Azar no jogo, azar no amor

Sete e meia. Uma linda manhã porto-alegrense. Maria Clara entrou em seu apartamento, invadiu a cozinha, ligou a cafeteira e repousou-se na sua cadeira de balanço. Alcançou o jornal do dia anterior que estava ao seu lado e acendeu um cigarro. O café esquentou. Pegou-o e tornou a sentar-se.

Enquanto lia o jornal, pensava no aluguel atrasado e no horário marcado com a manicure pra mais tarde.

Conferiu os classificados, a seção de cinema e empregos. Havia a seção de relacionamentos. Curiosa, ela conferiu.

Foi analisando os tipos: "Agnaldo, 40 anos, divorciado, procuro um amor eterno e fiel". "Josélia, 56 anos, procuro homens evangélicos". "Otávia, 23, estou solteira e quero relacionamento sério". Riu e continuou conferindo. Deu uma baforada no cigarro, conferiu o café e prendeu-se num tipo: "Lucindo, 55 anos, sou negro, procuro mulher acima do peso entre 50 e 60 anos e que seja carinhosa". A foto estava estampada abaixo da descrição. Era realmente um homem negro. Feio. Aparentava ser gordo e careca. Maria Clara sentiu-se atraída. Com uma caneta, contornou o telefone da descrição e ligou.

- Alô, acabei de ver no jornal, na seção de relacionamentos, um rapaz que me interessei. Como posso pegar seu endereço e telefone?

- Quem a senhora gostaria de obter informações?

- Deixe-me ver... - ela vasculhou o jornal. - Lucindo! Lucindo Nunes é seu nome.

- Vixe...

- O quê?

- Este tal de Lucindo vive ligando aqui querendo saber se alguém está a procura dele. Hoje é o dia de sorte dele.

- Legal.

O informante passou o endereço e o telefone e sem hesitar, Clara ligou.

- Alô?

- Pois não?

- Você é o Lucindo?

- Sim, sou eu mesmo. Quem gostaria?

- Meu nome é Maria Clara. Te encontrei na seção de relacionamentos do jornal.

- Desculpa a pergunta, mas... quantos anos você tem, Maria Clara?

- 52 e meio - deu uma risadinha pra disfarçar seu lado jocoso.

- Ah! Ótimo! Gostaria de vir fazer-me uma visita?

- Se possível sim.

- Só mais uma pergunta: qual a cor da sua bolsa?

- Bege.

- É pra me perfumar quando você estiver chegando, aí vejo da janela. Posso te passar meu endereço?

- Sem problemas. Já o tenho. Te encontro às nove.

- Certo.

Desligou. Arrumou-se. Vasculhou as gavetas. Pegou a bolsa bege e saiu.

Clara chegou ao local às oito e meia. Não era longe de seu apartamento. O prédio parecia antigo. Quem o visse de noite, pensaria que chacinas ali ocorreram. Logo, notou que o prédio era na verdade um hotel. Tirou algo do bolso, pressionou-o e colocou no bolso da camisa.

- Hotel Aqueronte - leu para si mesma. - Bastante estranho prum nome de hotel.

Entrou. O porteiro dormia. Com um leve tapinha no ombro esquerdo, ela o despertou.

- Por favor, apartamento 17.

- Há alguém, senhora. Escolha outro.

- Alguém me espera lá, amado.

- Ah sim, deixe-me ver seus documentos.

Ela os mostrou.

- Deixe-me apenas ligar para lá para que o anfitrião esteja ciente.

- Certo.

Enquanto o porteiro falava ao telefone com Lucindo, Maria Clara vislumbrava a escuridão da portaria.

- Ele já a espera. 1º andar.

Ela subiu a pé pela escadaria. Não gostava de elevadores. Logo, defrontou-se com o quarto 17.

Bateu na porta. Nenhuma resposta. Notou a campainha ao seu lado e a tocou. Dava-se pra ouvir passos dentro do quarto. Logo, a porta abriu.

Um homenzarrão de quase 2 metros abriu a porta. Não era o cara da foto.

- Entre - ele disse.

Sem pensar, ela entrou.

- Você não é o cara da foto do jornal, né?

- Não - respondeu e deu uma risada estupidamente ligeira. - Mas eu sou o Lucindo.

- Então posso saber que porra está acontecendo? - ela perguntou.

- Ganhei a aposta.

- Qual aposta?

- Sabe o cara da foto?

- Sim. O que tem?

- Você notou que a foto é de um presidiário?

Ela ficou calada. Ele continuou:

- Então, aquele cara negro é um amigo meu. Seu nome é Raimundo. Ladrão de carros e estelionatário. Está preso porque tentou um ramo novo: roubo de banco. Sua inexperiência foi o motivo dele estar onde está.

- Certo, mas o que tudo isso tem a ver comigo?

- É que ele e eu apostamos que conseguiríamos tirar dinheiro de algumas otárias, sabe?

- Como é que é?

- Sim, é o seguinte: primeiro eu me infiltrei na polícia, disfarçando com certa ternura, e roubei sua foto de um arquivo. Depois, nós combinamos que eu enviasse para o jornal sua foto pro jornal e inventasse uma descrição. Como fui gigolô, sei o tipo de mulheres que procuram relacionamentos em jornais: gordas, velhas, divorciadas e cheias da grana, pois você mesma sabe que aquele jornal é mais vendido pra pessoas de classe média. E por último: atraí-las até aqui.

- Muito bem. Estou impressionada.

- Certo, agora pode passar a grana, querida.

- Deixe-me só avisar-te de uma coisa: você está preso!

- Como?

- Sim. Está preso. Qualquer coisa que disser e fizer poderá ser usado contra você no tribunal.

- Você é policial?

- Digamos que sim.

- Prove.

Maria Clara tirou uma pistola Mauser 80 SA e apontou.

- Estou aposentada, mas não morta.

O farsante tentou correr e Maria Clara deu um tiro para o alto.

- Pare aí, filho de uma boa puta! - ela sorriu maliciosamente para ele.

- Moça, deixe-me ir, era uma brincadeira - ele se ajoelhou, aos prantos.

- Pare com sua cena. Você acha que está escrito "otária" na minha cara? Otário é você que escolheu o bairro mais violento da cidade prum encontro. Descobri qual é a sua quando perguntou a minha idade e já fui colocando a arma na bolsa. Desde quando um cara se interessa por cor de bolsa? Tente ser original da próxima vez, se é que vai ter próxima.

- Moça, deixe-me ir! Juro que não farei mais nada desse tipo com ninguém.

- Fará pior?

- Não, eu juro - ele chorava e babava. - Eu juro!

- Você não vai a lugar algum. O que você vai fazer é ficar quietinho enquanto eu ligo pra polícia.

Ela pegou o telefone. Ele estava a cerca de três metros de distância. Enquanto ela discava, ele levantou-se e correu em sua direção. Ela o fitou, franziu o cenho e mirou a arma contra a cabeça do gatuno.

Disparou. Ainda com o telefone em mãos, surgiu um atendente na linha:

- Alô? Brigada Militar.

- Por favor, mande policiais no hotel Aqueronte, quarto 17, 1º andar.

Desligou. O corpo do larápio continuava estirado no chão e coberto de sangue. Ela escreveu algo e pôs sobre a cama, que tinha respingos de sangue. Ela sorriu para o nada, fechou a porta, desceu a escadaria, passou pelo porteiro que dormia, foi à padaria mais próxima e pediu um chá.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 26/06/2024
Código do texto: T8093959
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