guerra iria querer vê-lo? Um contexto dará alguma luz sobre isso. Os dois personagens citados são contemporâneos à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e o encontro deles foi indiretamente provocado por acontecimentos que tiveram início em outro território. O Império Alemão, inimigo dos ingleses, sofreu problemas de escassez de munição. O conflito estava com um ritmo açodado, impedindo que a produção de bombas acompanhasse o consumo. Por consequência, os alemães teriam que ampliar significativamente o seu poder de precisão com o intuito de atingir os alvos que estão no Império Britânico, evitando, com isso, o desperdício. O uso de espiões foi uma tática eficaz para descobrir onde estão esses alvos.
Isso significava que o Serviço de Contraespionagem teria mais tarefas a cumprir. Agentes dessa instituição descobriram que havia, no mínimo, um espião na Grã-Bretanha. Depois de uma análise rigorosa, identificaram três suspeitos de espionagem. Um deles foi localizado em Matrices City, uma cidade do Reino Unido conhecida pelo planejamento cuidadosamente elaborado. No meio da cidade, há um único conjunto de nove prédios:
I I I
I I I
I I I
Em torno dos edifícios, há casas e estabelecimentos. Além disso, todos os imóveis são equidistantes entre si.
A Inteligência Britânica tem razões consistentes para acreditar que Matrices é um alvo dos inimigos. Em alguns dos prédios ou casas, estão escondidos armamentos e uma fábrica de munição. Bastaria um ataque para o prejuízo ser incomensurável, capaz de decidir a guerra a favor dos algozes.
"Mas se os alemães sabem que os armamentos estão ali, por que não bombardear a cidade e destruir logo tudo?", os britânicos se perguntavam. A hipótese da escassez no lado inimigo foi cogitada pelas autoridades inglesas incumbidos de lidar com a guerra. Por isso entendiam que o espião em Matrices teria sido enviado para descobrir e informar em quais dos prédios e/ou casas estão os armamentos e a fábrica. Ele precisa ser descoberto e pego antes que tenha êxito.
O principal suspeito em Matrices chama-se Yu Li, professor de matemática da Universidade local. A Inteligência monitorou ele brevemente. As suas frequentes e insólitas visitas a prédios e casas criaram as suspeitas em torno dele. Embora isso seja insuficiente para afirmar que Li é o espião, é o suficiente para considerá-lo como um suspeito.
Alguém em Matrices tem que investigar o professor mais de perto.
É daí que surge a necessidade de contar com Rick.
A missão era simples: seguir e vigiar Yu Li, o matemático. Caso ele seja espião, Rick deveria capturá-lo vivo. “Qualquer coisa diferente disso significa fracasso”, essa frase define o Homem que incumbiu Rick para a missão. Ele tem alguma semelhança com o detetive - um cenho que expressa distanciamento emocional e uma personalidade severa -, mas possui uma diferença fundamental: era perfeccionista. Tudo tinha que sair exatamente como ele planejou. Em uma missão antes da Grande Guerra, ele exigiu que se capturasse um empresário “totalmente ileso”. Por causa de um hematoma no rosto do homem, ele considerou que a missão “falhou”.
“Comece agora, não perca nenhum segundo a mais”, disse o homem, antes de ir embora.
Rick era um detetive particular. Ele prestou incontáveis serviços ao governo do Reino Unido. Isso lhe deu uma habilidade inaudita: tornou-se um especialista em pegar espiões. Ele foi funcionário do governo. Construiu uma reputação imaculada, o que certamente eleva a credibilidade do seu escritório de investigação particular. Era incomum que o governo recorresse a detetives privados para missões desse tipo. Mas dois fatos pesaram: 1) a Inteligência estava sobrecarregada de tarefas e existiam espiões em outras regiões que eram potencialmente mais danosos que Yu Li; 2) Rick era tão talentoso que o governo acreditava ser bastante provável que ele derrotasse Li, caso o professor seja o espião.
O detetive abriu a pasta e começou a ler.
Quando terminou, disse: “pelo menos, eu vou ter alguma coisa para fazer nesta noite.”
Ele saiu do escritório e foi ao local de trabalho de Yu Li, dando início ao embate. Rick deveria ficar de olho no professor e, caso confirmadas as suspeitas, deveria impedir que ele passe a informação para o inimigo. Pela demora na identificação do suspeito, o governo britânico acredita que Yu Li já pode saber em quais prédios ou casas estão os armamentos e apenas está esperando a hora certa para contar isso aos alemães. Se a tese não se confirmar, Rick apenas terá um dia ainda mais tedioso.
