Literatura escapista
O escritor Richard Worker desenvolveu um método não convencional para conseguir escrever romances pulp de detetive: o autor deveria parar de pensar em si mesmo como uma pessoa real. Segundo Worker, a figura imaginária do protagonista deveria se tornar a pessoa que existe, como se ele tomasse o lugar do seu autor. É uma imersão profunda para criar literatura. O autor deve ir se apagando da existência à medida que o seu personagem principal vai ficando mais coruscante. No entanto, Worker sugere que não é boa ideia ir muito fundo. Ao fingir ser o protagonista de sua história, e perder o controle sobre isso, o risco de ir por um caminho sem volta é altíssimo.
Tiago Caim estava há semanas tentando aplicar esse método de Worker. Mas sem sucesso. Ele tenta viver o seu personagem principal. Todavia, algo o impede. É como se ele estivesse andando por um beco livre de obstáculos. Quando está próximo do fim do corredor, entretanto, um muro aparece do nada e o bloqueia. Também aparece uma estranha sensação, como se ele fosse avisado sobre “um personagem que quer se tornar outro”.
O seu caso é peculiar: ele é um detetive particular no meio de uma investigação. Porém, ele tem o desejo de se tornar um escritor profissional. No momento, tenta terminar um romance sobre um autor que sofre de bloqueio criativo. O próprio Caim está com esse mesmo problema. Ele persiste em escrever sobre um tema que não tem muita afinidade. Amigos e colegas de trabalho sempre lhe recomendaram escrever histórias de detetives. Seria fácil para ele, afinal ele é um detetive particular! Caim resiste à ideia. Mais do que isso, é como se uma força externa a ele, algo como uma lei da natureza, o impedisse de tentar escrever qualquer outra história cujo protagonista não fosse um escritor com problemas de escrita.
“É mais forte que eu”, costuma dizer Caim, quando é indagado sobre sua teimosia.
Por exemplo, o caso que ele pegou há poucos dias daria um baita enredo de detetive. Uma mulher chegou ao seu escritório e lhe pediu para encontrar o marido que sumiu há semanas.
“Não creio que ele esteja morto”, disse a Mulher, expressando um olhar viçoso e enigmático. “Descubra onde ele está. Pago a você a quantia que quiser.”
Caim pediu todas as informações possíveis sobre o marido. Locais que ele frequentava, onde trabalhava, o círculo de amigos e até mesmo as amantes, se ele tivesse. A Mulher forneceu tudo o que podia, sem reclamar. E Caim começou a investigar.
Foi em bares, restaurantes, prostíbulos. Também visitou o local onde o Homem trabalhava: uma seguradora. Ninguém possuía informação alguma do sumido. E as pessoas pareciam tão fechadas e peremptórias que não dava para extrair delas subtexto algum . Passaram-se semanas e Caim não conseguia avançar no caso. Parece que o cara sumiu do planeta, como se tivesse sido sequestrado por um disco voador ou coisa do tipo.
Enquanto isso, o seu romance sobre o escritor sem ideias também não avançava. Aliás, nada progredia na vida de Caim. O que poderia ser isso? Sentiu que, assim como seu personagem, ele estava com “bloqueio de detetive”. Aliás, a sua vida inteira estava cheia de bloqueios. Não conseguia nem mais transar com a namorada. “Estou com o tesão bloqueado”, ele disse.
Procurou a Psicóloga.
“Comece do início”, ela disse, demonstrando um certo ânimo.
“Não sei exatamente qual o início”, ele respondeu, franzindo a sobrancelha. “Talvez tudo tenha começado quando decidi me dedicar a outra coisa que não envolvesse encontrar pessoas sumidas ou descobrir traição dos outros”.
Ele falou sobre o Método Worker para escrever ficção pulp. Havia nele o desejo de se tornar um autor publicado. Entretanto, tinha dificuldades hercúleas para preencher a temida folha em branco. Soube do método e tentou colocar em prática. Admitiu, no entanto, que falhou, pois não conseguia se tornar o seu personagem.
A Psicóloga, então, depois de fazer umas anotações, fez uma observação instigante: “E se você já estiver utilizando do método?”
Ele saiu de lá quase correndo. Entendia que aquilo era um absurdo, sem fundamento. Disse para si mesmo que não ia pagar análise para ouvir besteiras. Porém, Caim sabia que aquela sua reação nervosa e abrupta ao sair do consultório indicava que, no fundo, ele parecia acreditar naquilo, por mais esdrúxulo que fosse.