Rick chegou à Universidade de Matrices, onde Li é professor visitante. Próximo à instituição de ensino, está a redação do jornal Newsblood, onde alguns manifestantes protestam contra a linha editorial do veículo, conhecido pela abordagem sensacionalista e por colocar desenhos de cadáveres nas capas das edições.
O detetive desvia dos protestos e entra na universidade. Ele planejava espiar o professor “de longe”. Se pedisse para ser ouvinte na aula, estaria se expondo demais. Li não poderia sentir a presença incomum de Rick. Se ele desconfiasse de qualquer coisinha, tudo estaria perdido.
Por isso, Rick chegou assim que a aula de Yu Li encerrou. Ele tinha que ser rápido para checar a sala. Rapidamente passou o olho no lugar. Depois viu o quadro, que tinha o seguinte desenho:
1 0 0
0 1 0
0 0 1
Ele não fazia ideia do que seria isso. Era algum assunto matemático, uma área que ele tinha pouco domínio. Não poderia pesquisar, pois tinha que ficar de olho em Li.
E foi assim, pelo resto do dia.
Com o passar do tempo, Rick chegou a duas conclusões: 1) Yu Li sabia que estava sendo seguido e por isso fingia agir normalmente. Se isso for verdade, Rick não poderá desgrudar dele nem um instante, pois o espião passará a informação da forma mais sutil possível; 2) Yu Li não era espião e não passava de um homem pacato.
Os espiões anteriores pegos por Rick deslizaram em algum momento, o que era fatal para eles. O detetive era invisível para esses futuros capturados. Nenhum deles foi capaz de notar que estava sendo seguido. Será que Yu Li era um espião fora do comum? Um mero professor foi capaz de passar a perna no maior detetive da Grã-Bretanha?
Durante o resto do dia, depois da aula, Li foi para uma biblioteca, comprou café e jornal. Por fim, foi para casa. Uma rotina normal. Rick não tirou os olhos dele nem por um instante. Inclusive checou os livros que ele pegou. Até deu um jeito de analisar bem o dinheiro usado por Li para comprar o jornal.
Não houve deslize algum. E o mais difícil estava por vir. Como ele vigiaria Yu Li dentro da casa do professor? Li poderia ir para algum cômodo da casa e passar as informações com o uso de alguma tecnologia. Rick teria que improvisar para lidar com uma situação nova.
Quando Li chegou à porta de casa, era noite. Rick colocou a pistola nas costas dele. Li possuía um rosto que Rick descreveu como “a face da ingenuidade”. Olhando para ele, se apegando à superficialidade, ninguém suspeitaria que esse homem era um espião. O modo dele de falar também era calmo. Todavia, se observar bem, notará que esse tipo de pessoa é o espião perfeito. O espião é discreto. Foi por isso que Rick não abaixou a arma e foi para casa. Ele entendia que aquele rosto era uma farsa, uma camuflagem.
“Sem movimento brusco”, disse o detetive. Ele escutou o coração do professor acelerar.
“O que é isso? Roubo?”, perguntou o professor, trêmulo.
Rick não respondeu nada.
Os dois entraram.
“Fecha a porta”, ordena Rick, apontando a arma.
Li obedece. Rick manda ele ir na frente e diz para levá-lo à sua biblioteca pessoal. Quando o professor passa por perto de Rick, reage. Coloca força nos punhos de Rick para que ele aponte a arma para cima. Três disparos no teto. A luta corporal começa. O matemático tenta desarmar Rick, mas o detetive dá uma cabeçada nele, derrubando-o. Li bate a cabeça na mesa e cai no chão. O sangue começa a escorrer.
Pela primeira vez, Rick sente-se aflito. Ele começa a suar frio. A situação perdeu o controle. Ele nem sabe como descobrir se Li está vivo ou morto. Abriu os botões da blusa do matemático e encostou o ouvido no peito. Aquele barulho de coração acelerado desapareceu. Era um silêncio horrendo, o silêncio da morte. O nada emergia do peito de Li. Quando Rick olhou o peito do morto, viu a tatuagem na forma do mesmo desenho que estava no quadro da sala de aula:
1 0 0
0 1 0
0 0 1
Após confirmar a morte do seu adversário, o detetive decidiu que precisava confirmar, mais do que nunca, as suspeitas do governo: Li era um espião. Desse modo, ele se sentiria menos culpado pelo homicídio, apesar de ter falhado em levá-lo vivo. O gelo do remorso iria derreter, talvez. Ele vasculhou cada cômodo e não achou nada que incriminasse o professor. Foi à biblioteca do morto e não achou nada além de artigos avançados de matemática. Na maioria deles, havia os mesmos números de antes:
1 0 0
0 1 0
0 0 1
Rick compreendeu do que se tratava: era matriz identidade. Um assunto básico de matemática que Li conectava a cálculos mais complexos e a uma teoria astronômica exótica. Ele a chamava de “Teoria da Matriz dos Mundos Paralelos”. Segundo o professor, há Terras alternativas. No entanto, a matriz identidade sugere que os mundos em diagonal - os “mundos-1” - são quase idênticos entre si. Isso significa, por exemplo, que o Império Britânico é quase o mesmo em todos os mundos diagonais. Se houver diferenças, são sutis.
Por outro lado, os “mundos-0” designam uma variedade de mundos radicalmente diferentes entre si e em relação aos “mundo-1”. Isso significa que pode-se encontrar uma diversidade infinita de versões do Império Britânico nos “mundos-0” ou é possível que esse Estado imperial sequer exista em vários desses universos alternativos.
Ou seja, haveria poucas diferenças entre Rick e Li nos “mundos-1”. Ao pensar nessa hipótese, Rick acabou sendo contaminado pelo espírito especulativo presente nos textos do matemático. Ele percebeu que aparentemente há uma linha tênue entre Li ser espião ou não. Significa, portanto, que mesmo nos mundos diagonais, há versões de Li que são espiões e há versões que são inocentes. Mas a mudança de “professor” para “professor-espião” certamente não é sutil. Eis o paradoxo: uma mudança drástica pode ser alcançada se uma linha fina for atravessada. Li, se for mesmo culpado, conseguiu a façanha de se transfigurar de professor para espião com apenas poucas alterações.
O detetive gostou da reflexão acerca das hipóteses matemáticas e astronômicas de Li. Contudo, ao mesmo tempo em que a abstração exerce fascínio por causa das múltiplas possibilidades que oferece, também planta dúvidas e contamina a alma com incertezas.
Enquanto o professor era um homem de ideias, incentivado pelo “método platônico”, um teórico por natureza, o detetive era um homem prático, com paixão pelo manual, pelo palpável, pelo pragmatismo. Ainda que acreditasse no exotismo das teorias de Li, ele compreendia que esse monte de número e conjecturas esquisitas não tinha qualquer utilidade prática.
A distração com o multiverso não derreteu o remorso de Rick. Ele não encontrou nada que incriminasse Li. Não havia nenhuma evidência de que era um espião. Saber que pode ter assassinado um homem inocente lhe provocou angústia. Desta vez, o coração acelerado era o dele. E como Li era um respeitado professor, isso sairia em todos os jornais.
Dias depois, em sua casa, na cama com garrafas vazias de bebida alcoólica, Rick se sentia derrotado. O Homem da Inteligência que foi ao seu escritório tinha sido bem claro:
“Traga-o vivo”.
Ele matou Li por acidente. E sem ter nenhuma certeza de que pegou o cara certo. Em um momento de reflexão, ele questionou que, às vezes, seria melhor se apegar à abstração e à especulação. Elas oferecem dúvidas, mas são teorias inofensivas. A dúvida oriunda da prática é mais cruel. O erro prático pode custar muito caro. Nesse caso, pode ter custado a vida de um importante professor.
Pelo rádio, toda essa reflexão se dissipou por causa de uma notícia. A incerteza abandonou o espírito de Rick, depois que ele escutou o radialista, e deu lugar ao horror. De algum modo, o espião comunicou a Berlim em que locais estavam os armamentos. O bombardeio acertou prédios com êxito. Isso significa que o detetive fracassou totalmente.
A Inteligência Britânica ficou confusa. Tentou descobrir como isso aconteceu. A resposta estava num jornal: a capa da edição de Newsblood mostrava o desenho do professor de matemática morto. Seu corpo foi encontrado, e depois desenhado, do jeito que Rick deixou. A blusa aberta no peito, com a tatuagem exposta:
1 0 0
0 1 0
0 0 1
Mais do que uma matriz que explica supostos mundos paralelos, a tatuagem mostra um enigma que foi decifrado pelos alemães. Li havia descoberto onde estavam os armamentos: em três dos nove prédios centrais. A sua teoria matemática dos mundos também serve como metáfora para apontar os prédios alvos. A distinção entre “mundo-1” e “mundo-0” diferencia os edifícios que deveriam ser bombardeados daqueles que não deveriam. É só notar que o número 1 aparece em diagonal. A sua morte e a exposição da tatuagem do seu corpo no jornal sensacionalista foram os meios encontrados por Li, premeditadamente ou não, para informar Berlim.
Pelo seu fracasso, Rick caiu em desgraça. E a Inteligência Britânica teve que ser reformada. Na morte, Yu Li venceu.