Tentou retornar à rotina, mas os bloqueios pioravam, a ponto de ele esquecer nomes. Esqueceu, por exemplo, o nome da Mulher que o procurara pedindo para encontrar o Homem que ele também esqueceu o nome. Alguns dias depois, ele esqueceu o nome da namorada. A situação piorava. Ele chegou a se desesperar. Estava disposto a tudo para voltar ao normal, inclusive considerar a tese da Psicóloga.
Voltou ao consultório.
A Psicóloga disse que, se ela estiver certa, ele teria que reverter o Método Worker. Ou seja, fazer o caminho contrário - do personagem principal ao escritor. O protagonista deveria deixar de ser real e o escritor deixaria de ser ficção. Paulo Caim, o detetive, teria que sumir de forma gradativa para que Paulo Austero, o autor, aparecesse. Eles são mutuamente excludentes. Enquanto um existe, o outro é ficção. E vice-versa. Pouco a pouco, Caim sumia para que Austero voltasse.
Lamento ter que dizer isso ao leitor, mas por limitação metaficcional, não será possível contar a rotina de Caim como Austero. O conto continuará quando Austero voltar a ser Caim no consultório.
Então, Caim acordou na sala da Psicóloga.
“Como se sente?”, ela perguntou e deu até um sorrisinho discreto, como se soubesse do sucesso da sua ideia.
“Bem melhor!”, respondeu Paulo Caim, com autoconfiança.
E o otimismo se justificava ao longo dos dias, porque os bloqueios foram sumindo. Com isso, não demorou para a boa sorte sorrir para o detetive. Ele conseguiu “virar o jogo” no caso do homem sumido, cujo nome era Caio. Ao analisar a personalidade de Caio, Caim notou que ele era uma espécie de “pessoa do anticlímax”. O que isso quer dizer? Que o sumido não faz exatamente aquilo que se espera que ele faça. A Mulher dele, Evelyn, havia descartado a hipótese dele estar morto. Segundo ela, ele deve ter fugido para longe e recomeçado uma nova vida. Caio vivia brigando e ameaçando deixá-la por causa outra. Caim raciocinou que havia um equívoco na tese: ela esperava isso dele, o que significa que ele não iria para longe e nem a deixaria por outra mulher.
Em vez de ir atrás do desaparecido em locais distantes, ele foi a um notório bar que Caio não costumava frequentar, mas que ficava a poucos quarteirões da casa de Evelyn. O detetive foi repetidas noites a esse bar e nada de Caio. Sua intuição, contudo, dizia para insistir. De tanto frequentar o bar, ele acabou gostando do local. E numa noite em que havia ido até lá para se divertir com a namorada Catarina, Caim acabou encontrando Caio por acaso.
Caio mudou de nome - agora chamava-se Daniel. O cara tinha uma nova vida, só que não arrumou uma nova mulher. E trabalhava como fotógrafo num jornal local. O curioso é que ele foi recomeçar sua vida quase na mesma rua onde Evelyn, a Mulher, mora.
“Se eu fosse mais longe, seria mais complicado”, disse Caio/Daniel, que tinha postura imponente. “Eu não voltarei para Evelyn. Quero ficar longe daquela louca”.
Caim nem perdeu tempo tentando convencê-lo. Seu trabalho era encontrá-lo e informar à esposa, o que ele fez, e não debater com Caio/Daniel para que o faça mudar de ideia.
Em suma, Caim obteve sucesso no trabalho (e na vida amorosa). Todavia, teria que descartar a ideia de escrever o romance sobre o escritor.
Não é possível que o Método Worker seja aplicado dentro do mundo criado por Paulo Austero. Isso é para prevenir a criação de mundos dentro de mundos. Com isso, método pretende evitar a formação de algo similar a uma matriosca. Caim percebeu isso quando, por um momento, voltou a ser o autor real. Não demorou para notar também que não valeria a pena voltar a ser Austero. Quando era o escritor, lembrou-se de uma frase que disse à Mulher, em seu casamento infeliz: “eu vou embora para longe e você nunca mais me verá”. Ele cumpriu o que prometeu e fez isso de uma forma não convencional: conseguiu a proeza de dar um novo sentido à literatura escapista.
FIM